O ano de 1994 terminou com as eleições efectuadas em Moçambique, que foram as mais dispendiosas, as mais dramáticas, as mais internacionalmente esperadas como um dos maiores sucessos das Nações Unidas, as mais disputadas tanto na votação como na contagem.
As actividades diplomáticas e jornalísticas que as acompanharam deram ocasião aos dirigentes dos dois grandes partidos de proliferarem extensivamente em detrimento dos outros.
Neste contexto, numa entrevista emitida pela nossa televisão, dada por aquele que recebera muitos elogios do presidente da Renamo por se ter escapado à simulação dum atentado na Zambézia, afirmava, além de outras coisas, que este último representava interesses estrangeiros. A mesma entidade, na mensagem difundida pela rádio e televisão depois da sua eleição como primeiro presidente de Moçambique democraticamente eleito, dizia: «...Doravante, quaisquer discriminações ou abusos sejam tidos como intoleráveis, inadmissíveis, porque se opõem à paz e reconciliação. O novo programa irá iniciar a libertação do país do ciclo da fome, doenças e atraso.»
A nova Constituição de Moçambique, disse Afonso Dlakama, está escrita como a Renamo queria.
Numa outra entrevista, concedida pelo presidente da defunta Assembleia Popular, afirmava esta personalidade que o presidente da Renamo se igualava a Idi Amin.
Finalmente, foi a vez do chefe da Renamo.
Descarrilando o ritmo das eleições, começadas no dia 27 de Outubro, pôs tudo em confusão e dúvidas, pelo anúncio da retirada do seu partido das eleições em curso.
Houvesse razões válidas ou não, esta decisão dum lado custou-lhe votos, enquanto por outro serviu para a sua publicidade, como acontecera na África do Sul com Buthelezi e com o presidente eleito na Zambézia.
No dia 31 do mesmo mês declarava ele a um jornal português: «Eu já ganhei, eu já ganhei, posso não ganhar as eleições presidenciais, pois o ser presidente é uma questão secundária.... Que dia é hoje? Domingo? Sim... Já entrei (para) história deste povo».
No dia 20 de Novembro, convocando uma conferência de imprensa em sua casa, dizia: «Eu? Quem perdeu foi a Frelimo... antes tinha todos os deputados e agora nós temos cento e doze e a União... (como é que eles se chamam) a UD tem nove, portanto nós ganhamos sempre».
Convocar uma conferência de imprensa para colocar perguntas deste género é depreciar o valor das coisas, pois que os jornalistas esperavam ouvir coisas de grande importância, certamente para o desenvolvimento de Moçambique.
Quem conhece a história da Frelimo sabe muito bem que os dois encobriam os seus próprios crimes, que, defendendo-se preventivamente, chamaram sempre à sua vítima criminoso enquanto eles próprios se declaravam inocentes.
Com efeito, ambos sabiam que:
1) Exportando caju, algodão, sisal, etc, para serem processados no estrangeiro, desindustrializavam Moçambique e enriqueciam povos alheios, hábitos coloniais que D. Sebastião Soares de Resende sempre condenou.
2) Fechando as minas de Moatize e desmantelando muitas outras indústrias de produção, cooperavam com a estratégia global dos países desenvolvidos, que consiste em destruir tudo o que é rendoso dos países subdesenvolvidos, para que estes dependam sempre deles.
3) Matando os académicos moçambicanos encontrados no país, impediram a entrada daqueles que estiveram fora. Este facto forçou-os a contratar estrangeiros, privando Moçambique de nativos. Assim beneficiaram os interesses estrangeiros. Esta política traiçoeira continua hoje, todas as vezes que pelo mesmo trabalho se pague melhor ao estrangeiro do que ao nativo. Pois enquanto nos países desenvolvidos os nacionais são preferíveis aos estrangeiros, em Moçambique estes últimos têm prioridade em tudo.
4) Ajudando a ANC, enviando soldados moçambicanos para Uganda e Zimbabwe, não serviam aos interesses de Moçambique. Se não sabiam então olhem como é que retribuem estes países hoje, ensinando que entre nações não existe amizade, mas unicamente negócios.
5) Estando a favor dos fuzilamentos que se seguiram à independência de Moçambique, a Frelimo matou mais gente do que Bokassa e Idi Amin juntos.
As discriminações e abusos a que se refere o presidente eleito dizem respeito à gente de sua região e ao seu partido, que estão no poder desde 1974, sendo ele próprio comandante-chefe.
Finalmente reconhece ele mesmo que em Moçambique nunca houve calamidades naturais senão consequências de guerra, forjada e prolongada pelo seu partido. Mas à custa de quantos moçambicanos e de quanto tempo?
III
Falando do presidente da Renamo, temos que dizer que, quando Paulo VI faleceu em Castelgandolfo, no Verão de 1978, eu e três dos meus colegas estávamos em Verona a caminho de Roma. Passando por Siena, trinta e seis horas depois atingíamos o nosso destino. Pelas 11.00h, visitando o Coliseu, passou pelo Arco de Triunfo o cortejo mortuário daquele Sumo Pontífice, acompanhado por guarda de honra militar para a basílica de S. Pedro.
No dia seguinte, após termos visitado a Capela Sistina, fomos à basílica, para nos despedirmos daquele Vigário de Cristo na Terra, diante do qual todos deveriam flectir os joelhos, quando vivia. Lá estiveram alguns curiosos e turistas como nós.
