JORGE JARDIM: “Os moçambicanos vivem sob tirania implacável” Paris (do nosso enviado especial Carlos Loureiro)
"O PAÍS-Lisboa)" — Consta que vai publicar um livro na Grã-Bretanha, em inglês. Qual o tema e porque reservou a edição para esse País e não para Portugal?
Jorge Jardim — Tenho, efectivamente, concluído um livro a editar em Londres e que se encontra na laboriosa fase da tradução. A data do lançamento, que pode ainda tardar semanas, dependerá de alguns acertos finais. Dizem aliás, que sou demasiado exigente com os tradutores e isso tanto mais se agrava quanto melhor domino a língua para que se transponha o texto. Dessa preocupação resultou que ainda não foram editadas as versões inglesa e francesa de "Moçambique-Terra Queimada" que estavam previstas para o início desta Primavera. O próximo livro, que penso editar em Portugal dentro de alguns meses, abordará aspectos da política externa portuguesa anteriores a 1974 e situados em torno da posição de Moçambique. As características tão diversificadas dos territórios fronteiriços (Tanzânia, Malawi, Zâmbia, Rodésia, Swazilândia e República da África do Sul) e as pressões de interesse que incidiam sobre a região, impunham actuação equilibrada e muito realística. Conforme os casos, e as oportunidades, oscilava-se entre a convivência e a hostilidade e as relações iam da colaboração ao enfrentamento. Nesse quadro fui chamado a ter, por vezes, intervenção directa e parece de interesse revelar aquilo que sei e posso comprovar com documentos e testemunhos. Existem factos, até agora inéditos, que podem lançar luz sobre uma política coerente que foi definida e, em grande parte conduzida, sob o governo do dr. Salazar.
«As companhias de petróleo continuam a fazer negócio»
— Nas últimas semanas os jornais britânicos têm-se referido largamente ao caso da quebra das sanções contra a Rodésia, mencionando graves acusações formuladas contra as grandes companhias de petróleos. O Governo britânico já anunciou a abertura de um inquérito oficial. A Zâmbia declarou que vai processar aquelas companhias e já outras queixas, em tribunal, se indicam como certas. No seu livro evita este "tema quente" ou pensa abordá-lo? Que sabe da actuação das grandes companhias internacionais, nos fornecimentos à Rodésia?
J.J. — Nisso tudo só pode ser estranho que o Governo britânico haja tardado quase 12 anos em interessar-se por determinar um inquérito sobre factos que eram amplamente conhecidos. Durante muito tempo contentou-se, sobretudo nos largos consulados de Mr. Wilson, a fazer de Portugal o "bode expiatório", realizando espectaculares bloqueios navais. Não evito o tema no meu livro e julgo poder oferecer contributo importante para o esclarecimento da verdade. As autoridades portuguesas nunca fizeram segredo de que passavam por Moçambique os combustíveis destinados à Rodésia e exigiram, mesmo, que fossem cumpridas, sem subterfúgios, todas as formalidades aduaneiras ou outras. Limitaram-se a respeitar o direito de trânsito que, no interesse de todos os países do interior (Zaire, Malawi, Zâmbia, Swazilândia e Rodésia), sempre defenderam coerentemente. Essa actuação portuguesa apoiou-se em indiscutíveis princípios da convivência internacional, adoptando uma estratégia que acautelava, acima de tudo, os interesses de Moçambique. Nunca, de 1965 a 1974, se reconheceu a validade jurídica das sanções e nunca se declarou ilegal o comércio com a Rodésia. Se as companhias internacionais de petróleo (com dominância das britânicas e americanas) continuavam a fazer o seu negócio, pondo os seus interesses mercantilistas acima da observância da legislação dos respectivos países, parece que não era das atribuições do Governo português intervir, proibindo-lhes o trânsito por Moçambique, enquanto os combustíveis chegavam a Lourenço Marques livremente e sem qualquer tropeço, em quantidades crescentes. Os respectivos governos é que ou eram cegos ou andavam muito distraídos. Não lhes era sequer difícil obterem documentação comprovativa do que se passava e daquilo que passava. Por mim, e como sempre, não tenho nada a esconder e não penso esconder coisa alguma. Poderei acrescentar que o Governo de Lisboa, depois do 25 de Abril, continuou a consentir o trânsito de combustíveis (e de outras mercadorias) para a Rodésia até à independência de Moçambique. E isto sob o governo de uma equipa de insignes anti-colonialistas (Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Melo Antunes) representada em Lourenço Marques por Vítor Crespo. Também deviam andar distraídos... Verdade seja que o próprio Governo da FRELIMO manteve a mesma distracção durante muitos meses (de Junho de 1975 a Março de 1976), até bruscamente se dar conta dos deveres de solidariedade que tinha para com os nacionalistas rodesianos.. Sobre tudo isso disponho de informações interessantes e irrefutáveis. Não as ocultarei.
