Há cerca de um ano e meio escrevi na imprensa lisboeta um artigo alusivo aos acontecimentos de 1953, em São Tomé e Príncipe, que passaram à História com o nome de “massacre de Batepá”.
Conspiração e terrorismo de Estado, em São Tomé, contra as elites nativas locais.
Há cerca de um ano e meio escrevi na imprensa lisboeta um artigo alusivo aos acontecimentos de 1953, em São Tomé e Príncipe, que passaram à História com o nome de “massacre de Batepá”. Nele se mostra a espantosa ocultação que ainda hoje, decorridos quarenta e seis anos, o Estado português continua a fazer dessa tragédia, impedindo por exemplo que documentação relevante na posse dos arquivos públicos seja estudada pelos pesquisadores e divulgada junto do grande público.
Sem dúvida que esta atitude das autoridades portuguesas tem permitido encobrir o nome e a conduta assassina de figuras que serviram o aparelho de Estado em São Tomé: a começar pelo próprio governador-geral, coronel Carlos Gorgulho, Machado de Sousa (Tenente da Armada e capitão dos Portos que sucedeu a Gorgulho), o coronel Alfredo Correia Nobre (Lugar-Tenente do governador, o inspector do Ensino, Firmino Abrantes (o curador dos Indígenas), Abrantes Pinto (chefe de Gabinete do governador), os magistrados Judicial do Ministério Público, Armando Lopes da Cruz (notário e ex-Delegado do Procurador da República), Tenente Raúl Simões Dias (Presidente da Câmara), Trigo Delgado (engenheiro-chefe das Obras Públicas e delegado da União Nacional em São Tomé), Manuel da Costa Morão (delegado de Saúde) e outros – todos considerados como os verdadeiros estrategas do plano macabro que mergulhou as populações nativas da colónia em estado de choque durante meses, em especial as suas elites; sem esquecer outras hierarquias que intervieram igualmente nas atrocidades; neste caso os comandantes e subordinados do corpo da polícia e das forças militares, médicos, regedores, encarregados de obras, administradores de roças, assim como comerciantes e industriais europeus; e também a própria Igreja Católica na pessoa do seu Vigário-Geral (Padre Monteiro) e do pároco Martinho Pinto da Rocha (Membro do Conselho do Governo), o primeiro talvez o mais perverso, embora o Padre Rocha não lhe ficasse atrás, porquanto, na qualidade de conservador do Registo Predial, jamais lhe sobrou a pinga de moral para, em proveito próprio e dos seus apaniguados, atropelar a lei e saciar-se com bens alheios.
Na mira da Igreja esteve sempre o palacete onde funcionava a Associação Desportiva e Cultural e a sede da Sociedade Cooperativa da Caixa Económica. Estas duas entidades eram privadas e dela fazia parte a nata africana. José D’Alva Ribeiro presidia os destinos da primeira e era administrador da segunda. Este filho da terra, subdirector de Fazenda e um dos mais prestigiados representantes da elite negra santomense, constituía porém um empecilho intransponível para o Vigário-Geral, que o odiava, e para os sacedortes; e não menos para a clique de funcionários superiores que, mancomunados com o governador-geral, se abotoavam com fatias consideráveis do Orçamento do Estado. Em silêncio, D’Alva Ribeiro acompanhava todos esses manejos. Os seus inimigos, entretanto, pressentiam o perigo. Por isso o prenderam e mataram.
Realmente a dimensão dos acontecimentos foi tal – um pesadelo, se se levar em conta a natureza dos crimes cometidos – que uma testemunha acabou por escrever: confesso-vos que se eu não estivesse cá a viver, a ver e a sentir a exterminação total a que pretendiam reduzir os nativos eu julgaria que em tudo isto houve uma boa parte de exagero.
Sobre as causas da tragédia já se escreveram vários textos, todos apontando a desmedida ambição do governador Gorgulho, que se lançou num vasto programa de construções e melhoramentos públicos recorrendo a rusgas constantes nas povoações nativas por forma a angariar mão-de-obra barata ou gratuita. Todavia, como alguém salientou, aos africanos já não bastava oferecerem-se voluntariamente para o serviço.
Depois de aceites, eram despedidos e, mais tarde, caçados como “vadios”, sem direito a qualquer tipo de remuneração. Apenas prevaleciam (…) condições de brutal tratamento (…). Presos e acorrentados, ficavam à mercê de chicote de guardas e capatazes escolhidos, a maior parte, entre condenados por crimes comuns.
A malandragem, porém, sentia-se inquieta porque sabia estar a ser vigiada pela elite nativa de São Tomé que, além de bem representada nos escalões superiores do funcionalismo público, gozava em Lisboa de influências e bons conhecimentos. Porventura a pessoa mais temida era Salustino da Graça do Espírito Santo (engenheiro agrónomo). Quando o governador e os seus protegidos inventaram a tenebrosa história da conspiração dos negros contra os brancos e desencadearam a repressão de Fevereiro de 1953, não foi por acaso que o nome de Salustino apareceu em todos os autos de “confissão” dos presos como (…) chefe da revolução, seu instigador, seu preparador e futuro Rei da Ilha.
Portugal tem uma dívida histórica para com os povos africanos. Neste país até hoje ainda não se ouviu um Presidente da República ou um primeiro-ministro pedir desculpas por casos como o de São Tomé e outros ocorridos em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Embora não se trate só de pedir desculpas, pelo menos o gesto denotaria uma mudança de estilo e de comportamento mais saudável para se encararem problemas ainda tão difíceis como é o passado colonial.
