CRÓNICA de: António Nametil Mogovolas de Muatua
“…Devemos valorizar aquilo que traz maior tranquilidade para o nosso povo” – Armando Emílio Guebuza, Presidente da República de Moçambique, in Jornal DOMINGO, de 22 de Abril de 2012, página 05
Conforme reza a História Universal, muito antes de Jesus Cristo ter estado como Homem entre os homens na terra, já os romanos afirmavam mais ou menos esta verdade incontestável que, em caso de dúvida, “mais valia um ladrão em liberdade que um inocente na cadeia”. Tal vale dizer que já naquele tempo, a postura
filosófica dos homens era (e ainda hoje o é) a de considerar a liberdade da “Pessoa Humana” (é que há, também, pessoas colectivas, como, por exemplo, as empresas, as associações e as cooperativas) como algo de mais sublime e de suma importância no convívio com os seus semelhantes.
A liberdade do Homem é um aspecto vital que todas as sociedades organizadas em forma de Estado deveriam, escrupulosamente, tomar em consideração e respeitar na sua prática de gestão quotidiana das pessoas.
Ninguém – que não seja um órgão do Estado, constitucionalmente, instituído - deveria ter o “direito” de privar a liberdade ao seu semelhante, porquanto esta medida é excepcional e que deveria ser de uso extremo, porque quase não tem alternativa.
Amiúde, com tristeza, ouvimos pelos media ou por pessoas indignadas com estes actos, que alguns homens possuem cárceres privados ou que, abusando das prerrogativas legais que a constituição vigente nos seus países lhes conferem, raptam, sequestram, detêm e prendem, arbitrariamente, sem motivos plausíveis os seus concidadãos.
Os gestores destes regimes, que permitem estes excessos autocráticos e atentatórios contra a dignidade humana, cônscios da sua incapacidade de melhorar a qualidade de vida do seu Povo, amedrontam-no e manietam a sua consciência com este tipo de sevícias psicológicas e físicas para que este jamais se atreva a reivindicar os seus direitos mais elementares e legítimos.
Perplexo e incrédulo, leio, oiço e vejo que, neste preciso e precioso (porque deveriam estar a trabalhar para bem do desenvolvimento da Nação) momento do século em curso, em certo país africano – de grandes poetas, músicos de sensibilidade sem igual, de valentes guerreiros contra os colonialistas e de lindas mulheres cor cinza preta – que usa o mesmo idioma com o qual produzo estas linhas, vive uma situação política e militar insólita, em que um grupo de militares descomandados e agindo fora da ordem política democrática e constitucional vigente, protagonizou, a 12 de Abril de 2012, um “golpe de estado” (um pronunciamento militar muito confuso e com objectivos turvos) contra um governo inexistente, porquanto estava em processo de constituição uma nova ordem governamental por via da consumação da segunda volta de um processo eleitoral, cujo primeiro “round” era contestado pelos concorrentes já eliminados pelo voto do sempre patrão povo.
Aqueles militares, talvez acicatados pelos ditos partidos políticos “prematuramente” afastados da corrida eleitoral, ou, presumivelmente, receosos de perderem a sua primazia no controle do tráfico de drogas ou ainda por se julgarem marginalizados pelos políticos profissionais, vai daí, sublevaram-se e com os seus canhões, espingardas, baionetas, metralhadoras, botifarras de solaina alta e trajados com farda nova (ainda cheirando a nafatalina) de camuflado usado, normalmente, em plena guerra, impuseram a “sua ordem e disciplina” a toda a sociedade.
Os obuses – que só sabem vomitar a destruição e a morte – partiram tudo o que pela frente encontraram, semeando a dor, o luto, o aumento da miséria e o pânico no seio da obreira e pacata população da capital do dito país irmão africano, que canta em crioulo tão melódicas cantigas, que só os anjos e os querubins ousam superar.
Dirigentes interinos de cúpula foram raptados e forçados a viverem encarcerados em lugares desconhecidos, talvez inóspitos, com a sua vida perigada, deixando as suas famílias mergulhadas na dor da incerteza de, quiçá, nunca mais os voltarem a ver com vida.
Os noticiários internacionais continuam a difundir que os ditos chefes interinos daquela república, potencialmente rica, estão detidos.
Os ditos chefes nunca foram detidos.
Só pode deter a outrem quem tenha poderes constitucionais para tal prática.
