2011: Ano Samora Machel
Por: Barnabé Lucas Ncomo
Assassinatos de carácter em massa
No meio da fanfarra em torno dos 25 anos do desaparecimento físico de Samora Machel muita coisa ficou por se dizer. Os políticos, académicos, escritores e os demais que emprestaram suas vozes no exaltar da figura de Samora em 2011 brindaram-nos com um chorrilho de assassinatos de carácter em massa.
Está claro que ao imporem que se evocasse a figura de Samora nos moldes em que o fizeram, infundindo a ideia da existência no país de uma grande nostalgia que avassala os corações de todos os moçambicanos, do Rovuma ao Maputo, os promotores da homenagem acabaram denunciando o que não queriam que se soubesse. Não o querem de volta não, porque também estavam fartos dele. E nem têm, esses senhores, saudades dos seus tempos ou actos. A maior parte dos camaradas de Samora querem-no bem morto servindo-se apenas da sua figura para projectos políticos inconfessáveis, mormente o de manutenção do poder político e, sobretudo, o da consolidação da ideia de heroicidade exclusiva de um tipo de gente em comparação com outros.
Em abono da verdade, não se estaria aqui a descobrir absolutamente nada se se afirmasse que mesmo Armando Guebuza jamais gostaria de reviver na carne o regime que Samora encabeçou em Moçambique. O que pode estar a custar à Guebuza e seus companheiros nos dias que correm, é encontrar um remédio (impossível – diga-se de passagem) capaz de dissocia-los de todo o mal que Samora fez a eles mesmo, e a muitos dos seus concidadãos. Na impossibilidade de encontrar tal antídoto, opta-se por esta colagem a Samora que, na essência, é falsa. Homenageiam-no simplesmente porque sabem que a ter que ser julgado pela história, Samora não será julgado só. Tanto Guebuza como a maioria de seus camaradas, hoje em vida, suportou Samora e suas atitudes por uma questão estratégica de sobrevivência. Conheciam o destino que teriam se entrassem num confronto directo com ele, mesmo que tal fosse a nível de diálogo. Souberam esperar para enterra-lo com suas ideias políticas; ideias essas que, em tudo, eram insustentáveis, uma vez que contrariavam a essência da aspiração de todos eles. Sabiam que a despeito de Samora ter na pele a imagem de um ser humano normal, transportava no seu íntimo algo que o diferenciava de todos eles, algo esse que o transformava num diabo sempre que lhe subisse ao cérebro. Todo o cuidado com aquele homem era pouco.
Golpe palaciano
Guebuza e seus companheiros estão cientes de uma coisa: se bem que a proclamação da independência a 25 de Junho de 1975 tenha sido pela voz de Samora, jamais tal empreendimento pode ser tido como propriedade exclusiva dele. A proclamação da independência de Moçambique será historicamente tida, sempre, como um acto de um órgão colegial, o Comité Central da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) a que muitos deles pertenceram por direito de participação e destaque na luta de libertação nacional. Assim, a despeito do abandono tanto da linha orientadora de Samora como dos procedimentos que caracterizaram o seu reinado ter todo um condimento de golpe palaciano, a manutenção duma aparente concordância com o passado tenebroso daquele homem é fundamental porque empresta a ideia de inexistência de ruptura. Uma eventual “ostracização pública” da sua figura transmitiria a firme ideia de que já não o queriam no lugar em que o puseram no longínquo ano de 1970.
Por outro lado, dado que existe a consciência de que aquando da vigência dos tempos do pensamento comum directa ou indirectamente ajudaram-no a cometer os crimes de que o seu regime é acusado, e dado que tais crimes levam alguns ainda a “bocejos cobardes” e “assobios de lado”, é então preciso ir ganhando tempo, fingindo com mestria que com Samora em vida os moçambicanos viviam “ejaculando de gozo”, e todos os moçambicanos morrem de saudades dele e dos seus actos!