Portugal e África têm uma história em comum que precisa de conhecer. E bem. Sem preconceitos e reservas. Não se pretende que os criminosos de ontem sejam presos ou julgados. Pretende-se conhecer os factos, tomar consciências dos erros cometidos e corrigi-los no futuro.
Esta a única razão do nosso combate pela História.
Carlos Pacheco, historiador Angolano
Almada, 22 de Outubro de 1999.
In Crónicas de uma guerra inventada de Sum Marky
Dedicatória
Em São Tomé, no ano de 1953, houve um coronel, Governador da Ilha, e seu estado-maior de tenentes, que inventaram uma guerra, a que chamaram de “Bate-pá!”
Mais propriamente deviam tê-la chamado “Guerra de Mata-pá”, porque realmente foi um massacre de mais de mil pessoas inocentes.
Ao Dr. Manuel João de Palma Carlos, (Advogado português que foi defender os nativos em São Tomé) cujo papel nos acontecimentos foi crucial para pôr fim à matança.
E também aos que morreram por asfixia no cubículo exíguo de uma prisão na noite de 4 para 5 de Fevereiro, que vi estendidos no lajedo do pátio do Corpo de Polícia e que na minha inocência julgava adormecidos, entre os quais o senhor Alfredo Afonso e seus dois filhos e igualmente amigo do meu pai.
Sum Marky
In Crónica de uma guerra inventada de Sum Marky
Memória
No próximo dia 3 de Fevereiro, feriado nacional, quinta-feira, a juventude santomense, é, eventualmente, chamada a comparecer, uma vez mais, em peso para numa caminhada de quilómetros desde a cidade capital até a praia de Fernão Dias (Campo de Concentração de 1953) simbolizar o sacrifício e o sangue derramado pelas centenas, porque não mais de um milhar de nativos, gentes desarmadas, assassinados em poucas semanas sob o mando directo do então Governador colonial, o sanguinário Carlos Gorgulho.
Passados cinquenta e oito anos da mais sangrenta data na História das ilhas de S.Tomé e Príncipe, achamos oportuno assaltar o tempo dos que comungam a tribuna do Téla Nón para um peito ao peito sem grilhetas (duas voltas de correntes) no pescoço, na cintura e nos pés como foram vítimas os filhos da terra, muitos mortos, no inferno de Fernão Dias.
Assassinato de Pontes (um simples carpinteiro). Assassinato de José D’Alva Ribeiro, Joaquim Tiny, Francisco Aragão e outros (nativos e altos funcionários do Estado e proprietários de roças). Roças e plantações dos nativos queimadas pelos capangas, trabalhadores armados das roças de Milagrosa, Java e Favorita (todas na Trindade). Um grupo de 170 homens, que viam de Santo Amaro, aconselhados pelo Regedor Henriques com bandeiras brancas para pedir o Governador a deixar abastecer as famílias de géneros de primeira necessidade e suplicá-lo as boas graças, em O que-Del-Rei esperava-os a tropa, que os meteu, acintosamente, em camionetas que os conduziu para Fernão Dias, como prisioneiros de guerra. Daí resultou a morte de muitos deles, espancados, maltratados, assassinados a tiro como aconteceu ao Inglês e outros à paulada, a chicote ou afogados, a saber: Júlio Bouças, Egídio, Mé Dano, Hajavida e muitos outros desaparecidos que se sabe, atirados ao mar com blocos de cimento atados aos pés.
Quarenta outros prisioneiros morreram asfixiados numa cela dentre eles, Alfredo Afonso e seus dois filhos.
Mulher grávida queimada em casa em Batepá. Mulheres violadas. Crianças órfãs. Famílias inteiras enlutadas em nome de uma guerra inventada.
Uma lista interminável de filhos de S.Tomé e Príncipe mortos prematuramente pelas balas da História colonial.
Nesta altura que nos comove a todos, alguns até a cair no fanatismo patriótico de “fuzilar” um investigador estrangeiro que com o seu contributo nos tem construído castelos da nossa História, por ter vindo mais recentemente a praça pública abrir a sua busca de que Amador, jamais foi Rei dos Angolares (1595), urge questionar o seguinte?
Tendo as ilhas de S.Tomé e Príncipe feito um percurso histórico de povoamento por colonos europeus, judeus, degredados e negros escravos sem algum momento, o poder colonial ter confrontado com alguma revolta vitoriosa em que um escravo se proclamou Rei, onde teria o governador Carlos Gorgulho, passado quase cinco séculos, inventado que o Engenheiro Salustino Graça, preparava a revolução de 1953 para se tornar Rei das ilhas? Havia ou não a tradição de monarquia desde os tempos remotos da escravatura? Só pode ter a ver com o Engenheiro ser um “madô”.
O país que temos hoje de longe faz qualquer paralelismo com a colónia de ontem. Todavia, o povo passados os 35 anos de independência ainda não vislumbra qualquer melhoria social e económica que lhe possa outorgar alguma esperança de que valeu a pena o sangue derramado.
Uma segunda geração, se não terceira geração pós independência já foi chamada a assumir o governo das ilhas do Equador e, acreditamos que tudo tem feito para se divorciar da ditadura dos primeiros 15 anos e os 20 anos de instabilidade política e governativa que não permitiram o país a se encontrar com os seus filhos para hastearem a tão desejada e prometida bandeira do desenvolvimento económico no paraíso do meio do Mundo.
Passados os cinquenta e oito anos do Massacre de Batepá, quais os sacrifícios mais terão que passar o nosso povo para alcançar os nobres ensejos da independência? Onde andará escondida a humildade e o orgulho do santomense?
25 de Janeiro de 2011.
José Maria Cardoso