Fernando Couto fez parte dos poucos brancos que se opuseram ao regime colonial e apoiaram a conquista da independência nacional. Por isso, diz que a “população branca não nos aceitava, porque tínhamos traído os princípios da raça”. O seu contributo foi na divulgação de comunicados, formação de adultos, apelo à consciência nacional...
Fernando Couto é um empresário que partilha com o mundo o que sabe sobre a nossa história num livro de 473 páginas. Independentemente de ter escrito a sua obra com os olhos postos na fase final de luta de libertação nacional, inicia revelando factos e acontecimentos que antecederam essa data, na cidade da Beira, terra onde cresceu. Pode partilhar connosco o clima que se vivia na cidade da Beira na altura em que iniciava a luta de libertação nacional, na década 60?
Bem, a Beira sempre foi considerada, na época colonial, como uma capital do racismo e há razões que levavam a que esse conceito de ser capital do racismo fosse, na realidade, infelizmente, verdade, porque várias coisas conjugaram para que houvesse essa questão, nomeadamente, a aproximação à Rodésia, onde havia um racismo muito vincado, aliado ao facto da Beira ser uma cidade artificial, no sentido de ter sido construída sob um pântano, em que era necessário congregar muita gente originária de vários pontos não só do país, como de várias origens. Eu tive o privilégio de, em várias viagens, visitar alguns pontos nevrálgicos da guerrilha em Moçambique no período da luta de libertação nacional, em Cabo Delgado. Em finais de 1962, provavelmente, ainda era muito miúdo, quando fui com meu pai à Paris, acompanhado por toda a família e o meu pai ia para lá buscar um carro. estava à sua espera, na estação de comboio, Valeriano Ferrão, embaixador das Ilhas Ferrão e, a dado passo, dizia ao meu pai para que não voltasse para Moçambique, porque havia sido constituída a Frelimo. E foi a primeira vez, eu devia ter 10 a 11 anos, que ouvi dizer que havia um movimento de libertação de Moçambique. Só me lembro que no fim o meu pai disse-nos que nunca falássemos com ninguém em relação àquela conversa que havíamos tido nessa altura.
O facto da beira ou os beirenses colocarem-se sempre de costas voltadas ao regime colonial está muito ligado ao que teria dito na sua introdução, que a cidade da beira era considerada a capital do racismo?
Acho que está e, sem dúvida alguma, que está, paralelamente, ligada à questão de ser a segunda cidade, estar numa zona centro e havia a questão de que a capital “terramoscule” devia ser a capital, porque no centro do país é que deviam estar sempre as capitais (...). Não sei quais eram as bases dessas teorias, nem sei de que teoria se tratava, mas era ambição e sentia-se uma grande ciumeira contra a capital. Portanto, achavam que estava tudo concentrado na capital e que não havia nada que acontecesse em relação à própria cidade da Beira. Daí que acho que se criou uma cultura que em qualquer acção das entidades oficiais tinha, imediatamente, uma reacção de não aceitação e que, de certa maneira, ficou lá esse embrial de que os beirenses são diferentes.
E essa não aceitação por que é que, na maioria das vezes, tinha que ser muito agressiva? Os beirenses eram tidos como um povo muito rebelde, agressivo e, de alguma forma, o regime colonial temia a reacção dos beirenses...
Bem, lembra-me aqui o nosso saudoso amigo Carlos Cardoso, também um beirense, rebelde e, portanto, todos nós somos um pouco rebeldes nesse sentido. Mas citando o Carlos Cardoso, com quem tive várias conversas sobre as origens dessa questão, uma delas é que aquela cidade é um pântano, não tem condições para a vida humana em si. É uma luta permanente do homem contra a natureza (...). Portanto, contra a natureza; luta contra o centralismo da capital; luta contra o ser a segunda cidade. No caso da cidade da Beira, como estas tensões viveram-se muito mais intensamente e era um guro, era uma cidade já de dimensão muito grande, que não era nem Pemba, nem Lichinga, nessa altura vila Cabral, etc., a questão da luta armada colocou-se e encerrou, de alguma maneira, posições, ou se era a favor ou se era contra. Não havia aqui questões de não quero saber. As pessoas passaram a ser obrigadas a tomar uma certa posição e isso agravou ainda mais a situação de tensão que existia na própria cidade.
Essa consciência de luta armada, de que existia uma frente, um movimento unido que se organizou para lutar contra o regime colonial, quando é que chegou à cidade da Beira e quando é que é apropiada pelos jovens com vista a filiarem-se?
