O Azul do Índico Por: Afonso Almeida Brandão
Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento
Já poucos se recordarão dele. Viveu e trabalhou, apaixonadamente, em Moçambique entre 1967 e Agosto de 1973, data do seu desaparecimento precoce, aos 25 anos de idade. Abraçara as Artes Plásticas de alma e coração e chegou a realizar várias exposições de pintura em Lourenço Marques, Beira, Nampula, Nacala, Ilha de Moçambique e Tete. Fomos bons amigos desde os tempos de infância. Conheci o MICO — era assim como os amigos o tratavam na intimidade do dia-a-dia -- em Outubro de 1963, à época, dois adolescentes cheios de sonhos e fantasias por desbravar. O MICO era mais velho do que eu dois anos. Na altura teríamos 13 e 15 anos, respectivamente.
Conhecemo-nos no Colégio Nuno Álvares Pereira, em Tomar (Portugal), para onde os nossos pais nos enviam mandado, com o rótulo de "meninos traquinas". O colégio tinha fama de receber, à época, "rapaziada de trato difícil". Éramos alunos internos.
Dormíamos na mesma Camarata, fazíamos as refeições no mesmo Refeitório, brincávamos no mesmo Recreio da Escola e estudávamos na mesma Sala de Aulas, pois partilhávamos a mesma Turma — o antigo 3º Ano dos Liceus (actualmente equivalente ao 7º Ano de Escolaridade).
O Amílcar já revelava naquele tempo um "jeitinho" especial para o desenho. Andava sempre com um bloco de folhas de desenho debaixo do braço e com meia dúzia de lápis de carvão no bolso. Por vezes coloria os seus trabalhos e oferecia aos amigos com quem se dava.
Escusado será dizer que eu era uma espécie de "freguês" certo contemplado.
Guardava religiosamente todos os desenhos que o MICO oferecia. O mais significativo deles — que guardo até aos dias de hoje com o maior dos cuidados e significado —, é o meu Retrato que ele ofereceu no dia 22 de Setembro de1966, dia do meu 16ª Aniversário. Guardo-o como se se tratasse de uma «pérola especial», em termos de espólio.
Anos mais tarde, já adulto e com família constituída, acabaria por emoldurar o Retrato. É um Quadro que representa desde sempre, na minha Colecção Privada de Obras de Arte, algo de muito valor estimativo. Há anos que está pendurado minha pequena Biblioteca, em casa. É um Retrato executado com o maior dos realismos que alguma vez alguém fizera, dedicado à minha pessoa.
Como posso eu esquecer este Querido Amigo de Infância? Como posso eu esquecer o Amílcar Leonardo da Gama e Sá, de seu nome completo? Que saudades desse tempo, MICO!...
O MICO era goês, filho de pais goeses, embora nascido na então Lourenço Marques, no longínquo ano de 1948, no Hospital Miguel Bombarda. Tinha uma irmã mais velha do que ele quatro anos, a Letícia, de quem não tenho notícias há muitos anos. Sei que casou e que vive em Portugal, algures, na «Linha de Cascais».
O MICO foi um bom amigo e companheiro de infância. Éramos «unha com carne». A sua primeira mostra de pintura realizou-se na «Pastelaria Restauração», que ainda hoje fica localizada na Praça que ostenta o nome do Dr. Raúl Lopes, antigo Director do Colégio Nun´ Álvares Pereira, em Tomar (Portugal), onde está situado o Edifício do Colgéio. A exposição foi inaugurada no dia 20 de Janeiro de 1967.
Lembro-me como se tivesse sido hoje.
Esteve muita gente presente e recordo as palavras simpáticas de apresentação feitas pelo nosso saudoso Prof. De Português, Dr. Almeida Faria. E as palmas finais que mereceram o seu discurso. O MICO havia reunido 18 pequenos desenhos executados a carvão e a tinta-da-china, dentro do pequeno e médio formato. Estava radiante e muito feliz. Estiveram presentes no dia da inauguração da sua primeira exposição individual de pintura, praticamente todos os seus amigos e colegas da Turma, algum público curioso e o saudoso Reitor do Colégio, o Prof. Dr. Raul Lopes.
Em finais de Setembro daquele ano (1967) eu e o MICO havíamos regressado a Moçambique, onde vivia os nossos pais. Nos dois anos seguintes estivemos sem saber nada um do outro. Eu havia ido para Nacala e ele ficaria por Lourenço Marques. O nosso encontro aconteceu em Março de 1969, na esplanada da velha Pastelaria «Scala», situada na baixa da Capital (hoje extinta e transformada «estupidamente» em várias lojas de comércio)...
