O Azul do Índico Por: Afonso Almeida Brandão
Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento
(À Memória de Uria Simango, que cheguei a conhecer na década de 70)
Miúda, cerrada, peganhenta, a chuva - às vezes tão necessária - cai sobre a cidade.
O calor complica as coisas. Um calor húmido, opressivo, um tempo de que ninguém pode gostar.
Encostado á janela fico a olhar a rua. A rua lamacenta e escorregadia, as árvores molhadas, de folhas que ao sol seriam doiradas e assim são coisas mortas e feias, a olhar os vestidos (e as capulanas) alegres de verão, mortiço e sem graça. As camisas coladas ao corpo, os cabelos escorredios, os carros sujos, regos de água a traçarem desenhos complicados na poeira.
Mas as pessoas avançam, apressadas. O trânsito não pára.
Um cão, de rabo entre as pernas e orelhas esticadas para trás, atravessa a correr por entre os carros. Soa um "claxon", irritado. Alguém grita. E o grito ficou. O cão continua o seu caminho. O trânsito também. Apenas o grito ficou, suspenso, agarrado às folhas mortas que caem lentamente para o chão, enlameado, pegado às montras para que ninguém olhe, fugindo à frente de quem corre, encolhendo-se, medroso, a cada esquina.
Encostado à janela apenas eu o vejo. Apenas eu entendo o seu medo.
Apenas eu sinto medo também.
Medos dos assassinos à solta. Medo do terrorismo organizado por alguns que têm o arrojo de invocar a palavra Liberdade. Medo de quem fala em Paz com a Morte no Coração. Medo desta violência que arrasta consigo, sempre, mais violência.
Porque a Violência não tem olhos.
É cega. Porque o Ódio nunca apagou fogueiras. Só as ateia. Porque ambos, Violência e Ódio, só podem ser Armas de cobardes e Ditadores, ainda que se acoitem sob o imenso capote da Democracia.
... No vidro da minha janela a chuva - às vezes tão necessária - conseguiu, por fim, formar uma gota que escorregava, devagarinho, como uma lágrima perdida. Há quase 40 anos, num dia mais ao menos igual a este, Uria Simango foi extra-judicialmente executado juntamente com vários outros dissidentes da FRELIMO e sua mulher Celina, pelo Governo pós-Independência de Samora Machel, em Moçambique.
Segundo testemunhas oculares da época, Uria teria sido «queimado vivo».
Muitos outros homens bons morreram do mesmo modo antes e depois dele, às mãos frelimistas do ditatorial Partido. Muitos (outros) ainda morrerão, estão (provavelmente) a morrer neste momento, abatidos como cães raivosos, simplesmente porque amam a Paz, respeitam o Homem e desejam, como bem supremo, a Liberdade. Uria Timóteo Simango combateu a Ditadura e o Fascismo nos Anos 60 e 70 da única maneira que sabia: com amor, com ideais puros, com palavras justas. Era Pastor Presbiteriano, pessoa culta e líder proeminente da FRELIMO (Movimento que ajudou a fundar e do qual chegou a ter estatuto de Vice-Presidente desde a sua fundação até à data do assassinato do seu primeiro líder, Eduardo Mondlane, em Fevereiro de 1969.
Simango sucedeu a Mondlane na liderança da Presidência mas, na luta pelo Poder após a morte daquele, a sua liderança foi "contestada" e posteriormente substituído. Para os mais curiosos recomendamos a consulta da Internete na «Página Uria Simango -- Wikipédia, a Enciclopédia Livre».
Ficarão, assim, a conhecer melhor a sua Biografia.
WAMPHULA FAX – 23.05.2012