NOVE milhões e 862 mil habitantes, dos 11 milhões e 500 mil habitantes potencialmente activos, não pagam impostos. Ainda assim, a Autoridade Tributária Moçambique (AT) considera que, pelos números e impactos alcançados em 2011, o estágio da campanha é encorajador. O país já conta com 42 novos postos de cobrança, prevendo-se que até 2014 sejam 96, que se juntarão às actuais 30 Direcções de Áreas Fiscais (DAF’s), incluindo 3 Unidades de Grandes Contribuintes (UGC).
Diante de alto índice de desconhecimento da importância do imposto – e do seu pagamento voluntário e directo –, neste 2012 a Autoridade Tributária de Moçambique (AT) redirecciona a campanha de educação fiscal e aduaneira e popularização do imposto para zonas recônditas do país – postos administrativos.
No dia 27 de Fevereiro, depois das 8.00 horas deixamos a cidade de Maputo para trás. Embalados ao timbre da melodia da Bulelwa Zahara Mkutukana – cantora sul-africana que recentemente encantou em Maputo – rasgamos a savana verde de Marracuene e Manhiça. São 10.00 horas e o ambiente que nos envolve é de um sol tórrido que se reflecte nas águas que incharam o mítico rio Incomáti lá em baixo que, cedo, evoca à lembrança de que só há uma hora que partimos de Maputo e Inhambane ainda dista quatro ou cinco horas de trajecto em cerca de 500 quilómetros da EN1.
Pelas frestas do Ford 4X4 verde-cinzento ressurgem imagens sombrias de sinistralidade que chamam à prudência de quem está ao volante para abrandar a marcha, que andar devagar jamais é recusar a viagem, como se diz em adágio popular.
Então andamos abaixo de 100km/hora. Ainda assim, viajar – definitivamente – nas nossas estradas é um risco. Todavia, esta aventura à “Terra de Boa Gente” – como sói ouvir-se – é aprazível, porquanto a missão é nobre e, sobretudo, patriótica: dar continuidade à campanha de educação fiscal e aduaneira e popularização do imposto que desde Abril de 2010 visa construir uma consciência voltada ao exercício da cidadania.
Como diria o delegado da AT em Inhambane, Henriques Lacerda, na abertura do seminário de formação de disseminadores destinado aos estudantes da Escola Superior de Hotelaria e Turismo (de Inhambane) da Universidade Eduardo Mondlane (ESHTI/UEM) ampliar a rede de multiplicadores de educação fiscal é propiciar a participação do cidadão no funcionamento e aperfeiçoamento dos instrumentos de controlo social e fiscal do Estado. Certo.
Certo também é, concertadas as estratégias, 29 de Fevereiro ficou reservado para realização do seminário que permitiu formar mais de meia centena de disseminadores do imposto, sendo a maioria estudantes da ESHTI/UEM. Aritmeticamente, os números parecem crus e chocantes. Mas se se tomar em conta que o encontro foi realizado na manhã de uma sexta-feira – e no período laboral – o leitor é convocado à prudência, porquanto eventualmente muitos aspirantes a disseminadores estavam ocupados com outros afazeres não menos importantes. E mais: “o que interessa não é propriamente formar uma multidão de disseminadores”, argumentariam os organizadores – nos corredores. O fundamento é este: “o importante é, sim, falar com pessoas em momentos e lugares certos”. A história que se segue é atestadora.
Formação de disseminadores de impostos
Âmido: um “anti-imposto” que virou disseminador-mor
Bastou que o delegado da AT e a directora da ESHTI/UEM se retirassem do salão onde decorria a formação para que o jovem Âmido, estudante finalista, “rasgasse” o ar com o seu dedo, sedento de expressar o que lhe fervia na alma, fazia tempo: “Eu não pago impostos”, disse, categórico. Ante a perplexidade até de colegas da ESHTI/UEM, o jovem não se embargou por aqui: “ (…) Não pago, e jamais pagarei porque não vejo benefícios nisso (…)”.
