O Azul do Índico Por: Afonso Almeida Brandão
Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento
(Ao Distinto Colega de «Outros Tempos», esta Singela Evocação)
H á muitos anos que não sei nada dele. Andará hoje muito próximo da «casa dos 70». Penso que esteja vivo. «Vivinho da Silva», pois claro! Só nunca cheguei a saber para onde foi quando resolveu deixar Moçambique para trás, em
1975, «terra onde viveu desde sempre e amou como ninguém». O Carlos era natural da Beira e descendente de uma conhecida família goesa de comerciantes radicada há muito no País. Argumentava, com orgulho e convicção, que «os beirenses "são gente boa!" Diferente daqueles que nasceram em Inhambane, "auto-proclamados" da «Terra da Boa Gente»! Uma ova é que eles são da "Terra da boa gente"!!... » -- rebatia ele com alguma irritação, sem pedir licença a ninguém. E acrescentava: «Sou Beirense do coração, contudo, um «homem do Mundo!!...»
O Carlos Rodrigues era mais velho do que eu cerca de oito anos, se bem me lembro. Foi Repórter-Fotográfico, à época, do então matutino NOTICIAS DA BEIRA. Considerado por muitos colegas de ofício como tendo sido um dos melhores profissionais do seu tempo.
Todos reconheciam nele um homem dedicado e de virtudes, incansável militante ferrenho que "vestia a camisola" do jornal como poucos. «A minha única escola é a escola da tarimba, onde aprendi tudo o que sei» - dizia, frequentemente, aos seus colegas. «Foi através da dedicação à profissão onde "bebi" os ensinamentos e vim a desenvolver as técnicas e os segredos da fotografia. Hoje considero-me um profissional competente, a par de Carlos Alberto, Ricardo Rangel, João Terramoto ou Kok Nam. Tudo aquilo que sei sobre o Foto-Jornalismo a mim o devo». Era/foi um profissional orgulhoso daquilo que fazia, com afinco e empenho.
Sou testemunha disso.
Amigo do seu amigo, este colega da «velha guarda» --- de quem hoje vos falo com saudade, sem saber por onde anda --, era/foi um brincalhão por excelência.
Gostava de fazer "partidas" aos colegas de quem gostava. Não dava confiança a qualquer um, nem tão pouco a sua amizade. «Partidas piadosas» - dizia ele com graça. Às vezes, as "vítimas" é que não "achavam graça nenhuma", mas que fazer? Ele era mesmo assim.
Uma vez ligou para mim a dizer que o meu primo Chico havia telefonado há minutos. «Afonso, o Sr. Francisco Brandão telefonou há instantes e deixou mensagem a pedir que desses um salto ao «Hotel Embaixador». Abro aqui um breve parêntises para explicar que «o Chico» era um dos filhos de meu Tio Saúl Brandão, irmão mais velho de meu Pai --- um daqueles "pioneiros" imigrantes que um dia resolveu deixar as "suas raízes" para trás, oriundo que era da pacata Vila de Figueiró dos Vinhos, em Portugal --, para vir a desembarcar em Moçambique, no então paquete PÁTRIA, numa manhã de chuva e de frio, daquele longínquo ano de 1918, na então cidade da Beira.
É um Tio de quem guardo uma vaga lembrança e saudosa recordação, um familiar que conheci mal nos tempos da minha meninice. Foi por causa dele que meu Pai também acabou por vir para Moçambique, em 1948. Foi meu Tio Saúl quem tratou de alojar os meus pais numa casa que alugara na zona da Manga, onde eles ficaram a viver até há data do meu nascimento, em 1950. Foi ele que depois convenceu os meus pais que eu viesse para Portugal estudar para um colégio interno. E assim aconteceu, naquele ano de 1956, depois de uma breve passagens pelo Liceu Camões, à época, dirigido pela Dª Alda de Almeida. Meu Tio Saúl foi uma pessoa que nunca deixou de dar a mão ao irmão mais novo -- meu saudoso Pai -, cuja memória igualmente evoco.
Hoje, passados que são «toda uma vida-vivida» (como diria o Poeta Rui de Noronha), recordo a figura forte e pálida de meu Tio Saúl, "esbatida na bruma" das minhas memória de infância, daquele tempo de outros tempos, que ficaram lá para trás, e que não voltam mais...
Mas vamos ao Carlos Rodrigues e à sua "partida". O recado fora transmitido de uma forma naturalmente vulgar e não levantou quaisquer suspeitas. Nunca imaginara tratar-se de uma "partida" dele.
Recordo-me que estávamos perto da hora de almoço. Pensei para comigo: «Provavelmente quer que eu vá almoçar com ele...». E foi com este pensamento que deixei as instalações do jornal, em direcção ao «Hotel Embaixador», onde se encontrava o meu primo Chico (eventualmente á minha espera). A distância entre o Jornal e o Hotel não chegava a trezentos metros. Era um salto que não levava mais de cinco minutos a pé. Quando lá cheguei pedi à recepcionista que me anunciasse. Era a Mafalda que estava de serviço nesse dia. Feita a ligação, eis que oiço a voz de meu primo do outro lado do fio: «Sim, Afonso...?» Respondi que estava cá em baixo, na Recepção do Hotel, e que havia recebido a sua mensagem. «Que mensagem, Afonso...?!»
Foi então que caí em mim e descobri que fora alvo de uma "partida" brincalhona - mais uma! -- do meu querido e saudoso companheiro de oficío.