Foi um reencontro com "sabor" a velhos tempos, uma mistura de abraços e muita risada. «Caramba, Afonso! Que tem sido feito de ti, homem?!» E eu, esclarecedor, impávido e sereno, a dizer «pois é, estive dois anos no Norte, em Nacala. Trabalho, agora, no jornal DIÁRIO, junto à Catedral». Daí em diante -- e até ao dia fatídico da sua horrorosa morte – fomos inseparáveis. O MICO frequentava a Escola de Belas Artes e aperfeiçoara imenso o seu trabalho. Há um ano que se aventurara nas tintas a óleo e na aguarela. Na área profissional era funcionário bancário. Nesse dia fui jantar lá a casa. Vivia com os pais e com a irmã Letícia. Mostrou-me o seu «pequeno Mundo», que era o seu quarto onde dormia e funcionava como «atelier».
Quando entrei era um cheiro intenso a tintas. «Consegues dormir aqui...?!» -- perguntei. «Claro que sim! Eu "respiro a cores", meu Querido Amigo!» -- e ria de satisfação.
«Mãe, Pai. Este é que é o amigo de que tanto vos tenho falado. Este é que é o Afonso, do Colégio de Tomar!» E os pais do MICO também riam de alegria contagiante enquanto iam dizendo «já deu para perceber que sim». A irmã Letícia olhava-me de soslaio, surpreendida e feliz.
Passei o resto da noite em casa dos pais do MICO. Jantamos galinha «à cafreal», com batatas fritas e ovo estrelado. Para comemorar "à maneira", o Pai do MICO fez questão de ir à rua para comprar uma garrafa de vinho tinto afim de acompanhar a comemoração. O MICO falava pelos cotovelos. A alegria estava ao rubro, toda a gente estava verdadeiramente animada e feliz com o nosso reencontro.
Depois fomos até ao quarto-atelier dele, onde fica "o seu pequeno Mundo".
Queria mostrar-me alguns Quadros que havia pintado. «Muito belo, Amílcar! Vejo que deste «um grande pulo!» Há segurança na tua pincelada, cor e movimento. As perspectivas são bem delineadas, o desenho equilibrado, as formas harmoniosas. Caramba! Estás a crescer, vais ser um sucesso, MICO!» - foi o exame que fiz, no momento, de forma rápida e sincera, ao trabalho pictórico que me era dado apreciar.
«Achas mesmo?» - perguntava ele — «Achas mesmo que vou chegar longe...?!»
Acompanhei as exposições que o MICO veria a realizar em Lourenço Marques, na Galeria de Arte da «Casa Amarela» (onde hoje está instalado a «Casa Museu da Moeda». E noticiei praticamente todas as exposições que ele veio a efectuar nas cidades da Beira, Nampula, Nacala, Ilha de Moçambique e Tete. «Olha, leva aqui esta carta para o jornalista Inácio de Passos, para ele escrever algo sobre a tua exposição. Diz que vens da minha parte e que eu mando um grande abraço».
O tempo ia passando. Numa bela tarde de Agosto de 1973 — encontrava-me eu na Redacção do então Rádio Clube de Moçambique, - quando recebo uma chamada da irmã Letícia, em pranto e aos soluços. Por momentos, fiquei sem saber o que se estava a passar. Segundos depois, pensei no pior e a confirmação do pesadelo viria de chofre. «Afonso: o meu irmão morreu esta manhã, quando estava a tomar banho. Tivemos de arrombar a porta que estava fechada por dentro. A minha Mãe tinha estranhado o silêncio dele e o esquentador encontrava-se dentro casa casa-de-banho, junto à banheira. As suspeitas avolumaram-se quando ela chamou por ele e não obteve resposta.
Já estava caído na banheira e com olhos revirados.... Foi uma fuga de gaz...»
Os soluços eram intercalados com o choro e com os gritos delicerantes que me chegava do outro lado do escultador.
«Vou já para vossa casa». Foi o tempo de desligar o telefone e apanhar um táxi em direcção a casa do MICO, que morava na Av. Pinheiros Chagas, no Alto Maé. Quando cheguei toda a família do MICO estava em pranto convulsivo. Abraçaram-me com força e lembro-me apenas de ter pedido «muita coragem» a seus pais e à irmã. Amílcar Leonardo da Gama e Sá — o MICO para os amigos íntimo e Família — jazia, inerte, na banheira, a aguardar a chegada da ambulância. - (Continua)
WAMPHULA FAX – 22.06.2012