L. MARQUES, 30 (Delegação) — «Meus olhos choram e meu coração fica triste quando o pessoal vem dizer o que meu filho faz», afirma, com voz embaraçada, comandante Moisés Machel.
A nossa, frente está um negro de feições duras, cabelos esbranquiçados, olhes perspicazes. Fato escuro, camisa cor-de-rosa, bem vestido. É praticante da Igreja Metodista Livre. Pesa as palavras, falando lenta e prudentemente. A nossa frente está o pai de Samora Machel, presidente do movimento anti- português (FRELIMO) (ou Frente de Libertação de Moçambique). À sua volta, reúne-se grande parte do clã, constituído por três mulheres (uma é a mãe de Samora), vários filhos, irmãos, sobrinhos. Ele não é só comandante de nome; é também o comandante de facto, no conjunto das cinco palhotas maticadas da sua terra.
«Nasci aqui mesmo, a 1 de Fevereiro de 1900. Esta terra, que era já dos meus pais, chamava-se Mananganine», refere papá Machel. Hoje aquela terra situa-se à entrada da Aldeia da Madragoa, onde vivem quase duas centenas de europeus, e que é o núcleo de povoamento mais progressivo do célebre Colonato do Limpopo, a duas centenas de quilómetros de Lourenço Marques.
«Esta é a mamã de Samora», apresenta o comandante. «Chama-se Gougnia Thema Zimba. É filha de Matonga, chefe do grupo de povoações Zungula (já falecido), da regedoria Canheze, aqui vizinha. Nasceu em 1902».
Thema Zimba, pequenina, tem uma cara prazenteira. Sorri. O cabelo branco tapado com o chapéu «beige» como usam as mulheres da Suazilândia.
E comandante Machel prossegue: «Desta mulher tive 13 filhos. Nove morreram. Quatro estão vivos. O mais velho chama-se Josefate Moisés Machel. Enquanto trabalhou na garagem dos Oliveiras, em Chilunguine (Lourenço Marques), fez a quarta classe. Depois estudou mais. Hoje é lá enfermeiro, no Hospital Miguel Bombarda. O segundo filho chama-se Magarila Samora Machel. Fez a quarta classe na Missão Católica de S. Paulo de Messano, Bilene, do Distrito de Gaza. Depois mandaram-no estudar para a Ilha da Inhaca. Parece que fez o quarto ano do Liceu, enquanto aprendeu para enfermeiro. Em 1951, mais ou menos, empregou-se no Hospital Miguel Bombarda».
Interrompemos. Trata-se do chamado Samora Moisés Machel, actual Presidente da FRELIMO. O pai reafirma que seu nome verdadeiro é Magarila. Que ele optou pelo nome Samora, porque assim era conhecido. Que também nasceu ali, naquela «sua» terra, a 11 de Maio de 1932, numa palhota onde, mais ou menos, fica hoje o edifício da Administração. Que Magarila tem um filho de cerca de onze anos a estudar em Lourenço Marques.
Comandante Machel, sempre lentamente, fala ainda dos outros irmãos de Samora: de Boaventura Moisés Machel, nascido em 1936, a trabalhar numa lavandaria em Benoni (Transval, África do Sul); e de Enosse Orlando Machel, nascido em 1939, electricista, a residir no Sul de Moçambique.
Perguntámos subitamente se sabem que Samora é viúvo. Não mostraram espanto, mas a mãe, Thema Zimba, comove-se e chora com visível comoção. Ficamos convencidos que, tal como ainda recentemente afirmou Feliciano Dimbeju (ex-FRELIMO regressado de Nairobi com o apoio da Cruz Vermelha Internacional), eles sabem que Samora mandou envenenar a mulher, Josina Mutemba.
O pai de Samora, porém, inflexível, quebra o gelo da situação, continuando a falar, embora com palavras ainda mais mastigadas: «Ele visitou-nos, pela última vez, no Natal de 1961. Nada nos disse do que pensava fazer. Nunca nos disse nada, tal como nunca escreveu. Nesse Natal, eu fiz grande festa, aqui mesmo, na minha terra. Mais tarde soube que ele foi para «outra parte». E meus olhos choram e meu coração fica triste quando as pessoas vêm dizer o que o meu filho faz. Porque eu não gosto, e a mamã também, que ele ande na «outra parte».
E mais adiante: «E usei que ele tem muitos inimigos, muito perigosos. Que esses inimigos são os camaradas dele, os macondes e outra gente do Norte. Querem matá-lo. E isso traz sempre o meu coração triste. E o meu coração ainda sofre mais, quando sei que ele também tem medo...»
«Como sabe isso, se não recebe notícias?», interrompemos.
O comandante Machel sentiu-se apanhado. Hesitou pela única vez. Mas respondeu muito lentamente: «Eu sei disso porque conheço o Samora».
«Acha que Samora poderá ganhar a guerra? E, se ganhar, poderá ser um bom presidente de Moçambique?» — indagámos ainda.
«Samora tem muitos inimigos ao lado dele», responde. Nunca pode conquistar Moçambique, que é muito grande. Também nunca poderia ser o governador, pois para isso é preciso estudar em muitos liceus, ter muito saber. E Samora ê apenas um bom enfermeiro.»
O pai do Presidente da FRELIMO, velho agricultor, aceita um dos nossos cigarros. Começa a desenhar-se mais confiança no seu rosto, enquanto disparámos a máquina fotográfica, e falámos da sua gleba.
Tem vinte mil metros quadrados de terreno, irrigados e apoiados tecnicamente pelo Gabinete do Limpopo, que integra o maior núcleo de povoamento de Moçambique, incluindo a cidade de Trigo de Morais, uma dúzia de aldeias com todos os requisitos, uma Cooperativa Agrícola com cinco fábricas transformadoras. A sua terra, outrora estéril, está hoje integrada num dos maiores planos de irrigação do Ultramar português (cerca de 80 mil hectares) que lhe permite ser, por exemplo, a maior produtora de arroz, tomate e luzerna de Moçambique. Desse plano faz parte a barragem de Massingir, obra no montante de 590 mil contos, em adiantada fase de construção.
Comandante Samora fala: «O Governo tem trabalhado bem. E eu colaboro, até nas «banjas» (reuniões das autoridades com as populações), quando é preciso. Mas agora pedi mais 40 mil metros quadrados de terreno, porque só assim poderei expandir à vontade a minha casa. Porque o meu filho mais novo, aquele que ali está, tem quatro meses. E meu irmão, Tanquisso Gabriel, também precisa de mais quatro hectares».
Estávamos a poucas horas das eleições para deputados à Assembleia Nacional. Perguntámos ao pai do Presidente da FRELlMO se iria votar pelo Governo que o filho combate. “Voto pelo Governo Português, porque fez da minha terra uma grande terra”, salienta com energia. «Nada percebo das ideias do meu filho. Só desejo mais quatro hectares para aumentar a gleba. E Samora pode voltar, que muita alegria dará aos nossos corações. Não sabemos se as autoridades lhe fariam bem ou mal. Mas pelo que vemos em relação aos outros, haviam de o receber bem, E eu e mamã havíamos então de morrer felizes...»
NOTÍCIAS DA BEIRA – 31.10.1973
(Fotos: recorte do jornal, Pai e Mãe de Samora Machel)
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