O MULTIPARTIDARISMO e a economia de mercado vigentes do país impõem a reconceptualização das categorias de ideal e de unidade nacionais pois, por vezes, se confundem com alguma falta de estratégia clara para a sua materialização, segundo defendeu, em entrevista ao nosso Jornal, o historiador Joel Tembe, no âmbito das auscultações que temos vindo a realizar junto de diversas personalidades por ocasião dos 50 anos da fundação da Frelimo.
Joel Tembe destacou três aspectos que para ele foram importantes no percurso histórico da Frelimo, sobretudo no período pós-independência. Trata-se do ideal de construção de uma sociedade inclusiva e de bem-estar para todos, da unidade nacional e a solidariedade interna e internacional.
Para o historiador, é possível construir uma sociedade inclusiva e de bem-estar para todos, dependendo da clareza do ideal a defender, tal como o fizeram as gerações do 25 de Setembro e do 8 de Março, muito embora algumas correntes de opinião sustentem que é uma utopia num contexto neo-liberal. Sublinhou que a geração do 8 de Março, a que ele pertenceu, assumiu na altura um ideal de tal forma que as ambições e os sonhos individuais foram abdicados por uma causa colectiva.
A unidade nacional, cujo obreiro foi Eduardo Mondlane, foi e continua a ser um paradigma complexo que exige uma discussão permanente no seio dos moçambicanos. Ela foi operadora no contexto da luta armada de libertação nacional e tornou possível a independência nacional.
Joel Tembe, que nos últimos 12 anos tem vindo a dedicar-se bastante na investigação sobre a história da Frelimo para entender o processo que culminou com a libertação de Moçambique, afirmou que houve durante o mesmo, problemas de racismo, tribalismo e de grupismo, destacando a capacidade e o papel de Eduardo Mondlane na mobilização de jovens para a causa.
Disse que durante a luta de libertação nacional houve disputas terríveis no seio do movimento guerrilheiro e apelou aos investigadores e académicos para o dever de escreverem sobre como as estratégias de grupo tiveram influência na construção da sociedade moçambicana.
Mas, para Joel Tembe, não é possível perceber a luta de libertação nacional sem se recuar para os movimentos nacionalistas, nomeadamente para aferir a sua génese, o ideal das pessoas que os fundaram e como se fundiram numa só frente. Afirmou que a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) é uma espécie de reencontro entre grupos de vários estratos sociais com várias motivações e que encontraram na diáspora um mecanismo de consolidação da ideia e da consciência nacionalista.
Uma das diásporas importantes nesse processo é a que se baseou na África Austral, que constituía a maioria. Outras diásporas constituíram-se designadamente na Europa e nos Estados Unidos da América, formadas por estudantes. Essas diásporas desenvolveram a sua ideia e influência política inspirando-se nos acontecimentos que naquela altura ganhavam forma no mundo e tiveram como ninho Dar-es-Salaam, a capital tanzaniana.
“A Frelimo significou a libertação do povo moçambicano do colonialismo português. Essa libertação tinha desafios, o maior dos quais a construção do país. Aí é que começam os problemas, derivados da estratégia adoptada para projectar uma sociedade pós-colonial”, disse.
Papel do II Congresso
O II Congresso, realizado em 1968, jogou um papel fundamental, de acordo com Joel Tembe, ao fazer sobressair a linha revolucionária que defendia que a luta armada não apenas tinha em vista a substituição do colonialismo mas também pensar-se no tipo de sociedade que se pretendia construir uma vez proclamada a independência nacional.
O historiador disse que os nacionalistas ficaram divididos. Os ditos nacionalistas contra-revolucionários tinham uma perspectiva diferente, enquanto os revolucionários olharam para o contexto global, porque iluminados sob o ponto de vista ideológico, pois viram que a sociedade tinha que ser socialista, onde não podia prevalecer o capitalismo, que era inimigo da época.