— Como sabe, certa Imprensa de feição extremo-esquerdista refere-se frequentemente, em Portugal, à "acção conspiratória" que estará a desenvolver no estrangeiro para derrubar, pela força, o regime democrático instaurado em Abril de 1974. A que actividades políticas, ou outras, se dedica actualmente?
J.J. — Tenho lido, por vezes, essas referências da Imprensa extremo-esquerdista (e não só...) e afirmo-lhe que nem directa nem remotamente, estou interessado em desenvolver "acção conspiratória", ou qualquer outra, contra o regime que existe, ou venha a existir, em Portugal. Para além da minha vida profissional, e não poucas vezes com sacrifício desta, dedico toda a minha actividade à causa da libertação de Moçambique. Com esse objectivo continuo a realizar tudo quanto esteja ao meu alcance e disso nunca desistirei. A minha opção está, de há ' muito, feita e nem sequer penso em voltar alguma vez a Portugal. Não renego a minha origem portuguesa, até porque não me envergonho do sangue que recebi dos meus Pais e transmiti aos meus filhos. Estimaria ver Portugal retomar a sua independência e a sua dignidade embora me pareça difícil, no caminho que as coisas levam, que tal possa vir a acontecer. Tenho pena mas, no entanto, trata-se de problema em que não me pertencerá intervir. Nem sequer me disponho a comentar as características do "regime democrático" instaurado, em Lisboa, em Abril de 1974. Bem me basta a "Democracia" que esse "Portugal de Abril" acabou por nos impor em Moçambique.
— Dispõe de informações actuais sobre a, situação em Moçambique? É verdade, de facto, que cresce a oposição à FRELIMO?
J.J. —Chegam-me informações actualizadas, e assíduas, sobre o que se passa em Moçambique. Creia que nada se exagera no que se diz quanto à opressão colonialista a que p País está sujeito e de que é agente uma minoria despótica, detestada pelo Povo moçambicano. No entanto, nada pode ser mais autêntico do que o testemunho dos que se vêem forçados a sair do País e todos os dias engrossam a multidão dos exilados. Não deixem de os ouvir. Não deixem esquecer o que eles dizem. Sendo enorme a tragédia dos "retornados" não pode, todavia, permitir-se que seja usada para se desviarem as atenções do que sofrem os milhões de moçambicanos que, na sua própria terra, vivem sob a tirania implacável que é mantida graças ao apoio recebido do estrangeiro. Esses milhões de pessoas foram entregues, indefesas, à brutalidade da nova escravatura que delas dispõe como se não tivessem condição humana. Mais de 100 000 arrastam, neste momento, as grilhetas pelas cadeias e pelos campos de concentração, enquanto muitas mais são deslocadas para trabalharem onde lhes mandam e sobrevivem perseguidas pelo medo. Este é o real drama de Moçambique no qual os responsáveis, aí, parece não atentarem. Andam muito preocupados, no jogo das habilidades partidárias, com a alegada falta de Direitos Humanos no Brasil, mas não se vê que haja idêntica aflição perante as monstruosidades que se praticam em Moçambique. Pois pode ter a certeza de que os moçambicanos respirariam de alívio se pudessem trocar a "Democracia" em que vivem pela "ditadura" brasileira e que os portugueses que ainda restam no Maputo trocariam, com gosto, as "amplas liberdades" de Samora Machel pela "opressão" que os seus compatriotas encontram no Rio de Janeiro. Só não lhe sei dizer como seja possível crescer, mais, a oposição à FRELIMO. É que toda a gente, em Moçambique é já contra a FRELIMO e os homens que a personificam. Dentro das próprias estruturas do Partido (onde há muitos verdadeiros nacionalistas que se sentem traídos) essa revolta atinge níveis insuspeitados por mais que se multipliquem as depurações. Nem é de estranhar que assim aconteça num País onde se esmagaram as esperanças de liberdade e onde a economia se encontra destroçada. Lembre-se de que, até hoje, não houve, em Moçambique, o mais ligeiro esboço de consulta popular ou, ao menos, a promessa de o fazerem. Porque não deixam o Povo pronunciar-se? Onde está o Governo da maioria que durante anos se prometeu como meta revolucionária? Contra estas realidades factuais não bastam os longos discursos nos comícios e nem chegam as visitas de alguns (poucos) seleccionados jornalistas que se limitam a fazer visitas oficialmente programadas e, depois, publicam reportagens onde são evidentes as incoerências e as mentiras. Quem, como eu, ouviu esses mesmos jornalistas insurgirem-se, em Moçambique, contra os controlos que se exerciam sobre os jornais e, hoje, lê o que escrevem, citando, sem um reparo, a amordaçada Imprensa moçambicana, tem dificuldade em admitir que alguma vez