Fernando Peixeiro, da Agência Lusa
N´Tchangue, uma localidade entre Nhacra e Mansoa, leste da Guiné-Bissau, viveu quatro dias de lutas e danças, o prelúdio para a cerimónia da circuncisão carregado de simbolismo, onde vencedores podem sair vencidos.
A cerimónia, "Canta Pó", realiza-se um ano antes de outra, essa mais secreta, que é a circuncisão. Mas dentro da etnia balanta, uma das principais da Guiné-Bissau, o "Canta Pó" é também visto por alguns como algo cheio de mistério e feitiçaria até.
"Há feitiçaria e até se pode perder a vida. Quem ganha nem sempre tem uma vida longa", explica à Lusa, na tabanca de N´Tchangue, Quinto Naman, balanta e apreciador da cerimónia, na qual, explica, há uma competição e por isso pode haver quem queira depois fazer mal aos que ganham.
Embora sinónimo de solidariedade e de confraternização, o "Canta Pó" junta centenas de pessoas que assistem a luta livre entre os mais jovens, a primeira competição, e a grupos que tocam e cantam, a segunda competição.
Atualmente "quase a desaparecer na sociedade guineense", segundo Quinto Naman, o "Canta Pó" tem esses dois momentos importantes. Os dias em que dura começam com dezenas de competidores a desfilar num vasto quadrado delimitado pelos espetadores. A luta é feita depois, dois a dois, em qualquer sítio do campo, no meio de muito pó mas sem juízes ou árbitros. Ganha o que consegue derrubar o outro e as costas ficam a tocar o solo.
No calor e humidade sufocantes dos dias que antecedem as chuvas é a terra do chão que seca as mãos que agarram os corpos, é a poeira do chão que serve de colchão aos que caem, é nos socalcos do chão que já foi semeado que sentam os espetadores.
Até chegarem os grupos em competição, que cantam e dançam. Este ano três. Não passa na verdade de um líder e dois ou três ajudantes, que cantam e que dançam. Ganha aquele grupo que conseguir ter mais gente a segui-lo.
Os grupos não se misturam, mas por vezes aproximam-se para medir forças. E quando o líder de um deles se lembra e começa a correr são centenas de pessoas que correm com ele, enchendo os campos de N´Tchangue de longas filas de gente de roupas coloridas, homens e mulheres, crianças também.
"Canta Pó não significa nada, é uma brincadeira que fazemos numa tabanca (pequena localidade) como esta, uma brincadeira que junta jovens que podem fazer a circuncisão no próximo ano", explica António Biague, natural da tabanca de N´Tchangue, que este ano organizou "a festa grande", como grande vai ser também a festa para o ano.
Biague é um "homem grande", alguém que pela sua experiência e idade é profundamente respeitado pelos mais jovens. São os homens e as mulheres "grandes" quem organiza o "Canta Pó". Aos mais novos cabe-lhes respeitar a tradição e vestir-se (nalguns casos praticamente despir-se) de acordo: panos coloridos e tudo o que possa servir de adorno.
Se os lutadores usam por norma uma peça ou duas de roupa interior, panos a proteger os joelhos e colares e ornamentos idênticos na cintura, os responsáveis dos grupos que cantam e dançam não se poupam a esforços: correntes à volta do pescoço, pedaços de pneus na cintura, bonecos nas costas, uma infinidade de pulseiras nos braços (de corda, borracha ou metal) e outros tantos adornos na cintura, que vão da corda ao aço. Búzios e conchas, pequenos sacos, carapaças de tartaruga e até latas de conserva ou de leite em pó, furadas, servem de adorno.
Mas não cantam o leite nem sequer o pó que levantam quando lutam ou quando correm campos fora, com uma multidão a segui-los. "Pó" em crioulo quer dizer "pau". O pau é um objeto sagrado, que os tais "homens grandes" vão em segredo buscar à mata e que andará por ali nos dias de festa, sem que ninguém saiba onde.
E o pau, um simples e sagrado pedaço de madeira, voltará depois para o sossego das matas. Como, quando ou quem o escolhe "é segredo dos homens grandes", diz Biagui.
Ficam quatro dias de festa, de sábado a esta terça-feira, fica o pó, o calor, a luta livre, a dança, os cantares, os adornos, a tradição. E fica "outra festa grande", a circuncisão, dentro de um ano.
FP.
Lusa – 20.06.2012