Dialogando especial
por JOÃO Craveirinha (biógrafo e sobrinho do poeta JOSÉ Craveirinha)
Aniversário de JOSÉ CRAVEIRINHA
uma das últimas fotos de JOSÉ Craveirinha (1922/2003)
Texto exclusivo
Numa data como a de hoje (em 2009), mas a 28 de Maio em 1922 - num domingo (sonto em xiRonga) no bairro do CHAMANCULO, na cidade colonial de LM-Lourenço Marques (caMpfumo) nasceu JOSÉ CRAVEIRINHA (Sontinho) -, o Poeta, Filósofo e Escritor – Mor de Moçambique. Faleceu em Joanesburgo (RSA) em 6 de Fevereiro de 2003. Encontra-se depositado no Mausoléu da Praça dos Heróis em Moçambique, por ter sido chefe da clandestinidade, em LM, da 4ª região político-militar da Frente de Libertação de Moçambique de 1962 a 1964. Foi preso político da PIDE, dirigente associativo, folclorista, coreógrafo, musicólogo, dançarino, “padrinho” da marrabenta, desportista (atletismo), pugilista, atleta de pesos e halteres, futebolista, treinador desportivo, jornalista, crítico de arte e de teatro e cinema, amante de mulheres belas. Foi organizador das primeiras classes de ginástica para senhoras, passagens de modelos femininos e de gastronomia africanas em Moçambique na década de 1954 a 1964, na Associação Africana, herdeira do Grémio Africano dos irmãos Albasines e Estácio Dias, do início do século XX. JOSÉ CRAVEIRINHA foi também o visionário, que muito antes de todos viu potencialidades em Wilson, Tafoi, Xangai (pugilistas); Rondeu, Matateu, Vicente, Hilário, Mário Coluna, Eusébio (futebolistas); em Nuno e Armando Caliano e Mário Santos mister Transval (pesos e culturismo e luta greco-romana); Alfredo Caliano, Elarna, Milene e o irmão Piuza. A actual esposa de Eusébio, Flora Bruheim, Zeca (o filho mais novo) e Mussa Tembe (ginástica); Repinga, Stélio (o filho mais velho) Marina Xécalos, Tina, Lurdes Mutola e Elisa Cossa, (atletismo) e muitos mais, e, em outras áreas da cultura como um Malangatana, Mankew, Ribeiro Couto e o João (sobrinho) na pintura. Chissano na escultura, e um Luís Bernardo Honwana (escrita). Não podemos esquecer também o apoio afro-cultural dado por JOSÉ Craveirinha aos “veteranos”, como, ao fotografo Ricardo Rangel, a poetisa Noémia de Sousa e a pintora Bertina Lopes - a primeira pintora moçambicana internacional. Sem esquecermos aos mais recentes escribas como Gulamo Khan (falecido em Mbuzini), Calane da Silva, Mia Couto, Nelson Saúte, Manuel Lemos (sobrinho) que JOSÉ CRAVEIRINHA “apadrinhou” nos inícios das suas carreiras literárias. De entre os diversos talentos que JOSÉ CRAVEIRINHA possuía salientamos hoje, o de cronista emérito, texto em anexo:
“Maulide Rifai” na Mafalala
por JOSÉ CRAVEIRINHA
foto de José Craveirinha, cerca de 1955, quando escreveu este conto
A voz do Maulide chama-nos. Estacas, barrotes, sacas e encerados e os homens lá dentro acocorados em largas esteiras. Num dos lados um lençol amarelo como pano de fundo. Um amarelo carregado de açafrão. Velhos patriarcais lêem o livro sagrado e entoam monótonas cantilenas. As pernas flectidas, os olhos baixos, o tronco balanceando ao ritmo dos cânticos.
O tempo passa, a luz dos Petromax aquece mais a atmosfera e acende brilhos fantásticos nos óculos dos velhos macuas. Na demora, há paciência e fatalismo orientais.
Por fim as vozes calam-se, o silêncio torna-se espesso como um pedaço de teca. Aqui e ali homens levantam-se silenciosamente e voltam com daíras e entregam pelo círculo fechado de homens sentados nas esteiras.
Descobrem-se objectos estranhos nas mãos do velho macua magro, de máscara expressivamente sulcada de rugas. O fumo do lobane cerca as coisas e mistura-se com o hálito dos cajueiros.