hajam sido honestos. Tenho mesmo de reconhecer, com tristeza, que neles a motivação política se sobrepôs à verdade. Para se saber onde está a verdade bastaria, simplesmente, que os representantes da Imprensa independente fossem autorizados a circular por Moçambique. Sugiro-lhe que "O PAÍS" tente enviar, ali, um dos seus colaboradores qualificados. Seria uma experiência interessante e convincente, sobretudo se deixassem visitar alguns locais que posso indicar. São, no entanto, poucas as probabilidades de tal acontecer porque a FRELIMO sabe que não poderia esconder a hostilidade que enfrenta. Só deixam entrar quem estejam certos de escrever o que lhes convém. Não podem aceitar que se saiba que a Oposição popular cresceu por tal forma que só falta explodir. Apesar do terror repressivo que utilizam a explosão da revolta é inevitável. Mas saber esperar é virtude que pertence à sabedoria africana. Não tenhamos ilusões. A luta vai ser dura e vai ser longa em face da escalada da ofensiva soviética na África Austral.
Acção política e acção guerrilheira
— A sua opinião acerca dos Movimentos que se opõem ao regime moçambicano, no próprio território do Indico e, externamente, outros, incluindo o dirigido pelo dr. Domingos Arouca, dissidente da FRELIMO?
J.J. — Os múltiplos Movimentos patrióticos que se opõem à FRELIMO-"marxista" retratam a imagem de um Povo que tenta libertar-se da tirania que lhe foi, colonialmente, imposta. Todos devem merecer o apoio decidido dos moçambicanos. Cada qual pode, e deve, enquadrar-se no Movimento que mais próximo lhe esteja e organizar-se como se lhe apresente mais eficaz para a condução da luta. O objectivo, a todos comum, será o da libertação de Moçambique para a verdadeira independência. Nesta cruzada é tão importante a acção do guerrilheiro que combate o inimigo no terreno como a do político que consolida as estruturas e motiva as populações. Tanto se carece das redes de informação e das acções dinamizadoras como se necessitam os esforços diplomáticos que angariem compreensão e apoio. Sendo assim, não há lugar para vedetismos, nem para divergências pessoais e nem para divisionismos tribais ou partidários. O importante é que cada qual se esforce por cumprir bem a sua missão. A proliferação dos Movimentos patrióticos oferece inegáveis vantagens, sobretudo no interior de Moçambique. Permite maior eficiência ao nível regional e torna mais difícil à polícia política identificar as estruturas e eliminar os quadros. Para além destes importantes aspectos é, todavia, indispensável manter uma sólida unidade patriótica, impedindo que a dispersão possa conduzir ao divisionismo. Nesta perspectiva, o dr. Domingos Arouca exerceu acção muito útil ao aglutinar as forças patrióticas numa orientação política comum; servido pelo prestígio da sua personalidade. O projecto da FUMO pareceu-me inteligente e realista, até porque se limitou ao enunciado de directrizes nacionais a que todos pudessem aderir. Com a diversidade de raças, de tribos e de tendências que é característica de Moçambique creio que a forma federal poderá ser, efectivamente, a mais apropriada para preservar a unidade nacional, consentindo o convívio harmonioso de gentes tão diferentes. Insisto em que nenhuma divisão é admissível e que temos de buscar, sem desfalecimentos, os factores de convergência que nos ligam para frustrarmos as manobras do inimigo que dispõe de meios poderosos e ambicionaria provocar divergências entre os patriotas. Os fracos, os ambiciosos e os profissionais que engordam à custa de planos miríficos têm de ser considerados como elementos perniciosos que acabam por trair a causa que dizem ser também a sua. Quanto à acção armada que se desenvolve dentro do País, com o apoio de todos os Movimentos políticos e consequente participação activa das populações, está hoje coordenada pelo Conselho Nacional da Resistência. Não se trata de impor decisões pela força das armas mas, unicamente, de utilizar as armas para neutralizar a força que impede o Povo de se pronunciar livremente. Não pertenço a nenhum dos Movimentos patrióticos e nem sou, ou pretendo ser, líder de alguns deles. Tenho simpatia por todos mas não há qualquer compromisso que me limite na liberdade de colaboração. No meu caso pessoal penso que é essa a melhor forma de servir. Os problemas de Moçambique só podem ser resolvidos no quadro mais vasto da libertação da África Austral, quando os povos possam, efectivamente, dispor dos seus próprios destinos. Mas temos de entender que ninguém nos ajudará sem que nos ajudemos por nós próprios. Por isso não pode desfalecer a luta dos Movimentos patrióticos.