É aqui onde repousa toda a falsidade destas homenagens, pois, longe do que aos olhos se nos dá ver, a realidade oculta nos procedimentos de Guebuza e seus companheiros é mais esclarecedora.
Na verdade, Samora e seus ideais foram derrubados porque não se adequavam as aspirações não só do povo em si, que clamava pela liberdade, mas também de seus camaradas que já viam os excessos do regime que ele encabeçava como obstáculos para a liberdade de todos. Para muitos deles, Mbuzine veio como que um alívio. Tal ilação, talvez expliqueca o porquê de Samora ter morrido na companhia de subordinados de subordinados e não com os seus verdadeiros subordinados na escala da hierarquia no país.
A utilidade de Samora morto e o papel da família Machel
Na verdade, a figura de Samora tem como utilidade, no presente, o servir de “bombo da festa” para os novos desafios em perspectiva. O lançamento da ideia de inexistência de ruptura com seus ideais visa garantir não só uma transição suave para um capitalismo que ontem se combateu de forma sangrenta, como igualmente garantir que o futuro reserve aos capitalistas emergentes (no seio da Frelimo) o estatuto de heróis nacionais da luta de libertação nacional, fechando-se, assim, para a história, o ciclo dos heróis da luta pela independência. Infelizmente, tudo isto é feito com uma certa carga de amoralidade, que roça até para o pontapear; cuspir; e escarnecer de forma irónica a figura e a memória do indefeso Samora morto, transformando-o num brinquedo de estimação por conveniências estratégicas de sobrevivência. E tudo isto ocorre com o consentimento da própria família Machel da qual se esperava a maior fatia de respeito para com a memória do seu ente querido.
Não estaríamos aqui a mentir se afirmássemos que essa família tem consciência deste “pontapear” em torno da memória do seu ente querido. Tudo indica que suporta o “circo” simplesmente porque a dimensão dos interesses em jogo é complicado. De resto, os actuais capitalistas no país suavizam o peso da cruz que Graça e seus filhos iriam carregar. Na verdade, tal família está também num dilema de escolha entre manter-se numa posição social privilegiada, ou ser “ostracizada” por aqueles a quem apraz fazer do seu morto o palhaço duma festa em que não se fez convidar. Contudo, não se esquece, tal família de uma vez por outra vir a público com algumas verdades que lhe vão na alma. Uma das filhas de Samora é citada como tendo afirmado que se o pai ressuscitasse ficaria profundamente decepcionado (RM/LUSA, 02/10/11). A pergunta que qualquer alma atenta faria em torno dessa afirmação é: afinal, Samora ficaria profundamente decepcionado porquê; o que é que está errado?
A resposta a tal pergunta poderia até ser sincera, mas o argumento que justifique a anuência da família, em bloco, consentir que se brinque com a memória do seu finado numa altura em que todos têm consciência e percebem que ninguém lhe segue os passos, seria, toda ela, atabalhoada e contraditória, porque iria desvendar a verdade.
Embora a família Machel tenha consciência de que os ideais de Samora foram traídos pelos seus próprios camaradas, para ela, é mais confortável aceitar esta encenação de Guebuza e seus companheiros do que exigir que aqueles então camaradas de Samora sejam sinceros consigo próprios. Porque no dia em que quisessem sê-lo não deixariam, tal como nós o fazemos, de dizer, a plenos pulmões, que “Samora foi um ditador que nem sequer merece estátua alguma, seja de que tamanho for”. Não deixariam de dizer que “à Samora demos o poder e as armas, mas longe de fazer justiça com esses instrumentos acabou transformando-se num ditador da pior espécie, espezinhando-nos e assustando-nos a nós, que o pusemos no poder, e ao povo que queríamos libertar. Não somos obrigados a segui-lo!”