Logo de início, desde 1964, no início da luta armada. E mesmo antes, logo depois de 1962 e 1964, apercebi-me que, através dos contactos misteriosos que meu pai tinha, haviam algumas pessoas que desapareciam e perguntávamos: Mas para onde é que foi essa pessoa e diziam que viajou para um local misterioso, até aqui um dia o meu pai foi preso pela Polícia Política e nunca soubemos por que foi preso. Mas sei que com a Polícia Política andava metido em algumas questões dessa natureza e tinha ligações no sentido de auxiliar as pessoas que faziam essa tal misteriosa viagem rumo a Tanzania e, cada vez mais, ao longo dos anos, a partir de 1964, esse movimento era cada vez maior, de gente que saía para se juntar à luta de libertação nacional e de gente que, às 18h30, desaparecia para o silêncio das suas casas para ouvir as emissões da voz da Frelimo, na altura.
Isto para dizer que logo que se fundou a Frelimo, em 1962, e iniciou-se a luta armada já em 1964, muito rapidamente se difundiu esta ideia de movimento e as pessoas pouco a pouco foram aderindo?
Foram aderindo, há casos de pessoas que hoje são dirigentes como, por exemplo, Hama Thai, Feliciano Gundana. todos os outros daquela zona foram aderindo e a ajudar isso também acho que a posição da igreja católica na Beira, sobretudo através de algumas missões, auxiliou, grandemente, para que houvesse essa consciência nacionalista.
Por essa razão é que existiam muitas richas entre a igreja católica e o regime colonial?
Por essa razão existiam muitas richas para uma prelecção muito difícil que houvesse na igreja católica, na então província de Manica, Sofala, com as entidades coloniais, coisa que não se passava, de forma genérica, no restante do país. Isso deve-se, essencialmente, e é bom que seja assinalado, à obra feita pelo primeiro bispo da Beira Dom Sebastião Soares, um homem que teve uma obra muito de vitórias em todos os sítios.
Na sua obra descreve Beira como uma cidade à beira do fim, porquê?
Porque, é um caso por julgar com as palavras, aquela Beira e, quando você pergunta as pessoas por que a Beira se chama Beira, ninguém sabe ou poucas pessoas sabem a origem e a razão da cidade da Beira chamar-se Beira. Portanto, aquela Beira, que se chamou Beira, em homenagem ao Príncipe Dom Luís, que nasceu, era príncipe das beiras, e não tinha um outro nome para dar quando o posto administrativo foi constituído, tinha de facto chegado ao fim. A Beira colonial estava no princípio do fim, havia uma nova cidade (...), foi o princípio e o fim de um regime que, felizmente, acabou.
Em conversas com antigos combatentes da luta de libertação nacional refere que os brancos eram muito pouco desconfiados no sentido de terem uma conexão com a Frelimo. Na cidade da Beira, em particular, e em Moçambique em geral, qual foi o nível de contribuição de pessoas brancas para Frelimo?
Éramos uma minoria que se contava pelos dedos das minhas duas mãos. Portanto, a educação que se dava nas escolas era, totalmente, anti-nacionalista moçambicana. As pessoas também não questionavam, por que questionar quando se vive relativamente bem e, portanto, nós que demos apoio à frente de libertação éramos visto, nesse sentido, como traidores. A própria população branca não nos aceitava, porque tínhamos traído os princípios da raça, digamos assim, e éramos vistos como malucos, rebeldes, desvairados. E tínhamos também, vamos ser francos, alguma protecção, porque as entidades da Polícia Política, muito embora não estivessem muito sob controlo, se nos prendessem era uma chatice. Para além de mais, tinham que nos levar ao tribunal, coisa que, na maior parte dos casos não acontecia, porque as pessoas pura e simplesmente desapareciam, não para a tal viagem misteriosa rumo ao Norte do país, mas desapareciam para destinos que seriam a morte ou a cadeia e nunca mais se sabia das pessoas. No nosso caso, como eu disse, o meu pai esteve preso, fui chamado várias vezes, a minha mulher também foi chamada, tentando através dela obter informações sobre se eu tinha ou não conexões e no ano 1973, que foi o último ano em que estive em Moçambique antes dos Acordos de Lusaka, fizeram uma coisa muito conveniente. Chamaram o meu pai e disseram que esperavam que eu desaparece para Portugal e que não voltasse mais senão desaparecia na cadeia.
Que tipo de apoio prestou ao movimento de libertação?
Primeiro, na divulgação dos comunicados; em segundo lugar, que era uma questão essencial, na educação de adultos. Fundámos uma escola, que começou com dois alunos, e chegámos a um nível de uma ideia que nos tirou sono completamente, porque não tinha capacidade de ministrar sempre as aulas a tanta gente. E aproveitar esta questão do ensino para fazer passar algumas mensagens políticas em que não era preciso mencionar o nome da Frelimo, mas a apelar à consciência nacional de que a solução dos problemas, naquela fase, passava, primeiramente, da conquista da independência nacional.