Comovidos, Lemos Formiga e Ernesto Banze (da AT), de um lado, Policarpo Tamele e César Caetano (da ARO), doutro, mobilizaram-se contra o inusitado espírito anti-imposto do estudante Âmido. Eram 10.00 horas quando ele “partiu a louça” e (con)gelou o salão. Mas, para a surpresa de todos, eis que, já pelas 14.00 horas, o jovem se mostrava satisfeito e sorridente: dissuadido da sua antiga mentalidade anti-fiscal, ele já gabava-se, antes mesmo do encerramento do evento, num disseminador-mor. E tinha razão: acabou ganhando – por força do memorando firmado entre a Aro e a AT em Julho de 2011 em Xai-Xai – uma vaga de estágio na Delegação (da AT) na “Terra de Boa Gente”!
COLIGAÇÃO COM O IMPOSTO
17.00 horas de 16 de Março: de novo estamos no asfalto da EN1. Desta vez o destino é a vila de Chibuto, aonde, depois de deixar a EN1 e desviar à esquerda, chegamos cerca das 22.00 horas. Chibuto ainda não dormia. Razão: o “Moçambique em Concerto” – do Gabriel Júnior e seu elenco da TVM – acabava de arrancar e estava já ardente.
Mas, por motivos insondáveis da mãe-natureza, o mega road-show – palco ideal para disseminar os impostos – acabaria por ser interrompido pela chuva que chegou violenta. A enxurrada pôs o povo – e as estruturas de Chibuto – em debandada. Milhares de sonhos frustrados, sobretudo de quem desafiou sono e distância (há quem tenha ido de Xai-Xai e de outros lugares distantes de Gaza, por exemplo) para chegar ao local para ver o “Moçambique em Concerto”. E ouvir o novo “evangelho” tributário enquanto daria um gostinho ao pé.
Mas nem tudo foi em vão: o cidadão de Chibuto – este – é irreversivelmente, optimista: de manhã voltou às ruas da vila. Desta vez o motivo, afinal, é, também nobre: naquela tarde sufocante de 16 de Março último a povoação entrava na globalização – à moda nacional – através do desporto e cultura, pois seria lugar da abertura do “Moçambola/2012”.
Além disso, em Chibuto decorria, em paralelo, uma campanha promovida pelo Standard Bank – passe a publicidade – para registos de nascimento e aquisição – a título gratuito – de bilhetes de identidade de concidadãos que, por motivos alheios e diversos, à data não os tinham ainda.
Como não são todos os dias que o povo de Chibuto se reúne num só lugar assim, a equipa da AT se fez ao local e formou, num ápice, mais 75 disseminadores de impostos. Mau grado foi outros comerciantes terem estado envolvidos com corpo e alma na organização da festa do “Moçambola”. Ainda assim, “da próxima não terão espaço suficiente para albergar contribuintes”, brincou um deles, no encerramento, ao mesmo tempo que adquiria o seu NUIT, tal como o fizeram centena e pico de outros chibutenses, certamente.
Pagar com ou sem o IVA?
Ao intervirem de forma breve na abertura do curso, o ex-director da Juventude e Desportos, João Mucavele, e o director da Área Fiscal local, Luís Rombe, reiteraram a já propalada vantagem do envolvimento na campanha de popularização de impostos de todos os segmentos socioeconómicos do distrito. Nisto, realçaram que os empresários são os mais elegíveis, por estes serem os potenciais contribuintes e influenciadores de comportamentos de cidadãos-clientes.
Dando ênfase à cidadania fiscal – o tema que nos faz percorrer Moçambique lés-a-lés – o director da Juventude e Desportos (de Chibuto), aflorou sobre a Lei do Mecenato. Mucavele mostrou os incentivos fiscais do empresário que apoiar a cultura e desportos. Mas aproveitou a ocasião para deplorar a atitude de alguns comerciantes que acabam mobilizando os seus clientes à fuga ao fisco.
O truque, afinal não é novo: “eles negociam com os clientes se estes querem pagar com ou sem IVA”, explicou Mucavele, para quem a atitude é prejudicial ao Estado que fica privado de construir mais infra-estruturas sociais e garantir a segurança pública. E não só.
Os empresários locais presentes – como bons cidadãos – respondendo aos apelos formulados no evento, enalteceram que já se sentem motivados em continuar a contribuir para (e)levar a campanha para as zonas mais recônditas de Gaza. E não só: pagar os impostos… também!