A tomada de consciência de tal eventualidade conduz a família Machel a uma atitude de aparente cumplicidade com toda esta falsidade visando o alcance de um tratamento social menos penoso, pois, moralmente, é insuportável pertencer àquele a quem se acusa dos mais cruéis actos contra outros seres humanos. Enquanto não aparecer oficialmente um regime ou homens com coragem de repor a verdade do vivido, vai, essa família, dando graças à Deus por o mundo continuar “bocejando de lado” e com memória curta, porque existe nela a consciência de que outros homens no mundo, que se comportaram politicamente como o seu ente querido, não tiveram a mesma sorte. Ser apontado o dedo como sendo filho, irmão, viúva, etc., de quem tinha o hábito e prazer de mandar tirar a vida a outros seres humanos, fosse por que por razões fosse, faz dar voltas a cabeça a qualquer ser humano equilibrado.
Existe em Maputo uma filha de um antigo carrasco da PIDE, (então simples executor bem conhecido na então praça pública lourenço-marquina da era colonial) que por tanta “ostracização” na rua e em ambientes sociais, se transformou num barril de álcool ambulante! A pobre senhora vive de alucinação em alucinação monologando e tresandando a álcool dia e noite. Morto que havia sido o pai em Lourenço Marques por uma turba brutalizada pelos novos ventos que se instalaram após o 25 de Abril de 1974; e a despeito de se ter identificado com a causa da independência logo depois do 25 de Junho de 1975 militando nas Células e Comités do partido no seu bairro, a pobre senhora fora desde então vítima de uma cerrada “ostracização” popular. Nos Comités do Bairro e na empresa onde tentou iniciar uma vida nova os “puros” não se cansavam de recordá-la de ser filha de quem era. Na procura de um amor sincero e carinho, a senhora entendeu por bem cair nos braços de Baco.
Semelhanças: a coerência da família Botha e dos apartheidistas
A imprensa moçambicana e sul-africana noticiou, a 2 de Novembro de 2006, que a família Botha dispensava honras de estado no funeral do seu ente querido Pieter Botha, então esboçado pelo governo sul-africano.
A ilação que se pode tirar desta decisão só pode repousar num único extremo do raciocínio humano: ou os familiares de Botha amavam-no tal e qual como ele quis que o amassem, ou estavam avisados que qualquer acto à título póstumo em torno da sua figura que manifestasse alguma reconciliação com o que não acreditara em vida seria, eternamente, por ele tido como um escárnio a sua memória e uma traição a causa que sempre defendeu.
Alias, sepultar Botha com honras do estado na África de Sul de hoje seria como que pegar num cardeal da Igreja Católica e fazer-lhe um funeral com ritos islâmicos. É que as regras são sacras para quem as professa em vida. Jamais se deve impor aos mortos outras regras no caminho do seu descanso eterno somente porque estes já não podem mais reclamar. Fazê-lo, nem que seja para a manutenção duma espécie política por outras vias, é um insulto a memória deles, e só pessoas que não prestam têm a coragem de golpes baixos como esses.
Botha nunca exigiu paninhos quentes para lavar a sua imagem. Mandou até passear o Bispo Desmound Tuto e a sua Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul. O homem, havia, pessoalmente, lido a sua sentença. Se o mundo inteiro era doido, então, ao menos “deus” havia feito um só homem justo na face da terra: ele. Que a maioria no mundo continuasse a tratar-lhe como lhe entendeu isso pouco lhe interessava, desde que a justeza dos seus actos repousasse somente em si próprio.
Nos dias que antecederam a sua morte o “mundo” espalhou via e-mails um discurso que se diz proferido por ele a membros do seu governo em 1985. A fazer fé nesse discurso (que também recebemos), Botha era mesmo um homem com convicções devidamente elaboradas, convicções que até se podem chamar de porcarias, mas eram suas convicções. Botha era intransigente, estúpido, bruto, porco e tudo mais. No tal de seu discurso afirma que “Pretória foi erguido pela mente branca para o homem branco”. Como que estando a atirar farpas a todo o mundo do planeta que está lhe chateando, prossegue afirmando que “nós, os brancos da África do Sul, não somos obrigados a provar a qualquer um, e nem mesmo aos pretos que somos um povo superior” – lê-se.
