AS entidades públicas, nomeadamente os titulares dos poderes Executivo e Legislativo, as autoridades policiais e militares, devem ser as primeiras a acatar as sentenças dos tribunais e a observar as decisões proferidas pelos juízes, mesmo naqueles casos em que não estejam de acordo com elas.
Esta tese foi ontem defendida pelo Juiz-Conselheiro do Tribunal Supremo e do Conselho Constitucional, José Norberto Carrilho, na abertura da 17ª Reunião do Grupo Africano da União Internacional de Magistrados, que decorre até amanhã em Maputo, sob o lema “a independência dos juízes como garantia do Estado de Direito”.
Todavia, nem sempre tal acontece, como aconteceu recentemente no país e que, infelizmente, é comum suceder noutros países, apesar de a Constituição da República estabelecer que “as decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades”, segundo afirmou.
A falta de acatamento das decisões dos juízes, mais do que representar uma afronta individual a um magistrado, constitui um desafio à autoridade do Estado no seu todo, é um desrespeito pela Constituição que se traduz, na maior parte dos casos, em violação inadmissível dos direitos humanos e das liberdades fundamentais dos cidadãos, observou o juiz Norberto Carrilho.
Disse que o incumprimento ilegal das decisões judiciais não pode passar impune, pelo contrário, deve ser objecto de pronta intervenção do Ministério Público, sob pena de o desrespeito voltar a repetir-se e a impunidade acabar não só a enfraquecer o poder judicial mas, sobretudo, gerar no público a percepção de que o Estado de Direito é frágil, é impotente para fazer valer a sua autoridade e não consegue proteger os cidadãos contra as violações de que são vítimas.
José Norberto Carrilho afirmou que a independência dos juízes é uma ideia sagrada no constitucionalismo moderno e a maior parte dos debates centra-se no dilema inegavelmente importante da interferência do legislativo e do Executivo nas decisões do judiciário. Em Moçambique, segundo o Juiz-Conselheiro, o tema da independência dos juízes seria aparentemente incontroverso, pois a independência dos vários órgãos de soberania, em particular a dos juízes, que se extrai dos princípios da separação e interdependência de poderes, consagrados na Constituição, não se reveste de carácter absoluto.
Essa independência passa por momentos de inflexão que decorrem das interdependências recíprocas, políticas, institucionais e funcionais, que se desenrolam dentro de parâmetros fixados pela lei fundamental do país, nomeadamente no domínio das competências constitucionais dos órgãos de soberania, as quais nalguns casos são estabelecidas de forma partilhada ou concorrente.
Segundo Norberto Carrilho, são várias as condições objectivas, jurídicas e materiais necessárias à garantia da independência dos juízes, dentre elas se destaca a inamovibilidade e estabilidade no exercício de funções, a segurança financeira e irredutibilidade do salário, responsabilidade, liberdade de expressão e de associação e autoridade.
Inamovibilidade
Uma das maneiras de zelar pela independência dos juízes é garantir-lhes que são nomeados vitaliciamente ou, pelo menos, que a sua carreira será de longa duração, mais longa que a dos funcionários públicos. Umas vezes permanente e assegurada até à idade da aposentação, e outras vezes fixada em mandato por um longo período de tempo é uma garantia da estabilidade contra a interferência discricionária ou arbitrária, seja por parte do Executivo seja de outra autoridade, inclusive do poder judicial.
A aplicação efectiva deste princípio, segundo Norberto Carrilho, tem conferido aos juízes a segurança profissional e a estabilidade emocional indispensáveis a uma dedicação exclusiva dos magistrados ao seu múnus. Mas, em contrapartida, os Estados de Direito Democráticos, ao assegurarem que os juízes se mantenham em exercício de funções até ao limite das suas capacidades intelectuais e físicas, maximizam o aproveitamento da sua especialização técnica, o seu conhecimento mais vasto, a sua maior maturidade e a confiança do público nessas qualidades.
A inamovibilidade não é, porém, nem pode ser absoluta, já que é necessário prever a possibilidade de transferência ou aposentação compulsiva determinada por motivos disciplinares e em casos de comprovada incompetência apurados em processo com direito ao contraditório e a recurso e ainda a aposentação antecipada por motivos de saúde, sendo igualmente importante prover à renovação equilibrada da magistratura.
Segurança financeira
Outro importante requisito objectivo da independência dos juízes é a sua remuneração adequada, com garantia de irredutibilidade do salário, acrescida de um conjunto de condições materiais, previdenciárias e de segurança pessoal, para que os juízes consigam prover ao seu sustento e dos seus familiares dependentes, com dignidade e de acordo com o interesse público da função jurisdicional que exercem, a importância social das actividades que realizam e as exigências éticas que o cargo lhes impõe.
