Nota Introdutória
Por: Raúl Chambote
O presente texto pretende contribuir para o debate sobre as celebrações dos 50 Anos da Frelimo. Não é preocupação deste texto discutir datas, no sentido de situar cronologicamente a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), movimento armado criado em 1962 ou a Frelimo criada em 1977 como partido político. Igualmente, não é interesse deste artigo apresentar e discutir antigos combatentes como indivíduos, seus méritos e deméritos. Pelo contrário, é interesse deste texto analisar de forma específica a/s ideologia/s da Frelimo nesses 50 anos ao serviço do Estado Moçambicano.
Destaca-se duas correntes ideológicas diametralmente diferentes: o Marxismo-Leninismo e o Neo-liberalismo. O texto vai tentar, duma forma desapaixonada, perceber a Frelimo Marxista-Leninista e a Frelimo neo-liberal ao longo dos 50 anos (1962-2012) . As motivações que inspiram o presente texto e como este discute a/s ideologia/s da Frelimo estão apresentadas, como tentativa de análise, nas linhas que se seguem.
A literatura sobre o pensamento político-ideológico da Frelimo é escassa e, talvez inexistente. Dos escassos escritos lê-se e ouve-se dizer que desde 1977 a Frelimo se torna Marxista-Leninista e Partido de Vanguarda cuja finalidade era construir um Estado socialista rumo ao comunismo. Mas dos meados da década de 80 diz-se que a Frelimo abandona aqueles atributos ideológicos e abraça o neo-liberalismo económico, multipartidarismo e por aí em diante. Será que a Frelimo Marxista-Leninista é a mesma do neo-liberalismo de hoje. Vozes bem posicionadas da Frelimo afirmam que “é a mesma Frelimo, chamem nomes que quiserem”(1). Este texto, também, não discorda. Mas o que significa ser Frelimo Marxista-Leninista e Frelimo neo-liberal em termos de afirmação ideológica que se possa ensinar e transmitir aos jovens de hoje e de amanhã? Não parece tarefa simples transformar as mentes de membros dum partido ideologicamente firmes a internalizar duas ideologias diametralmente diferentes em menos de 13 anos(1977-1990), pois isso exige força hérculea e que pode até obrigar os mentores a interromper o processo de “ideologização” da máquina estatual e a sociedade. Será isso o que aconteceu em Moçambique?
Da heroicidade dos Moçambicanos que conduziram a luta de libertação nacional e lideraram o processo de construção do Estado Moçambicano até ao presente se pode aprender virtudes de afirmação da mocambicanidade. Dos vícios e erros de análise que a minha geração comete e, provavelmente, continuará a cometer sobre as ideologias da Frelimo se pode atribuir, possivelmente, a duas razões:
(i) “intelectualidade de sovaco”, quer dizer, desonestidade intelectual de académicos que preferem guardar para si o que sabem sobre a ideologia da Frelimo devido a conforto económico e político;
(ii) silêncio dos camaradas ideólogos da Frelimo em esclarecer aos jovens as ideologias (fundamentos e limites) que a Frelimo adoptou ou adopta em cada fase da sua existência, tanto, como força militar-política, político-militar e política.
Em Moçambique, se por um lado, a elite política da Frelimo, em exercício efectivo de poder ou não, não se tem pronunciado sobre os fundamentos e limites de correntes ideológicas adoptadas – Marxismo-Leninismo, Partido de Vanguarda e Socialismo -, e se por outro, os académicos viram-se as costas ao debate sobre a ideologia da Frelimo Marxista-Leninista e a da Frelimo neo-liberal e capitalista, vê-se nessas atitutes razões suficientes para trazer ao debate o assunto em questão numa altura em que a Frelimo se prepara para o X°. Congresso a se realizar em Outubro 2012, na Cidade de Pemba, Província de Cabo Delgado. Talvez, isso possa ajudar a perceber melhor que visão política esculpe a máquina do exercício de poder da Frelimo e que ideologia política, se haver alguma, será arquitectada pela e para a Frelimo depois do X°. Congresso.
Uso e Abuso da Ideologia Marxista-Leninista
Antes de mais, reconheça-se que o pensamento de Marx (2) contribui para uma leitura diferente de fenómenos sócio-políticos e económicos nos nossos dias. Independementemente de interpretações que o pensamento de Marx suscitara, seu respectivo uso e abuso, com particular ênfase por Lenin e seus seguidores, extensivamente conhecido na arena política e académica por Marxismo-Leninismo; das críticas levianas e rejeições das virtudes do pensamento em si, a história de pensamento revela que Marx e seguidores providenciaram uma das principais bases filosóficas para análise da economia política moderna, pois ela tem constituído até agora, talvez, o melhor quadro metodológico para o estudo da dinâmica de mudanças das sociedades. Sem excepcão, e como qualquer outra corrente filosófica, o Marxismo-Leninismo adoptado pela Frelimo deve também estar sujeito à interpretações, críticas e até rejeições, das quais, as principais, para os propósitos desta análise, relacionam-se com os três conceitos inter-relacionados sobre o Marxismo-Leninismo, designadamente: o Partido da Vanguarda (o único e auténtico), a ditadura do proletariado e o socialismo, elementos-chave que influenciaram o processo político, quer dizer, a origem do Estado do Partido Único em Moçambique e também nalguns países da África Sub-Sahariana pós-independência.