Botha era igual a si mesmo e aos que acreditavam na política de discriminação por si seguida. Contudo, para o bem ou para o mal, convicto dos seus actos, era assim que queria que o mundo o visse: maquiavélico, racista convicto, superior e defensor acérrimo da diferença entre os seres humanos. Qualquer acto em torno dos seus restos mortais que manifestasse a igualdade entre os seres humanos na África do sul de hoje seria desnecessário e susceptível até de pôr a sua alma em constante vigília no além, aguardando pela vinda daqueles que tentam hoje fazer dele um “palhaço” para ganhos políticos num Estado que jamais defendeu. E teria, Botha, razões mais do que suficientes para ajustar contas com todos:
- Primeiro, com seus camaradas (e alguns brancos) por terem traído a causa da “raça pura”, associando-se a um projecto de igualdade concebido por uma raça que ele sempre tinha como “inferior”;
- Segundo, com o mundo inteiro, que não logrou compreender os desígnios de superioridade rácica concebidos pelos seus antecessores (desde 1948), e que ele seguiu à risca, permitindo que nos dias de hoje os “seres inferiores” se sobrepusessem aos seres que “deus” concebeu como superiores.
Os seus familiares sabiam então que pai, tio, avó ou irmão tinham. Doa a quem doesse, procuraram ser coerentes com os seus ideais, sob o risco de a sua alma não os perdoar, aqui e no além.
O exemplo contrário dos que acreditaram em Samora
Tal como Pieter Botha, Samora Machel morreu seguro dos caminhos que trilhava. Jamais pediu favores para que acreditassem, ou não, nele. Impôs-se pura e simplesmente porque acreditava que era possível alcançar os ideais do comunismo em Moçambique, mandando matar aqueles que com ele não concordavam. Como Botha e seus inimigos – as tais raças humanas inferiores na África do Sul – em Moçambique, Machel conhecia também os seus inimigos, que, na essência do seu raciocínio, era também “raças inferiores”, isto é, seres humanos destituídos de mentes capazes de raciocinarem progressivamente.
Tal como o seu homólogo sul-africano, Samora Machel procurou também arrastar todos os da sua “raça” – a raça política e mentalmente superior em Moçambique – para combater e reduzir os seus inimigos à sua “inferioridade natural”, criando um apartheid simulado que impedia o usufruto destes de liberdades que somente à ele (Machel) e sua raça política “deus” conferiu. Mais do que Botha, Machel terá mais contas a ajustar com seus camaradas que hoje usam a sua figura para ganhos políticos e sociais fazendo dele o bombo duma festa que sempre combateu, isto é, a burguesia, o multipartidarismo, o associativismo, a igualdade de direitos, etc., pois mais do que os seguidores de Botha, os seguidores de Machel usam-no para justificar aquilo em que se tornaram e jamais conseguiram com ele em vida.
Enquanto os seguidores de Botha dirão no além, perante o seu chefe-mor, que perdemos a guerra e, consequentemente, o poder de decidir os destinos do país, os seguidores de Samora terão que ter capacidade de encher cestos de desculpas, para justificarem a razão do abandono de um ideal que juntos talharam, ideal esse então tido como o mais nobre e justo dos ideais da humanidade, e pela qual os “melhores filhos” deste país deram suas vidas. Dizemos isto por uma simples razão:
É que Samora Machel tinha convicções. À coberto do poder que possuía, era indemovível nos seus pontos de vista. Era um político de tendência radical como o próprio Botha. Dificilmente se deixava dobrar. Na prática, era a outra face da mesma moeda do apartheid. E se quisermos prosseguir olhando de forma comparativa para esta questão, facilmente se conclui que as “raças humanas inferiores” da concepção do apartheid de Botha na África do Sul transformaram-se no Moçambique de Samora em bandidos e venda-pátrias, isto é, em seres incapazes de perceber a pureza dos desígnios dos moçambicanos mais puros; os eleitos e inspirados por “deus” para conduzir os destinos do país e de todos seres nele habitantes.