Os militares sublevados em tal país ora aludido nunca podem deter quem quer que seja porque estão despidos de tal prerrogativa constitucional.
Estamos, SIM, em presença de um acto de RAPTO ou SEQUESTRO.
Rapto ou sequestro com cárcere privado, ambos punidos na maioria dos ordenamentos jurídicos internacionais.
E enquanto a comunidade internacional que, correcta e oportunamente, já condenou aquela sublevação militar continuar a designar aquele rapto ou sequestro como sendo detenção, está, indirecta e involuntariamente, a beneplacitar aquele acto condenável, perpetrado pela ontem brava, revolucionária e hoje anárquica família castrense daquele país africano falante da mesma língua que Luís Peres Vaz de Camões usou para bem carpintear os “Lusíadas”.
Da forma como o caldo já está tão irreversivelmente entornado no país em apreço, a linguagem musculada que algumas diplomacias internacionais estão a adoptar apenas contribuem para exasperar ainda mais os ânimos dos amotinados, que, num misto de medo e de quererem mostrar que são fortes, poderão estragar ainda mais o que já de errado concretizaram.
Sem pretender dar razão aos anárquicos militares, putativamente capturados pelos barões internacionais do narcotáfico, há que tentarmos, didacticamente, analisar, friamente, os motivos pelos quais eles foram facilmente envolvidos nesta sórdida e criminosa actividade de traficarem produtos tão nocivos e letais física e socialmente, como só as drogas e os estupefacientes podem ser para a humanidade.
Essa análise passa por revisitarmos a génese da formação do exército daquele país. Com o começo da luta armada de libertação nacional, jovens – politizados ou não – foram mobilizados para lutar contra os estrangeiros no seu território, acenando-se-lhes com a promessa de uma vida melhor – que, entretanto, não veio para todos - depois da independência nacional. Frustrados ante a não materialização do sonho que lhes foi semeado em suas mentes jovens, virgens e ingénuas de camponeses.
Ante a vida – algumas vezes insultuosa e desnecessariamente – faustosa que a classe política ostenta.
Vendo a sua vida no quase ocaso e sem vislumbre de quaisquer melhorias, os militares optaram por se associarem ao crime organizado pensando que por esta via chegariam, ainda mais depressa, ao almejado futuro melhor que lhes foi prometido e cuja concretização está a experimentar morosidade que não lhes é conveniente nem convincentemente explicada, com fundamentação sem demagogia.
É útil, para bem de toda a humanidade, que todos nós insistamos para que os militares, anarquicamente, fora das casernas– e eu concordo com esta exigência – parem com a indisciplina que ora protagonizam e cumpram com a legalidade, repondo a ordem democrática e constitucional, abruptamente interrompida. Mas nenhum de nós nunca se lembra de recordar aos políticos profissionais gestores das sociedades organizadas em forma de Estado, que é também antidemocrático, ilegal, injusto e inconstitucional fazerem uma gestão perdulária, irresponsável, “personalizada”, familiarizada, com nepotismo e amiguismo à coisa pública e com a exclusão da maioria dos outros seus concidadãos.
Os políticos, mandatados pelo voto popular, devem sentir-se cada vez mais serventes do povo a quem devem prestar contas e que nunca deveriam concretizar nenhum acto lesivo de governação, sob pena de estarem a ser desmerecedores da confiança e da sagrada incumbência que receberam de todos nós.
Em alguns países de África precisamos, urgentemente, de uma governação transparente em que o legal e o justo andem, sempre, em paralelo nesta era em que o avanço da tecnologia dissemina convocatórias para manifestações populares à laia das“primaveras árabes” sem flores e violentas contra os desmandos dos políticos.
Para terminar, soa curioso e oportuno perguntar ao leitor o que é que a primavera tem a ver com os levantamentos populares? É que o 25 de Abril de 1974 (a revolução dos cravos disparados pelas espingardas dos soldados portugueses, que derrubou o regime fascista e colonialista, ocorreu nesta estação do ano) e a chamada “primavera árabe”, que ajudou o chamado “ocidente” a derrubar os regimes então vigentes no Egipto, na Tunísia e na Líbia, também tiveram o seu começo em plena estação anual das flores.
Escrito em Mahubo aos 25 de Abril de 2012 (faz hoje 38 anos que o regime colonial-fascista de Portugal foi derrubado pelos militares cansados de morrer em guerras injustas em África).
WAMPHULA FAX – 25.04.2012