Desde já, precisamos distinguir o Estado de Partido Único de de jure e o de de facto. Diz-se que existe um Estado de Partido Único de de jure quando a Constituição de um determinado país estatui que haverá um único partido político, tornando assim ilegal para que qualquer indivíduo forme e se torne membro de outros partidos, mesmo que ela/ele apregoe o pressuposto de igualdade “ame o seu próximo como a ti mesmo” (Lucas, 10:14; Mt 19:19; Gálatas 5:14), dito que os socialistas comunistas estão bem familiarizados. Por outro lado, diz-se que existe um Estado de Partido Único de de facto quando o partido, em exercício do poder, ganha invariavelmente todas eleições quer por causa da sua legitimidade heróica-histórica, legitimidade legal ou por sua popularidade (partido antigo e bem estabelecido ou legitimidade de exercício/ desempenho económico, social e político) ou mesmo legitimação das vitórias eleitorais pelas abstenções dos eleitores. Neste caso, a Constituição do Estado e as demais leis (Lei Eleitoral) estabelecem que o partido que ganha as eleições e tenha maioria no Parlamento forma o governo por um período estabelecido, no fim do qual novas eleições são realizadas. Todavia, as novas eleições não excluem os outros partidos políticos de participarem e procurarem acesso ao poder político. Assim, um Estado de Partido Único de de facto existe onde o partido “mais popular” continua a governar eleição após eleição com mandato renovado dos eleitores, tanto aos que tiveram a oportunidade de eleger como aos que se abstiveram de eleger esse ou aquele partido mas que preferem o partido que está a governar. Que está errado nisso? Até aqui, nada!
Para situar esta reflexão, vários autores (Mandaza & Sachikonye, 1991; Mazrui & Tidy, 1984) apontam que não existe na teoria Marxista-Leninista nenhuma referência ao sistema dum Estado de Partido Único e, muitas vezes se procurou ignorar que o Partido Bolshevik da Revolução de Outubro 1971/18 era apenas um entre tantos outros partidos, que recebeu menos que um terço de votos nas eleições para Assembleia Constituinte em 1918. No entanto, deve-se também reconhecer e perceber que o modelo de um Estado de Partido Único de de jure foi introduzido à civilização moderna como variante alternativa de governação, pelos Bolsheviks, liderados por Lenin(3) depois da Revolução de 1917. Foi a partir daí que se expandiu para muitos países no mundo mas em diferentes formas segundo referências sócio-políticas e económicas específicas das regiões e contextos. O Estado de Partido Único de de jure não emergira dum dia para o outro depois de 1971. Levou anos e os sistemas políticos da Europa do Leste contemporânea, inspirados pelo exemplo Soviético, e os modelos ideológicos adoptados em muitos países em África pós-independência emergem do contexto da Segunda Guerra Mundial (IIª GM).
As variedades de Estado de Partido Único em África começam a perfilar no mesmo diapasão desde os primórdios do período da descolonização nos finais da década de 1950. Críticos como Slovo (1990); Friedrickse (1991), dizem que tais variedades foram inicialmente inspirados por uma psicologia política acrítica e não por uma de Estado, misturando assim várias referências para conveniências de exercício de poder político, mesmo que isso significasse conduzir o Estado e a sociedade à desgovernação. Tais variedades se caracterizam por um sistema político poroso onde decisões fundamentais são tomadas por certos indivíduos alinhados a quadros ideológicos, dos quais, não fizeram esforços em compreende-los mas quiseram a todo custo implanta-los numa realidade sócio-política em construção que talvez responderia melhor às exigências de sociedades políticas modernas. O impacto dessa psicologia política acrítica ainda flagela os Estados em África, no sentido de que ainda situam Africa Sub-Sahariana como terreno favorável para testar quadros ideológicos e modelos políticos e sócio-económicos, mesmo que esses tenham falhado noutros cantos do mundo4. À psicologia política acrítica, se acrescenta a mística do partido heróico, cuja duração depende de circunstâncias específicas de máquina estadual, a qual criara condições para um generalizado “medo do Partido no poder”. Relatos há, em quase todos os países Africanos que experimentaram o Estado de Partido Único, indicando que mesmo membros séniores num Estado de Partido Único tem mais medo do seu próprio partido que o respeito da disciplina partidária. Daqui, se torna interessante estabelecer a relação entre a mística heróica do Partido Único à evaporar-se ao longo da história e o medo à esse Partido Único que se declarara Marxista-Leninista e Vanguarda.
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1 Joaquim Chissano, antigo estadista Moçambicano e membro da Frelimo em entrevista no canal televisivo STV em Abril 2012 no quadro das celebrações dos 50 Anos da Frelimo; Joel Tembe, antigo combatente em entrevista na TVM no dia 05 de Junho de 2012, debruçando-se sobre as decisões do III°. Congresso da Frelimo.
2 De seu nome completo Karl Heinrich Marx (5 de Maio de 1818 – 14 de Março de 1883) foi um filósofo, economist, sociólogo, historiador, jornalista e revolucionário socialista. Talvez o pensador socialista mais influent do Séc XIX.
3 De seu nome completo Vladmir Illyich Ulyanov (mais tarde conhecido por Lenin) (10 de Abril de 1870 – 21 de Janeiro de 1924, foi revolucionário marxista russo.
4Assunto abordado com mais detalhes sobre o modelo proposto pelo Jeffrey Sachs em 2006 em Moçambique para a construção de Millenium Villages. Cfr.: Chambote (2010); Desafios do Combate a Pobreza em Moçambique. O caso de Vila de Milenio de Chibuto; UNDP/MCT. Maputo.