Tal como as “raças inferiores” de Botha procuravam, do ponto de vista do prócere do apartheid desestabilizar o que a “mente superior branca” construiu na África do Sul, em Moçambique os desestabilizadores do progresso idealizado por “cérebros superiores” da raça de Machel estavam também devidamente identificados. Eram aqueles que não concordavam com os procedimentos do governo de Machel.
Assim, tal como Frederick de Klerk na África do Sul, em Moçambique, Joaquim Chissano e seu elenco governamental de então viriam a trair a grande causa do seu antecessor. E aqui repetimos: pior do que os seguidores de Pieter Botha que perderam o poder por terem ousado permitir que as reivindicações dos seres inferiores fossem consagrados na Constituição da República, os seguidores de Machel usam-no para se perpetuarem de forma contrária ao que o seu mestre os ensinou, porque não perderam o poder. Vai daí que na saga de sobrevivência, como que cuspindo na memória daquele seu líder, atribuem-no coisas que não faziam o seu feitio. E são tantas, as farpas ditas em torno da figura de Machel que basta citar apenas algumas que antecederam todo aquele assassinato de carácter em massa:
Já por ocasião das comemorações dos vinte anos do desaparecimento físico de Samora, assistimos a discursos que lembram o diabo. Um destacado crente da “superioridade rácica” a moçambicana “atirou-nos” com uma prosa (num matutino local) que empresta uma imagem de um Samora Machel social-democrata. Machel é nós apresentado como um homem muito moderado e muito humano, que vivia mergulhado na gestão de conflitos então existentes entre os radicais e moderados no interior da Frelimo, tanto à nível do governo como na da imprensa então estatizada. O articulista de tal prosa não se esqueceu também de emprestar a si próprio a imagem de mais puro jornalista moderado da época, razão pela qual granjeara então a confiança do “incontestado” líder do país, acabando até por ter o privilégio de com ele privar e ir, algumas vezes, a Portugal em serviço dos interesses estratégicos daquele. Apenas se esqueceu, o nosso ilustre jornalista, de informar aos seus leitores que numa dessas viagens fez o favor de criar as condições para o rapto na Tanzania de um cidadão português e parte da sua família para serem torturados pelos esbirros do SNASP na Machava e Xefina.
Na mesma senda, prosseguindo a manipulação de dados – que até havia começado, em tempos, na maior academia moçambicana – um outro articulista aponta Machel como tendo sido o homem que iniciou a viragem para a abertura política e económica que se vive hoje em Moçambique! Curiosamente, alguns estadistas na então Linha da Frente na África Austral são tidos como os mais belicistas na região, com um Machel a recusar, peremptoriamente, um ataque directo contra o Malawi em 1986!
Etc., etc.
Tudo serve para justificar as conquistas de hoje, nem que para isso se cuspa na memória de Machel, atribuindo-se-lho o que não fez. No fundo, estamos perante enxertos forçados, isto é, tentativas de legitimar o despotismo de ontem para justificar os tempos modernos. E a paz duramente conquistada por outros, é retirado aos seus “legítimos proprietários” e atribuído aos déspotas de ontem. E apresentam-se fotografias de um Botha em cavaqueira com um Nelson Mandela, ou um Machel a abraçar efusivamente um Ronald Reagan (ou a receber a filha deste no palácio da Ponta Vermelha) como “incontestáveis provas” de abertura destes “grandes líderes” para a concórdia nos respectivos países!
O afirmar que “se meu pai ressuscitasse ficaria muito decepcionado”, é, em si, uma prova bastante para concluir que tanto os filhos de Samora, como a viúva, têm consciência do pai e marido que tiveram. Não precisam então de um documento escrito pelo seu defunto para perceberem que seja onde estiver, Samora está chateado com tudo o que se passa em torno da sua figura hoje. Porquê não saem então a rua aos gritos a dizer “pare-se com isso. Só homenageia o meu pai ou marido quem lhe segue as pegadas!”