A preocupação com a remuneração adequada dos juízes é antiga, segundo afirmou. Não se trata de conceder privilégios a uma classe de profissionais do Estado, em detrimento de outras. Trata-se, sim, de prevenir que os juízes se coloquem em situações de precariedade e de necessidade tais que possam torná-los vulneráveis a aliciamentos, trocas de favores, subornos e corrupção, e levá-los a perder a autodeterminação de julgamento e a independência de decisão.
Norberto Carrilho disse que a atribuição aos juízes de salários mais altos que os dos funcionários públicos tem a sua razão de ser, porque os juízes exercem as suas funções em regime de exclusividade e estão proibidos de exercerem quaisquer outros cargos públicos ou privados e realizarem outras actividades remuneradas, exceptuadas as da docência em Direito nas universidades e as de carácter literário, artístico, cultural, desportivo e recreativo.
Responsabilidade
Os juízes não podem ser responsabilizados politicamente pelas decisões que tomam. Nisso reside a garantia da irresponsabilidade. No entanto, eles podem e devem ser responsabilizados criminal, disciplinar e civilmente pelos danos causados no exercício da função de julgar, nos termos da lei. No entanto, na eventualidade de ser necessário apurar a responsabilidade criminal e/ou disciplinar de um magistrado, é de todo conveniente que se lhe garanta, como a qualquer cidadão, o direito de defesa e o devido processo legal, de preferência em foro especial não vinculado ao poder Executivo.
Liberdade de expressão
Aos juízes é exigido que guardem segredo das informações que cheguem ao seu conhecimento por via do processo judicial. Também lhes é imposta a obrigação de não se pronunciarem ou de darem opinião sobre matérias que constituam objecto de processo a cargo de outros colegas ou em fase de recurso. Todavia, aos juízes é reconhecida a liberdade de expressão e de associação, sem prejuízo dos deveres a que estão sujeitos nos termos da lei.
Os juízes deverão sempre comportar-se de forma a preservar a dignidade do seu cargo e a imparcialidade e independência da magistratura. Norberto Carrilho exprimiu preocupação com relação às notícias que dão conta de que em alguns Estados que se encontram em fase de transição para a democracia e de consolidação do Estado de Direito se têm verificado restrições à liberdade de expressão dos juízes e, até mesmo, perseguição de colegas da profissão que clamam por uma reforma do poder judicial e pugnam pela independência dos juízes.
Requisitos subjectivos
O conceito de “independência” exprime o valor constitucional da independência judicial. Citando Castro Mendes, Norberto Carrilho afirmou que á independência dos juízes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente, outros factores que não os judicialmente adequados a conduzir à legalidade e à justiça a mesma decisão. O primeiro requisito subjectivo da independência dos juízes consiste na sua imparcialidade.
A par da imparcialidade, a integridade é outro requisito subjectivo essencial da independência dos juízes. A integridade é vista em geral como firmeza de carácter, assente numa consciência bem formada nos valores da igualdade de todas as pessoas, independentemente das suas diferenças de género, raça, etnia, crença, grau cultural, origem social e de classe ou orientação sexual. Ser íntegro é ser capaz de decidir por si próprio, de ter opinião própria, de não se deixar influenciar por critérios de oportunidade. É ter a capacidade de afirmar a verticalidade e de não abdicar da honestidade intelectual.
O espírito de missão e de serviço público, bem como a competência técnica e a coragem são outros factores subjectivos importantes para a independência dos juízes.
Entretanto, discursando na abertura do encontro, o Primeiro-Ministro, Aires Ali, disse, entre outras coisas, que se do lado dos actores políticos se requer uma maior qualidade de representação e integridade no exercício da respectiva atribuição, bem como o cumprimento dos compromissos assumidos, por seu turnos, os cidadãos esperam também do poder judicial uma melhor justiça, mais segurança e bem-estar.
Aires Ali afirmou que a credibilidade do poder judicial é fundamental para a pacificação social, cabendo ao judiciário agir no sentido de personificar, efectivamente, a figura de um dos suportes essenciais para a resolução de conflitos e para a manutenção da harmonia social.
Disse eu no mundo globalizado de hoje, a justiça e os juízes são confrontados, cada vez mais, com desafios cada vez mais crescentes. Esses desafios são inquestionavelmente universais e reflectem a afirmação da identidade social, cultural e profissional do juiz à volta de valores da sua independência, imparcialidade e integridade que em Moçambique também são prosseguidos como um Estado de Direito.