Então actuou nessa altura como um dos combatentes da clandestinidade?
Eu não gosto de me chamar assim, mas actuei consciente dos riscos que tinha essa minha actuação. Sabia que estava a pisar o risco das normas permitidas e que poderia ter consequências desses mesmos riscos. Portanto, sabia que estava a ser vigiado. As minhas cartas e correspondências, na altura não havia e-mail, vinham abertas, a dar sinal de que toma cuidado e tinha consciência disso.
Não desenvolvia um certo sentimento de medo em relação ao que podia acontecer a si e à sua família por este apelo?
Não, sinceramente, não vá dizer que sou muito valente, mas talvez era inconsciente e gostava de pisar em riscos. Sentia-me (...) e o inspector-chefe na Beira chamava-se Campos e a gente até, uma vez, quando ele passava próximo de nós, disse estes campos têm que mudar, para dar a mensagem de que havia outros campos, mas, como ele sabia muito bem bater e muito mal interpretar pequenas falácias de dizer, não se apercebeu, cumprimentou-nos e riu-se. Para ser sincero, éramos um pouco conscientes, não tínhamos essa questão do medo.
E que olhar lançavam para os moçambicanos que se juntavam ao regime colonial para denunciar actos de patriotismo por parte dos que estavam engajados com os ideais da Frelimo?
Pensávamos muito mal deles e lembra-me que conheci um sujeito quase gigante e que era contínuo no Jornal Notícias da Beira, e a gente sabia que era agente da PIDE, e dizia-nos que isto de ser da PIDE cansa-me; isto de dar porrada nas pessoas põem-me com as mãos a doer. Para o nosso espanto, quando abrimos a escola, um dos primeiros alunos a matricular-se foi ele e que num teste, o Mia também era professor, perguntou o que era a membrana tificitária do nariz e ele respondeu que era uma casa onde se vendia tintas (risos), era muito bom a bater. Agora, sabíamos que não nos podíamos meter com eles, porque aí é que deixávamos a linha vermelha para que eles não perseguissem. Portanto, víamos falta de moral, de princípios destas mesmas pessoas, quer dizer, como é que alguém se poderia gabar de que essa actividade de bater que era muito cansativa e que até chegavam a doer as mãos...
Na estrada da vida também foi jornalista nos anos que antecederam ao golpe de Estado de 25 Abril de 1974 até ao período dos Acordos de Lusaka. Quais são as recordações mais marcantes que guarda desse período quanto à cobertura de momentos históricos?
Primeiro, foi a minha entrada para a redacção, tinha acabado de chegar de Portugal, onde estava a estudar na altura. Fui à Baixa (...) e encontrei o José Luís Cabaço, que me perguntou o que estava a fazer e disse-lhe estava à procura do meu pai. Novamente, ele questionou o que iria fazer e eu disse que não tinha nada por fazer, que vinha fazer a revolução e ajudar no que for necessário. Ele disse “fica aí, tens uma máquina de escrever, ficas aí a trabalhar (...)”. A segunda questão foi praticamente duas semanas depois, eu disse que era preciso falar com a Frelimo oficialmente, como um jornal que era extremamente anti-Frelimo. Pedi uma ligação telefónica à central dos correios para falar com o Instituto de Moçambique e todos disseram que não estava a regular bem da cabeça e que isso não ia acontecer. Do outro lado, atendeu-me Jorge Rebelo. Portanto, ter sido, de facto, a primeira pessoa, a nível oficial do jornal, que entrevistou um dirigente da Frelimo, não como alguém que se entregou, mas como alguém que dizia quais eram os princípios negociais da Frelimo. Lembro-me que quando acabámos a entrevista, que demorou dois a três minutos por telefone, aquilo na redacção foi uma festa grandiosa, porque tínhamos conseguido estabelecer o contacto. Depois também houve momentos drásticos naquele jornal, na medida em que fomos atacados várias vezes. Portanto, éramos objectos de ameaças. Eu próprio, certa vez, telefonaram-me a dizer que ia ser executado por crimes contra o povo moçambicano e cheguei à beira do Cabaço e ele disse: “quero ir a Dar-es-salam?” E eu disse “não quero morrer aqui...”, para me tranquilizarem, deram-me um revólver, nunca soube usá-lo até hoje, e passei a ter uma vida em que os meus colegas é que me vinham buscar em casa, quase uma escolta feita pelos meus colegas quando o jornal fechava, duas a três da manhã. Foram momentos muito marcantes para toda a minha vida. Foram os momentos mais felizes profissionais que tive, com mais adrenalina e as pessoas sentiam que estava a fazer, de facto, um trabalho histórico.
O PAÍS 13.03.2012