O Azul do Índico Por: Afonso Almeida Brandão
Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento
(Para o casal João e Filómena Rolim, de quem nunca mais voltei a ter notícias)
Ela não se queria apaixonar porque sabia que a paixão era uma armadilha, sabia que se fosse rejeitada mais tarde levaria meses, talvez anos, a esquecer. Já passara por isso e a perspectiva de repetir era perturbadora. Depois disso decidira ser livre, não se apaixonar. Tivera alguns casos esporádicos de "paixonetas inconsequentes", mas não se prendera a ninguém. Mas agora voltou ao mesmo e está alarmada porque só percebeu o que lhe aconteceu demasiado tarde.
Estamos no longínquo ano de 1975, na maravilhosa cidade da Beira. Trabalha num hotel, conheceu-o quando estava de serviço no bar. Achou-lhe graça, mas não deu importância. No entanto, ele apareceu no dia seguinte, e todos os dias dessa semana, à mesma hora.
Ele viajava bastante em trabalho, ia com muita regularidade à Beira e andava um pouco por toda a zona Centro do País. Era jornalista e chefiava, à época, a Delegação da «Voz Africana», em Vila Pery, actual Chimoio, que fica a pouco mais de 180 Km da Beira. Foi, aliás, entre estas duas cidades moçambicanas que viria a ocorrer, em 1974, o despiste do automóvel onde seguia o colega Carneiro Gonçalves, brilhante Jornalista do matutino beirense e seu Chefe de Redacção.
Paz à sua Alma de Eleição!, nesta evocação que fazemos daquele tempo inesquecível.
Na vez seguinte deu com ela logo à chegada, no balcão da Recepção. O seu rosto iluminou-se quando a viu, disse que gostava muito de a reencontrar. E para ela aquele momento, aquela declaração, não foram indiferentes.
Sorriu, respondeu educadamente que era um prazer recebê-lo novamente no hotel, tratou-o por senhor. Mas na verdade sentiu uma emoção que a surpreendeu.
Mais tarde, ele foi ao balcão, perguntou-lhe se não iria estar de serviço no bar. Como ela dissesse que não, pediu-lhe que fosse lá ter com ele depois de sair de serviço. Ela recusou, não poderia fazê-lo. Ele coçou a cabeça, atrapalhado, mas não desistiu, convidou-a para sair. Apanhada de surpresa, ela disse que não, inventou uma desculpa.
Ele disse «não faz mal, tenho a semana toda para a convencer».
Agora ela dá consigo a sofrer à espera do dia em que ele regresse ao hotel. Falam sempre ao telefone, mas receia que um dia ele mude de hotel e a esqueça. Por isso, decidiu que não podia continuar nessa angústia, telefonou-lhe, disse-lhe que era altura de se separarem. Ele respondeu-lhe que tinha uma semana para reconsiderar, até ao seu regresso. Ela fraquejou na sua determinação, disse «está bem, uma semana» mas pediu-lhe que não telefonasse.
Os dias são lentos, a semana demorou a passar. Ela está na Recepção e pergunta-se porque não lhe liga ele, porque não ignora o seu pedido.
Sente uma tentação de lhe telefonar, mas resiste. Está apaixonada e assustada com a força desse sentimento, com o risco de ele a deixar, por ser português, com a possibilidade de ele não voltar no fim da semana.
E porque naquela altura uma grande parte dos portugueses estavam a regressar a Portugal, sobretudo após a Independência de Moçambique, ela pensou tudo e alguma coisa. Mas ele volta. Chega com um ramo de flores e declara à frente dos colegas, de uma multidão de hóspedes, «não podes desistir de mim porque te amo e quero casar contigo». Ela, emocionada, ri-se com lágrimas nos olhos. Lembro-me tão bem desta cena como se fosse hoje.
Além de mim estavam presentes os colegas Caetano de Sousa, Manuel Mota e o repórter-fotográfico Carlos Rodrigues, a quem ele havia pedido para estarmos presentes a fim de lhe darmos "uma forçazinha". «Então?» - questiona o nosso colega João Rolim - «vais responder-me ou deixar-me aqui nesta expectativa?» Ela engole em seco, recompõe-se, responde-lhe sem pensar duas vezes: «Sim!» Ele debruça-se sobre o balcão, beija-a, e há uma salva de palmas geral na Recepção...
«Ainda não foi desta que o João fez "figura de urso"...» -- comentou o Manuel Mota para mim a rir com gosto. «Pois não...» - recordo-me de lhe ter respondido.
Já se passaram 37 anos e perdi, por completo, o rasto e o contacto deste Querido Amigo e Colega da «Velha Guarda», João Rolim e de sua mulher Filó - como era tratada entre amigos mais chegados. Vim a saber, posteriormente, que havia regressado a Portugal e que tinha ido para Aveiro, de onde era natural e residiam os seus familiares.
São as voltas da Vida, os encontros e os desencontros que acontecem entre as relações de amizade e entes queridos, ao longo das nossas vivências terrenas.
WAMPHULA FAX – 25.05.2012