O Azul do Índico Por: Afonso Brandão
Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento
(À Memória do Jornalista Rebelo da Silva e à Margarida Manteigas, com saudade)
A sua figura magra corta o ar quente ao passar por entre as mesas, através da pequena sala cheia de gente. Senta-se numa cadeira de madeira, a uma mesa redonda. As cadeiras ali são todas iguais e é difícil arranjar um lugar livre. Mas ela não tem presa, esperou junto ao balcão que vagasse uma mesa. Senta-se, um empregado jovial vem saber o que deseja, pede um bolo-de-arroz, um café e uma água, o mesmo que pediu com ele, na primeira vez, já lá vão quarenta anos.
Eram ambos jornalistas e estavam ligados ao então jornal TRIBUNA (hoje DOMINGO). Corria o ano de 1973.
Mas ela não tem fome, entretém-se a desfazer bocados do bolo-de-arroz enquanto olha hipnotizada para a porta com a sineta por cima que toca cada vez que se abre, esperando que ele entre no café. Ele enviou-lhe um bilhete num envelope para casa. Ela nem imagina como ele conseguiu a sua morada. Não estavam juntos há mais de um ano. O bilhete diz: «Tenho pensado em ti todo este tempo, vem ter comigo ao Djambo às 17 horas».
Ela interpreta aquelas palavras não tanto como uma mensagem mas mais como uma ordem, uma convocação, e pergunta-se quem é que ele pensa que é? «Deixou-me sozinha há um ano, após uma discussão surgida do nada»... Recorda-se de o ter conhecido no jornal onde ambos trabalhavam e acabaria por gostar dele. Mas agora, depois de tudo o que aconteceu, acha-o convencido, arrogante, "cara-de-pau".
Porém, depois pensa que deve ter tido algum trabalho a descobrir a sua morada e, por outro lado, fica encantada por lhe ter enviado uma carta em vez de a procurar nas instalações do jornal, que lhe teria sido muito mais fácil.
Quando ele entra no café - à época, na longínqua década de 60 e 70, o «Djambo» era muito frequentado por jornalistas, escritores, poetas e músicos, gente da Cultura Moçambicana -, acena-lhe da mesa, sente-se aliviada, veio atrasado mas veio. Ele revela-se atencioso, conversador, divertido, e ela já não o acha nada arrogante. Quinze meses depois ela pensa que deve estar doida por deixá-lo mudar-se para casa dela ao fim daquele tempo todo de separação, assim sem mais nem menos, sabendo que ele é uma pessoa instável e de feitio complicado, e que poderia voltar a abandoná-la de novo. Mas o amor falou "mais alto" e acabariam por ficar juntos pela segunda vez.
Entretanto, poucos meses depois aconteceu em Portugal o «25 de Abril» e a situação em Moçambique sofreu uma reviravolta de trezentos e sessenta graus.
E mais de meio milhão de portugueses acabariam por regressar às suas origens, incluindo ela. Quanto a ele, mais uma vez desaparecera, desta vez para «as terras do rand» onde acabaria por integrar uma força especial de tropas de elite que combatiam, à revelia, os militares da FRELIMO, que já se encontravam em território Moçambicano. Logo a seguir, em 1975, dar-se-ia a Independência de Moçambique, o "jugo" colonialista chegara ao seu fim depois de séculos de ocupação…
Foi nos princípios de 1977, já em Lisboa, que vieram ter com ela ao jornal «O Retornado», contaram-lhe a notícia, estava a dar no telejornal das 13 horas na RTP. Depois veio nos jornais -- «O jornalista português Rebelo da Silva morre em combate nos arredores de Maputo, em Moçambique» - e ainda lhe parece irreal, porque as noticias são sempre com os outros e ela já não sabia dele há dois anos. Saiu da Redacção e veio até à rua apanhar ar. Nisso, a sua memória recua até finais dos Anos 70, e recorda o dia em que o conheceu, o jantar às velas que realizaram em casa de ambos, na primeira noite, o amor que viveu e os momentos felizes que acabariam por ficar lá para trás, no passado e a música que ambos adoravam -- «Let Me Tray Again», de Paul Anka.
Olha, em redor, abarcando o ambiente familiar que se respira no café.
Agora, em Lisboa. As pessoas conversam em voz baixa, a maioria são casais jovens que se inclinam ligeiramente sobre as mesas para ficarem mais perto umas das outras, para se ouvirem quase num murmúrio íntimo. Ela pensa que também esteve assim com ele, há 40 anos, e hoje não desvia os olhos da porta, angustiada, esperando que ele entre a qualquer momento, embora saiba que isso não vai acontecer nunca mais.
E a saudade daqueles tempos a remexer "cá dentro", as lágrimas que não consegue evitar… E ali está ela, novamente sozinha no café, volvidos que são 42 anos, tentando recuperar todos os pedacinhos do passado, olhando para a porta, hipnotizada, desfazendo o bolo-de-arroz com os dedos. E, por ironia do destino, em vésperas do «25 de Abril» de 2012…
WAMPHULA FAX – 26.04.2012