De repente, um frémito nos atravessa e arrepia a pele. Começou a parte principal do cerimonial. O conjunto de daíra soa nas mãos sensíveis dos macuas. Abud, o gordo Abud, está sentado e toca a daíra também. Os tamboretes unem-se pelo ritmo. A cadência começa a subir, a subir, a subir e agora está forte, misteriosa. As vozes sobem no ar morno, rompem barreiras de sacas e lonas e espalham-se noite fora.
— Maulana! Maulana!
Dois homens erguem-se de cânticos na boca e pegam os bruges um em cada mão. As finas lâminas de aço chispam à luz crua do Petromax. E a cerimónia ritual começa com o ponto alto atingido pêlos tamboretes e as vozes cantando o salmo.
Os dois homens de bruges nas mãos dançam e erguem os braços enquanto o corpo se separa e imaterializa. O transe afoga os homens no seu abraço bárbaro e leva-os para o ignoto.
As mãos erguidas ao alto baixam-se e as pontas aceradas dos bruges picam a carne. Sobem e descem, sobem e descem, Abud toca a daíra; seu corpo grande inclina-se à frente e atrás, suas mãos parecem grandes borboletas negras voando no ar batendo no pandeiro. Mais de vinte pandeiros erguem na noite milenária o seu som de pele esticada e amarrada na daíra.
Outros homens saltam para o meio empunhando os finos bruges e erguem as mãos ao alto, curvam o tronco e no compasso dos tamboretes enterram as lâminas na carne insensível.
A loucura é colectiva. Um sopro irreal funde os homens e as coisas. Há transe, fumo de incenso, primitivismo e ritmo. Fora, as estrelas cintilam como pirilampos longínquos parados no céu.
Depois há homens que a loucura arrebata e outros atentos que saltam e arrancam os afiados bruges das mãos enclavinhadas pelo transe. Estão possessos e caem no chão estrebuchando. Dentro de nós como simples coisas, mundos de cultura esfarelam-se.
Outro atravessa o estilete na face e fica assim o corpo no ritmo, os olhos semi-fechados até que se inclina e o velho padre suavemente toma-lhe a cabeça e com firmeza arranca o bruge da carne. O fumo envolve a cabeça do possuído de transe. São altas horas e o Maulide não pára. — Maulana! Maulana!
Para descansar, os crentes erguem os gritos de — Ali Maulana! Ali Maulana! E o tam-tam! Estaca para recomeçar logo depois.
Pedem a Ali Maulana que os deixe um momento porque depois as mulheres hão-de saltar à corda ao som dos tambores no dia seguinte. Sulemangy, seu corpo atlético iluminado pelo Petromax parece um símbolo vivo da velha raça macua, altiva e forte.
Retiramo-nos, o sangue ainda perturbado pelo estranho chamamento da daíra na noite morna de África, os olhos cheios das imagens do fantástico e irreal.
A parte civilizada procura explicações racionais. Recordamos Garrei, etc., mas o som da daíra persegue-nos insistentemente, abraça-nos, aperta-nos noite alta, até de manhã.
JOSÉ CRAVEIRINHA - 26.02.1955 - LM (caMpfumo)
Publicado no jornal O Brado Africano da Associação Africana de Lourenço Marques (LM) nas terras dos rongas Mpfumos (hoje Maputo). Nota breve do Dialogando: O poeta JOSÉ CRAVEIRINHA em 1955, referia-se a Sumalidji, chefe macua da Mafalala multiétnica e multi-religiosa no seio dos rongas, mestiços, manhambane(s), goeses, mashangane(s), madjójos (comorianos), zambezianos, beirenses, tetenses, europeus diversos (pobres), indianos, e chineses (etc). A origem do nome do bairro da Mafalala tem a ver com a dança ritual macua “Li-Fa-la-la”. Estaria relacionada com a chegada nos finais do século XIX, à cidade colonial de Lourenço Marques, de um chefe macua de Nampula, que teria sido deportado com os seus súbditos pelos portugueses, por rebeldia, para o interior do bairro ronga da Munhuana (pouco sal) entre a estrada de Angola e a rua de Goa e a estrada da Circunvalação, depois Av. Caldas Xavier actual Av. Marien Ngouabi. Conferir em - Craveirinha, JOÃO (2001/2002). Moçambique, Feitiços. Cobras e Lagartos (etno-história) pp: 123-130; capt. XIX, Gabriela da Mafalala, Enfeitiçada; Despe-se na Via Pública. (Dialogando de JOÃO Craveirinha de 28 Maio 2009)