«O processo contra mim não teve seguimento»
— Politicamente, como se define: ao Centro, à Direita, na extrema-Direita...?
J.J. — Nunca entendi, e nunca aceitei, essa arrumação geométrica e impecavelmente alinhada. Trata-se de mais uma das incoerências em moda na Democracia burguesa de que discordo sem reservas. Parece--me que as pessoas se preocupam tanto mais com o sítio onde formam quanto menos sabem o que pensam. Para lá da "cortina de ferro" qualquer militante socialista seria classificado, segundo tais padrões, como alinhando nas forças reaccionárias da Direita. No Mundo ocidental os católicos progressistas, mesmo inserindo-se na Democracia-cristã, são olhados como "esquerdistas" e até parece que levam isso em gosto. No entanto, para não evitar a sua pergunta, sempre direi que em presença das confusões e equívocos do panorama político português só me poderia definir como situando-me à direita da extrema-Direita. Quero com isto significar a Direita que não tenha vergonha de dizer que o é ou, se prefere, a Direita esclarecida, corajosa, dotada de inteligência e independente dos interesses. Atrever-me-ia a dizer que é essa Direita que vai fazendo falta em Portugal e, talvez até, no Ocidente.
— Quais, actualmente, as suas relações com os líderes políticos africanos com os quais mantinha laços de amizade ou de conveniência, digamos política?
J.J. — Os laços de amizade continuam a ser os mesmos e os de conveniência política também. Não existe um só caso em que tenha motivo para me arrepender da confiança que neles depositei tal como nunca fui desleal para a confiança que me dispensaram. Talvez que, por motivos entendíveis, apenas os nossos contactos pessoais tenham deixado de ser os mesmos. Entretanto, essas relações alargaram-se a outros líderes e creio que isso também será entendível. Cada dia se virá a entender melhor.
— Propôs-se, a certa altura, vir a Portugal, para ser submetido a julgamento. O que diria no julgamento? Ou, melhor, o que alegaria para refutar as acusações que então lhe foram formuladas?
J.J. — Quando se anunciou, oficialmente, que pretendiam julgar-me, não hesitei em me aprestar para seguir para Lisboa e comparecer ante o Tribunal. Declarei-o publicamente e confirmei-o em documentos enviados às entidades competentes. Não sei porquê o processo contra mim nunca teve seguimento. Fiz requerimentos para que prosseguissem os inquéritos (vagos) e se formulassem as acusações (imprecisas) que se tinham anunciado com propósitos, pelos vistos, inteiramente alheios ao esclarecimento da verdade, e das responsabilidades, perante a Justiça. Mantive, em papel selado, as acusações que tinha feito a vultos destacados do novo regime e nada aconteceu. Em papel selado pedi conhecimento das conclusões do inquérito instaurado (segundo notas oficiosas) à minha passada actuação em Moçambique e continuo à espera. Não deixarei de insistir. Parece que ninguém está interessado em concretizar acusações contra mim. Pelo menos, até hoje, nunca me chegou uma simples nota de culpas. Não foram capazes de me desmentir e, muito menos, de me apontar qualquer delito. Talvez se tenham assustado com o que eu poderia dizer num julgamento. Há pessoas que não convém serem julgadas... Também pode acontecer que haja quem receie que acabe por não ser eu a sentar-me no banco dos réus.