SR. DIRECTOR!
Através do Decreto-Lei n.o 23:229, de 15 de Novembro de 1933, o Governo português instituiu a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU), a vigorar em todas as colónias portuguesas, designadamente Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, Estado da Índia, São Tomé, Macau e Timor, a partir do dia 1 de Janeiro de 1934.
Trata-se de um Decreto-Lei que não obstante as alterações que algumas das suas disposições foram sofrendo ao longo do tempo até à independência política de Moçambique, constituiu a base da organização da Administração Civil e de funcionamento dos Serviços do Estado, e também do processo de recurso contencioso fundado na ilegalidade de actos administrativos.
Julgo que deve ser pela multiplicidade das matérias que se propunha regular que a RAU precisou 78 anos para a sua revogação, o que viria a acontecer em três fases principais integradas no então famoso processo de “Escangalhamento do Aparelho de Estado Colonial”.
Resumidamente, pode-se afirmar que a primeira derrogação (tácita) da RAU dá-se com a própria Constituição da República Popular de Moçambique, de 20 de Junho de 1975, que tinha como um dos seus objectivos fundamentais “a eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade adjacente”, passando pela aprovação da demais legislação pertinente à organização e funcionamento dos poderes do Estado.
A segunda fase acontece com a aprovação da Lei n.o 9/2001, de 7 de Julho, cujo artigo 208 derrogou expressamente as disposições da RAU respeitantes ao processo de recurso administrativo contencioso.
Finalmente, a terceira fase surge com a aprovação da Lei n.o 14/2011, de 10 de Agosto, que “regula a formação da vontade da Administração Pública, estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares”, e revoga por completo a RAU e o Decreto-Lei n.o 23:229, de 15 de Novembro de 1933.
Com o pequeno historial acima produzido quis enaltecer não só a importância da RAU ora revogada, precisamente porque ela abarcava matérias diversas, mas referir-me também ao valor incomensurável de que se reveste a Lei n.o 14/2011, na organização e funcionamento da Administração Pública moderna e no aperfeiçoamento da luta pela materialização dos princípios do Estado de Direito Democrático.
Outra coisa não de somenos importância a registar está relacionada com o facto de a Lei n.o 14/2011 ter derrogado tacitamente os Capítulos I a VI das Normas de Funcionamento dos Serviços da Administração Pública, normas estas aprovadas pelo Decreto n.o 30/2001, de 15 de Outubro, no âmbito da implementação da Estratégia Global da Reforma do Sector Público, oficialmente lançada no dia 25 de Junho de 2001.
E se outrora houve incessantes apelos sobre a necessidade de todos os funcionários e agentes do Estado empenharem-se afincadamente no estudo sistemático daquelas normas, a par e passo com as Normas Éticas e Deontológicas aprovadas pela Resolução n.o 10/97, de 29 de Julho, hoje tais apelos são mais do que necessários, devido à delicadeza e indiscutível profundidade de considerável parte das matérias trazidas pela Lei n.o 14/2011, algumas das quais surgindo como autênticas inovações.
Cito como exemplo a caducidade do direito que se pretende exercer, questão esta que nos termos do n.o 1 do artigo 90 da Lei n.o 14/2011 passa a ser oficiosamente conhecida no despacho saneador, juntamente com outras questões prejudiciais tais como as relativas à incompetência do órgão administrativo, à ilegitimidade dos requerentes e extemporaneidade do pedido; Outro exemplo de inovação refere-se ao recurso tutelar, que por determinação expressa do n.o 3 do artigo 173 da lei em apreço apenas terá como fundamento a inconveniência ou a inoportunidade do acto controvertido.
- João Baptista André Castande