Expliquei, de seguida, o que havia acontecido. Riu do sucedido com satisfação e sentenciou: «Já que estás aqui, sobe. Almoças comigo. A não ser que tenhas algum compromisso...»
Escusado será dizer que acabei por almoçar com meu primo nesse dia.
Regressei ao jornal por volta das 15 horas. Fui todo o caminho a pensar na "reprimenda" que iria dar ao Carlos, por mais "esta partida" de «mau gosto», quando estivesse na frente dele. Quando entrei na Redacção fui directamente à secção de fotografia, onde ele se encontrava sentado, a ler um jornal. Mal me viu deu uma gargalhada sonora e não esperou que eu dissesse fosse o que fosse. «Desculpa lá "qualquer coisinha", Afonso! Já não fui a tempo de desfazer a "mentira piedosa"... Tu já tinhas saído...»
Procurei manter um ar sério e zangado, mas acabei por não evitar uma alegre gargalhada. «Ao menos almocei sem pagar...» -- respondi, bem disposto. E ele, torcista: «quem é amigo, quem é...?!»
Numa outra ocasião, eu e o Carlos haviamos sido destacados para um serviço no Cais dos Caminhos de Ferro da Beira. O objectivo da reportagem era entrevistar e fotografar os elementos de um Rancho Folclórico português, vindo de Portugal --- e que três dias antes havia dado espectáculo na Beira, ao vivo, no «Pavilhão do Ferroviário». Tínhamos connosco a informação que o Rancho Folclórico embarcaria nesse dia para Lourenço Marques, rumo a Nacala e Nampula.
Quando chegamos ao Cais de Embarque, onde supostamente deveria estar atracado o paquene ANGOLA, fomos informados de que o navio havia «levantado amarras» por volta das 13 horas, com destino à Capital. Ficamos os dois a olhar um para o outro, surpreendidos. Como podia ter acontecido uma coisa destas?!... Será que eu tinha visto mal a hora...?
Desanimados, regressamos ao jornal sem qualquer reportagem. Pelo caminho ainda paramos no "velhinho" Scala para beber um café. Recordo ter ido consultar logo à chegada a Agenda Diária que se encontrava afixada numa das paredes da Redacção, onde surgia, de forma alinhada, os nossos nomes e por baixo deles os serviços que tínhamos de realizar no dia-a-dia. A minha folga era à 5ª Feira. dia que tirava para mim e para os meus "namoriscos" inconsequentes.
Quis confirmar, assim, a marcação do trabalho daquele dia. Recordo-me muito bem ter ficado "sem pinga de sangue", que o chão fugia.me dos pés... «Grande bronca, Carlos!» - disse ao meu colega, após ter consultado o Mapa-Agenda. «Eu confundi o 8 com o 3». Ou seja: o encontro marcado para aquele dia, com os elementos do Grupo Folclórico Regional das Beiras - que nos aguardava a bordo do paquete ANGOLA -, havia sido marcado para as 13 horas e não para as18 horas, como erradamente interpretei. «E agora, Afonso?» - perguntou o Carlos Rodrigues incrédulo, com o ar mais descontraído deste Mundo -. «Olha, agora vamos os dois ao Gabinete do Carneiro Gonçalves explicar tim-tim-por-tim-tim o lapso do sucedido, dizendo que confundimos o 3 com o 8...» - sentenciei muito seguro de mim. O erro não era meu nem do Carlos.
O erro era da "letra" pouco "legível" de quem havia registado o trabalho.
Efectivamente, o 3 parecia mais um 8! E contra factos não havia argumentos...
Nem quero recordar a cara do Chefe de Redacção, quando nós os dois explicamos o que aconteceu. O Carneiro Gonçalves "deitava fumo" por todos os
lados, irritado que estava com a nossa "incompetência"...
«Amanhã de manhã telefonas para a Delegação do jornal, em Lourenço Marques, e explicas ao Zé o que aconteceu. Eles hão-de dar conta do trabalho» -- «O Zé» era o José Carneiro, Chefe da Delegação do Notícias da Beira e irmão do nosso Chefe de Redacção, na Sede. Tudo isto se passa em finais de 1970.
Hoje - volvidos que são 42 anos -, recordo com graça este "pitoresco" e divertido episódio que nos podia ter custa "os olhos da cara", naturalmente, uma suspensão de alguns dias e consequente «processo disciplinar». Mas não, o colega Carneiro Gonçalves era considerado por todos na Redacção como sendo «o maior Chefe de Redacção do Mundo e o melhor Colega que um jornalista alguma vez pudesse ter!!...» - opinou o José Rui Cunha. (A propósito: que é feito de ti?)
Quanto ao Carlos Rodrigues --- esse colega da «velha guarda», esse «Amigo do peito», confidente e maravilhoso - nunca mais soube dele, nunca mais voltei a ouvir falar dele. Não sei, sequer, se continua entre nós - o mais certo é que esteja "vivinho da silva", pois claro! --, por onde tem andado, o que tem feito...
Enquanto isso... até um dia destes, Carlos - o Kaká, como era tratado no seio da Família e dos Amigos mais chegados.
WAMPHULA FAX – 01.06.2012
Na foto a cores: O Goia(irmão) - como é conhecido pela malta ,era líder da banda rock
"Mistérios", de Chiveve City.
Goia reside em Montechoro Algarve.