Samora: o ícone da luta contra a burguesia traído
Samora jamais ressuscitará para qualquer tira teimas do que estamos aqui a afirmar. Mas como humanos, feitos de carne e alma, somos livres de imaginar o que se segue. No silêncio da morte, Samora pode ainda estar em guerra permanente contra uma classe social que sempre combateu – a burguesia e os “exploradores do povo”. Os seus discursos ilustram-no. Embora os promotores da sua evocação hoje tenham consciência dessa eventualidade, preferem castiga-lo por quitação.
Queira ou não Samora, hoje, os seus camaradas que se transformaram naquilo que ele combateu com tanta tenacidade são livres de fazerem da sua figura o que bem entenderem. Jamais os poderá voltar a incomodar com seus assobios, torturas psicológicas e ironias. De resto – acreditando-se no exoterismo à moda da tradição africana – a existir alguma alma muito incomodada com tudo isto, tal alma só pode pertencer a uma das vítimas dos excessos da suprema governação de Machel a que eles faziam parte. E é legitimo que tal alma incomodada indague a Guebuza e outros: “afinal, mataram-me porquê? ”.
E se tal alma assusta, não só assusta a Guebuza e a outros da então súcia de Samora. Igualmente, assusta ao próprio Samora na tumba que tem a pesada missão de justificar perante os juízes divinos o porquê de terem morto aquela alma, porque os vivos de Samora teimam hoje que são unos e indivisíveis com o seu morto.
Talvez importe explicar o que se entende aqui por castigo por quitação:
Se em seu tempo Samora apartou-se de todos os aspirantes a burguesia à sua volta que, corajosamente, no interior da FRELIMO, ousaram contraria-lo abertamente, à esta nova burguesia que o adulava e temiam por medo das suas represálias na época, Samora terá que aceitá-la na nova condição social de capitalistas em que se tornou, a despeito do desvio da sua linha orientadora e de toda a cobardia manifesta nos tempos em que vigorava o pensamento único. E esta exigência de Guebuza à Samora é feita de forma mais bruta possível. De resto, mesmo na sua então cobardia, jamais Guebuza e os aspirantes a burguesia emergentes deixaram de ser úteis a Samora na sua luta contra os aspirantes a burguesia de ontem.
Ou morremos todos, ou somos glorificados juntos
Na prática, com as homenagens a Samora, Armando Guebuza e seus camaradas de hoje apelam a todos os moçambicanos do Rovuma ao Maputo que assobiem de lado, minimizando o “acidente de percurso” que os conduziu a serem parte da máquina que Samora usou na destruição aos seus inimigos. O facto da característica principal dos governantes de hoje ser o bem-estar social de estilo burguês, não deve constituir então motivo bastante para serem apartados de um direito sagrado – serem também tidos como heróis nacionais para que o ciclo se feche.
Tanto o pastor (Samora) como o rebanho (povo) têm que aceitá-los tal e qual eles são hoje. No caso particular de Samora, terá ainda no futuro que ter a dura missão de com eles compartilhar o espaço do panteão dos “heróis nacionais” que juntos (herói e cobardes de ontem) construíram nos tempos do pensamento único. E mesmo que no silêncio da morte Samora saiba que quando eles (Guebuza e outros) afirmavam estar de acordo com ele, nas suas consciências apunhalavam-no pelas costas sonhando com mansões, propriedades e empresas que a classe burguesa de origem europeia que combatiam ostentava, Samora não tem onde se queixar ou como impedir que lhe ergam estátuas de todos os tamanhos em toda a extensão do território moçambicano, seja com dinheiro tirado dos bolsos dos pobres moçambicanos cujos filhos estudam em escolas sem tecto ou sentados no chão, ou dos cofres do partido de vanguarda que Samora idealizou.