Aquele homem que presidira ao II Concílio do Vaticano, que era cercado de purpurados e admirado por pessoas de diversas confissões religiosas e ideologias políticas, era guardado apenas por dois cónegos, que se substituíam de hora a hora, como no mausoléu de Lenine, em Moscovo.
Um dos maiores cruéis e mais temidos na História africana foi Samora Machel. Ele também era quase sempre rodeado por militares de uniforme, prontos a parar todo aquele que, sem prévia permissão, quisesse aproximar-se do comandante-chefe das forças armadas de Moçambique. Samora, igualmente como o chefe da Renamo, desejava ardentemente entrar na história deste pobre povo moçambicano.
Quando morreu, os seus amigos, por um lado, construíram monumentos em sua memória, por outro retiraram o seu nome de muitas construções em Moçambique. Hoje em dia, podemos observar tristemente que respeito tem a gente para com as suas estátuas, que saudades tem esse pobre povo do seu tão temido herói.
Por outras palavras, queremos dizer que os homens que impõem um certo respeito, muitas vezes enganam-se quando não tomam em consideração o facto de que são respeitados, lisonjeados, elogiados, etc, enquanto vivem, enquanto existem ainda relações e influências do superior para com os súbditos. Uma vez interrompidas pela morte, cessa tudo. Não pressupõem que estes mesmos homens poderiam falar mal deles logo que morressem.
Não querem crer que uma vez mortos, o facto de os louvar não mais lhes seria útil. Não querem saber que a sociedade humana muitas vezes é ingrata.
Basta ver como foi torturada e morta Sta. Joana d'Arc, onde e como morreu Napoleão, onde param hoje muitas das estátuas de Lenine! Em que situações vivem hoje os desmobilizados da Frelimo, das quais os da Renamo não escaparão! Sr. presidente, não se preocupe com o que dirá a história deste povo, que, ao contrário de muitos outros povos, se tornou pobre por causa de, e apesar dos heróis!
Ao vício de complexo de superioridade ou ao de não querer ser esquecido junta-se muitas vezes aquele outro da presunção. É o de se colocar a si mesmo a um nível tão superior de virtudes espirituais e materiais que não se importe mais com as pequeníssimas coisas, com as coisas que toda a gente sabe, com as coisas do seu nível. E isso é tipicamente dos homens fracos, daqueles que procuram encobrir as suas deficiências. «Que dia é hoje? Domingo? Sim... E a União ... (como é que eles se chamam) a UD...» Aqui o presidente da Renamo dialoga consigo mesmo, porque aqueles que convidara, que quereria fazer de seus alunos, recusaram tomar parte em conversas de nível tão baixo.
O pobre homem esqueceu completamente como é que o povo moçambicano ridicularizava Samora por causa de tal soberba; como o presidente eleito, falando da Renamo numa conferência de imprensa, zombeteiramente perguntava: «Como é que eles se chamam»? Esta maneira vulgar de questionar desonra os seus próprios autores de todas as vezes que estes pensam que este modo de formular a sua artificializada ignorância é a melhor maneira de punir os adversários ou concorrentes. Não se tornam melhores nem mais sábios quando zombam dos outros.
Toma-se ridículo quando uma pessoa dum dos países mais pobres do mundo se preocupa mais consigo mesmo, fingindo esquecer compatriotas em vez de se preocupar em como trabalhar com eles para levantar este país das cinzas em que jaz. E se o Parlamento eleito estiver repleto de gente desta categoria, de gente cheia de si mesma, de gente que despreza outra, então é melhor nem o frequentar.
O que é certo é que quem gosta de publicidade definha logo que os seus admiradores não necessitem das suas asneiras. E, já que o presidente da Renamo ainda é novo, vive na democracia, então o povo moçambicano terá de ouvir muito dele. O nosso único desejo é que não voe sem asas.
O que nos surpreendeu também completamente nesse júbilo desenfreado de desprezar tudo pelo presidente da Renamo foi a afirmação de que o ser presidente para ele era uma questão secundária.
Ora se sinceramente este é o caso, porquê, então, se candidatou para esse posto em vez de o deixar para uma outra pessoa? Não se deslocou ele em viagem de emergência a Harare e Washington? Não andou continuamente atrás da caravana presidencial a mendigar postos ministeriais para si e para os seus mais preciosos adjuntos, caso não fosse presidente de Moçambique?
O Comité Central da Renamo, afirmou Vicente Ululu, decidiu que o futuro governo de Moçambique deverá ser centralizado.
Será que o chefe da Renamo ficou no mato mais de dezassete anos, exposto a todos os perigos de guerra, a todas as chuvas e mosquitos, a serpentes e mosca tsé-tsé apenas para ser membro do parlamento cujo edifício não foi construído para isso? Um edifício que merece comentários pois não dignifica os representantes do povo moçambicano? Uma obra que corresponde a uma pobreza que não merecemos?
Não só no dia 2 de Novembro mas também no dia 20 do mesmo mês deu entrevistas telefónicas à BBC o secretário-geral da Renamo, Sr.Vicente Zacarias Ululu. Em ambas afirmou que o seu partido faria uma oposição construtiva, aconselhando o governo em muitas matérias como deveria agir.
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(Na foto: Da esquerda para a direita: Marcos Milato, António Nunes, Vicente Zacarias Ululu, António Disse, Carlos João Mbwere, Artur da Fonseca, Anélia Aníbal Chiienge, Aníbal Chilenge. Março de 1994.)