Da alma popular à aritmética (des)animadora
Em paralelo aos seminários de formação de disseminadores temos desencadeado certos Vox-populi para ouvir o verdadeiro pulsar da alma tributária do povo. Em Inhambane – como relatamos na caixa ao lado – observamos que há muitos jovens como o Âmido (do ESHTI/UEM) que, não obstante serem universitários, passam ao lado senão mesmo longe dos (im)postos. Idem em Chibuto onde alguns entrevistados perguntavam, sem receio: “Mas o dinheiro que cobram é para quê? O Estado não tem dinheiro”? E como nos beneficia o imposto?”.
Quem é educador fiscal não se constrange quando ouve isto: já escutaram o mesmo em Mutarara, Moatize e Macanga (Tete); em Gondola, Catandica e Manica (Manica). Até vereadores municipais – de Gondola (Manica) e Vilankulo (Inhambane), por exemplo – desconhecem a base legal incidência de cálculo que varia de 1 porcento, a 3 porcento sobre o salário mínimo nacional vigente na Função Pública, conforme seja uma autarquia de 1ª, 2ª e 3ª categorias respectivamente.
Mesmo diante destas contrariedades, o certo é que o número de potenciais contribuintes registado pela Autoridade Tributária (AT) quadruplicou nos últimos cinco anos. Até 31 de Dezembro de 2006 estavam inscritos na AT um total de 391 mil contribuintes, porém cinco anos mais tarde, a 31 de Dezembro de 2011, o número cresceu para um milhão e 600 mil, facto que se reflecte, por sua vez, na arrecadação fiscal global. Porém, refira-se que os cerca de um milhão e 600 mil contribuintes registados representam apenas 14 porcento da população potencialmente activa, equivalente a pessoas que trabalham ou podem trabalhar. Em 2007, outrossim, apenas 10 porcento da população activa pagavam impostos, o que significa que houve um crescimento na ordem de quatro porcento.
Dados de até 16 de Março último – data da realização do VI Seminário de Execução Fiscal – mostram que o país conta(va) com um milhão e 637 mil e 888 contribuintes. Deste universo, seis porcento em Imposto Simplificado para os Pequenos Contribuintes – ISPC. Refira-se ainda que, à data – 16 de Março – nove milhões, 862 mil e 112 habitantes dos 11 milhões e 500 mil habitantes potencialmente activos não pagam impostos.
Lideres comunitários
Latência histórica e a busca da nova cultura tributária
Mas como se explica que os moçambicanos possuam uma cultura tributária simultaneamente elevada e latente? Várias são as teses que convergem com o estudo sociológico em curso de Raimundo Mapanzene que defende que, provavelmente, seja resultado do processo de colonização, tomando como exemplo específico o Imposto da Palhota que era cobrado coerciva e violentamente – por exemplo, que por meio século serviu para alimentar mais da metade das necessidades da Coroa colonial portuguesa –, embrenhando-se sobremaneira na vida das populações indígenas e nativas. Acrescenta Mapanzene que latente porque o processo da luta de libertação nacional desencadeada pela FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique – teve como um dos principais motes, a libertação do Homem e da Terra da exploração colonial, da escravatura, do trabalho forçado e da subjacente imposição, o que depois da independência nacional, a 25 de Junho de 1975, deixou de ser praticado pelo Estado revolucionário pós-colonial imediato.
Falando recentemente na vila da Manhiça, em Maputo, a repórteres que acorreram significativamente à cerimónia de abertura da campanha de educação fiscal e inquiriram sobre o fenómeno, o presidente da Autoridade Tributária de Moçambique, Rosário Fernandes, reconheceu que, não obstante o cadastro alcançado até ano passado, ainda persistem desafios pela frente uma vez que as pessoas ainda não têm a cultura de pagar impostos. E mais: muito menos conhecem o seu impacto no financiamento da despesa pública e a fiabilidade do sistema de governação.
Ainda assim, “o estágio da campanha é encorajador pelos números que apresentamos no ano passado, tivemos um impacto visível em termos de cadastro fiscal”, considera Rosário Fernandes, concluindo que perante estas evidências, a AT prosseguirá o desiderato da promoção da cultura de pagamento de impostos, materializando os desígnios do projecto de educação fiscal e aduaneira e popularização do imposto. É uma acção que requer o protagonismo dos seus parceiros tradicionais: formais e informais, líderes comunitários, confissões religiosas, associações comerciais, entre outros seguimentos da sociedade. E Bulelwa Zahara Mkutukana continua a nos encantar, mesmo durante esta redacção!
- Anselmo Titos (Colaboração)