Samora terá simplesmente que pagar a factura que lhe estão passando, tal e qual, no silêncio cobarde de ontem, Guebuza e todos outros pagaram a factura da sua própria intransigência e teimosia; intransigência e teimosia essa que os impediu de, em tempo útil de suas juventudes, voarem livremente para o alcance dos seus sonhos: serem proprietários de bens em substituição dos colonos que haviam desalojado.
Eis então a razão de toda esta colagem forçada entre alguns vivos e um homem morto, cujo regime produziu órfãos, viúvas e destruiu famílias pelo simples facto de uns terem discordado dos procedimentos. Procura-se com as homenagens a Samora transmitir a ideia de uma eterna unidade de pensamento entre aquele que combateu uma classe social num determinado tempo, e a classe social então combatida já nos novos tempos.
E este fenómeno de colagem forçada arrasta-se a outras dimensões facilmente compreensíveis:
Se a honra repousa em estátuas ou sepulturas nos mausoléus, os novos burgueses projectam suas estátuas e repouso ao lado daquele que os fez atrasar na história da prosperidade individual. E se a verdade histórica no futuro ditar que seus restos mortais sejam removidos do mausoléu dos heróis nacionais, e suas estátuas demolidas das praças públicas por uma eventual turba popular pelo simples facto de se terem transformado em “exploradores do povo” – como dizia Samora – sê-lo-á na companhia dos símbolos daquele.
Está-se perante uma colagem tal que Samora jamais se desenvencilhará, a menos que um milagre – parafraseando a filha – o ressuscite e, decepcionado com a associação que se faz da sua figura com os “ladrões do povo”, mande todos para os campos de reeducação, aonde, a alguns, não pestanejará em mandar fuzilar como “lição” para as gerações vindouras.
Samora derrubado
A despeito da conjuntura internacional dos anos 80 e a queda do muro de Berlim nos inícios da década de 90 terem jogado um papel preponderante no desenvencilhar da linha política que caracterizou Moçambique imediatamente após a proclamação da independência nacional, manda o bom senso concluir que do “debate interno” para o desprender definitivo daquela linha política na Frelimo saíram vencidos Samora Machel (então morto) e os que até hoje teimam em julgar que a melhor opção para Moçambique é o socialismo radical que caracterizou a era samoriana. Se tirarmos desta análise a família nuclear de Samora, que apesar do espectáculo que nos oferece sente falta do seu ente querido, pode-se concluir que os que morrem de saudades de Samora e seus ideais nos dias de hoje na Frelimo contam-se a dedos. Pontificam apenas homens como o Marcelino dos Santos (que deve estar a lamentar-se por já não ter ninguém para manipular ideologicamente de modo a manter-se na parte privilegiada da sombra social) e, quanto muito, mais uns barraqueiros que não o conheceram de facto e um senhor barbudo que faz de palhaço em cerimónias de evocação do “saudoso líder”. Este último não se cansa de imita-lo, ora de dedo em riste, ora com as mãos na cintura, berrando para a sua assistência!
Conclusão
Tal como na Alemanha de hoje, onde bandos de skinheads desvairados sob efeitos de alucinantes vivem hoje embalados em discursos de Adolfo Hitler na esperança da reedição no mundo de sociedades humanas em que o ariano ocupa a vértice cimeira da pirâmide na escala de superioridade rácica, em Moçambique, bandos de jovens sob efeitos de bebedeiras diluvianas (como o diria o bom de Fernando Manuel), deleitam-se com os discursos de Samora na esperança de reaverem uma “sociedade justa” que nem sequer conheceram.
Estamos cientes do que resultará desta análise na cabeça de quem não olha para meios na procura de glória, mesmo que tal glória se circunscreva no mero capricho de sentir-se parte da “tribo dominante” ou próximo dela por inerências de sobrevivência. Consola-nos a certeza de que na contra-argumentação desses “moçambicanos mais puros” nada de novo virá senão o arremesso da arma habitual que nos habituaram: rotularem-nos de frustrados, uma adjectivação simplista a que recorrem sempre que a argumentação não justifica o que vivemos.
Canal de Moçambique - 29.02.2012
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