A linha revolucionária, a do povo, teve que sacrificar a pequena burguesia, enquanto a contra-revolucionária julgava que uma vez expulso o colonialismo era possível implantar uma sociedade capitalista. Para a linha revolucionária, a revolução só triunfaria com a eliminação do capitalismo. A pequena burguesia (contra-revolucionários) perdeu espaço e a sua evolução foi estancada. Isso gerou conflitos que se arrastaram até à proclamação da independência nacional.
Essas contradições antagónicas tiveram consequências no próprio desenvolvimento do país na pós-independência. A Rodésia do Sul de Ian Smith e a África do Sul do regime do “apartheid” constituíram-se em aliados das forças contra-revolucionárias e desencadearam acções de desestabilização contra o país acabado de libertar, numa guerra que só viria a terminar em 1992.
(J. Macamo)
A paz e os desafios actuais
Com a queda dos regimes racistas e minoritários da Rodésia do Sul (Zimbabwe) e da África do Sul, os moçambicanos, já sem influência externa regional, lançaram-se para as negociações que culminaram com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP) em Roma. Joel Tembe considera que a paz é o maior desafio do país. A paz não é só o calar das armas, mas sim a reconciliação, a tolerância e a inclusão.
Numa situação de multipartidarismo e como partido no poder, segundo afirmou a fonte, a Frelimo tem que interpretar melhor o sentido de uma sociedade político-multipartidária. Neste domínio, defendeu, ainda há muitas dificuldades. Disse que se se fizer a transposição do conceito de paz para a forma como o multipartidarismo deve ser percebido, então estabelecer-se-á uma plataforma para o desenvolvimento.
Joel Tembe considera que ao se abrir ao multipartidarismo, a Frelimo perdeu o sentido de que a classe para a qual lutou ainda não tinha poder, ligado à independência económica.
Ao se abrir, ela foi tomada por grupos com uma certa hegemonia económica e a sua liderança, por uma questão de sobrevivência, viu-se obrigada a fazer parte do esquema.
Isso vai corroer o ideal e o sentido de unidade. As classes que vão ficando cada vez mais desfavorecidas vão se sentido cada vez mais desiludidas, ao se aperceberem de que o grande poder (a liderança do partido) vai se aliando ao económico.
Resgatar o ideal e a unidade nacional
Para Joel Tembe, o X Congresso do partido Frelimo, a realizar-se de 23 a 28 de Setembro próximo na cidade de Pemba, em Cabo Delgado, deve resgatar o ideal e a unidade nacional. Observou que com a abertura do partido, algumas pessoas transformaram a Frelimo num ninho de aves de rapina, diluindo o seu sentido.
O X Congresso tem que fazer uma filtragem, disse.
Acrescentou que grande parte das pessoas, em especial a juventude, tem o pensamento e o comportamento de aves de rapina. Vão ao partido para resolver os seus problemas.
“Há uma corrida desenfreada de se ficar rico. Por exemplo, existe um açambarcamento incrível de terras. Ninguém é proibido de ser rico ou ser empresário, mas como sê-lo sem corroer o bem público essa é a questão”, disse.
O académico afirmou que o ideal materializa-se nas políticas por exemplo da educação, saúde, habitação, empreendedorismo, entre outros sectores. Defende que é chegada a vez de se colocar homem certo no lugar certo. A Assembleia da República, por exemplo, deve ser um lugar onde se colocam pessoas capazes de defender um ideal.
Disse que os membros da Frelimo devem ser educados a respeitar as diferenças, a encarar o outro como cidadão que tem uma opção e contribuição a dar para que o ideal de unidade prevaleça.
“Unidade nacional é partilhar os recursos em igualdade de circunstâncias. É reduzir as assimetrias regionais. Isso exige uma grande engenharia a ser desenhada pelo partido. Tem que haver mais vigilância e controlo, eliminando grupismos que cada vez mais se notam nos dias correntes”, disse, acrescentando que os académicos têm uma palavra a dizer nesse processo, devendo quebrar a auto-censura a que estão envoltos.