CRÓNICA de: Viriato Caetano Dias
"A História diz-nos quem fomos, mas é a política que tem de nos dizer quem iremos ser".
"Por maior que o lobo seja, nunca mostres que tens medo dele". Professor José Hermano Saraiva, Historiador português
Enquanto via atentamente no Jornal da Tarde da Rádio e Televisão de Portugal (RTP) as imagens da fúria das queimadas que assolam principalmente a população e o património da Região Autónoma da Madeira, em Portugal, lia com profunda mágoa e pesar o rodapé da notícia da morte do meu estimado amigo e admirável Professor José Hermano Saraiva. Sou “produto” intelectual deste homem, por isso tenho o dever de deixar perpetuar nestas linhas a minha singela homenagem a esta figura muitas vezes incompreendida e ao mesmo tempo fascinante da gesta portuguesa.
Portanto, a data de 20 de Julho ficará para sempre gravada na minha memória.
Nunca cheguei a estar pessoalmente com o Professor José Hermano Saraiva, talvez me quizesse poupar da sua dor que sabia perfeitamente ser também a minha, mas tive o privilégio de trocar durante muitos anos correspondências com ele, que, quanto a mim, substituem um aperto de mão ou um simples abraço. Em muitos dos seus programas televisivos, fez o que poucos governos do mundo fizeram ao tirar do analfabetismo milhões de cidadãos, honrando-me em alguns desses programas com leituras de trechos das minhas correspondências.
A ausência de correspondências nos últimos meses fez-me deslocar de Évora para Lisboa junto ao VIDEOFONO (produtor privado de televisão portuguesa) em busca de notícias do Professor Saraiva. Tive noticias nada animadoras, quase que cai de joelhos, pois disseram-me que o Professor estava a lutar pela vida em sua residência, em Palmela, no distrito de Setúbal. O pessoal da VIDEOFONO, vendo-me em “banho no calor da notícia”, prometeram que me levariam ao Professor no dia seguinte de manhã. Impossível, tinha que estar no “garimpo da academia” para uma frequência (teste) inadiável. Enfim, há coisas na vida que só Deus na sua incomensurável grandeza e sabedoria pode explicar, porquanto este desencontro “desencontra” em mim qualquer sentido de explicação”.
Estávamos em 2005. Os Serviços mandara-me à Nampula para "evangilizar" os funcionários públicos e a sociedade civil em geral em matérias ligadas ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação , isto implicava, contundentemente, abandonar por alguns anos a minha formatura na Universidade Pedagógica em Maputo. Apercebendo-se do estado clínico do meu espírito, Saraiva escreveu-me dizendo mais ou menos as seguintes palavras (cito de memória porque a aludida correspondência guardo junto aos meus pertences em Évora): "Meu estimado amigo Viriato, não se preocupe tanto com a sua licenciatura se o dever da pátria o chama. Os grandes cometas da Humanidade não foram para além de bacharéis". Cinco anos depois, quando tirei a minha licenciatura em História e Arqueologia na Universidade de Évora, recebi uma simpática correspondência do Professor pelo êxito alcançado.
A minha relação com o Professor José Hermano Saraiva não foi marcada pela "estranha" concordância em que assistimos entre os assistentes de uma missa e os apóstolos, entre os bajuladores e os patrões (do tapete vermelho), enfim, entre os domadores e os papagaios (refiro-me à alguns porta-vozes de partidos políticos). Não, não, nada disso! A minha relação com o Professor José Hermano Saraiva, separada por 60 anos de idade, era feita de respeito e de admiração. Num certo programa questionei ao Professor o significado das palavras "descobrimento" e "achamento".
Ele insistia que o Brasil é uma “descoberta fenomenal” de Pedro Álvares Cabral, no ano de 1500. O termo “fenomenal” é meu, porque segundo suas palavras citando a carta de Pedro Vaz de Caminha afirma “Pedro Álvares Cabral proibiu que os portugueses desembarcassem com armas, para evitar confrontos sangrentos com os nativos . Um dos primeiros desembarcados levava como escolta um gaiteiro minhoto e foi ao som da música da gaita de foles que se fez dança de que Caminha nos dá notícia. É um episódio único na história da humanidade, este do primeiro contacto entre dois povos de cultura tão diferentes ter sido feito ao som de uma música regional, e não entre lutas ferozes”.
Eu acho exactamente o contrário, que muito antes da chegada dos portugueses à Terra de Vera Cruz terão estado os chineses. Questiona-se, a este propósito o seguinte: quando o Homem foi à lua, a história da época não escreveu que o Homem descobriu a lua. Como pode o ser humano ter descoberto algo que simplesmente já existia? Portanto, a semântica correcta nesta questão seria “chegada” e não “descobrimento” ou achamento”. Existe, a propósito, um estudo já conhecido que afirma que o primeiro português a chegar ao Brasil foi Eduardo Pacheco Pereira, em 1948, durante o reinado de Manuel I (de cognome “o venturoso”). Não sei qual das versões “paridas” têm razão, visto que o próprio Professor Saraiva ensinou-me que “Em antiguidade histórica certidão a ver não pode”.
Estava no último ano da minha formatura em História e Arqueologia e andava embaraçado com a disciplina de História de Portugal Moderno II, por causa de um trabalho “encomendado” pela excelentíssima Professora Antónia Fialho Conde, que recomendara para fazer um estudo minucioso sobre a vida de Sebastião José de Carvalho e Melo. Por três vezes apresentei o estudo à Professora Conde, mas esta mostrou-se reticente. Faltava por explicar o triste episódio da expulsão dos jesuítas. Não é que eu não tivesse evocado o episódio, evoquei cirurgicamente, mas, como repetiu a Professora Conde, “num estudo há referências académicas que um investigador não deve ignorar”.
Peguei na caneta e num papel A4 e pus-me a escrever ao Professor Saraiva.
Em pouco menos de uma semana tive uma longa resposta que transcrevo apenas este trecho “Foi o desejo de exercer um poder sem limites que levou Pombal a desencadear uma acção de descrédito dos Jesuítas, que teve expressão em toda a Europa”. E eu, armado em “chicoesperto”, conclui à luz das investigações feitas, que Pombal era contra os jesuítas ao mesmo tempo que se fazia rodear deles. Quando mandei dizer ao Professor Saraiva (depois de receber à “benção” da Professora Conde), este de seguida reafirmou a célebre frase que “a importância de uma escola não é o que se ensina, mas o que se descobre”.
Numa outra correspondência escrevi ao Professor Saraiva indignado pelo orçamento bélico que os Estados gastam em detrimento da promoção do saber.
Questionei contundentemente o pouco que Portugal faz pela disseminação da língua portuguesa nos PALOPs. Ao contrário de outros países que apostam na irradiação além-fronteiras dos seus idiomas, Portugal faz o contrário, aposta na aquisição de submarinos que não servem sequer para combater os incêndios florestais. E pedi que ele, Professor José Hermano Saraiva, continuasse a usar a televisão para ensinar o mundo a falar fluentemente português, o bom português.
A resposta não se fez esperar: “Concordo inteiramente consigo na urgente necessidade de fazer um esforço para manter a pureza e beleza do falar português. O idioma nascido de um pequeno povo do litoral europeu e que irradiou, levado por missionários, mercadores ou simples aventureiros e conseguiu semear-se tão profundamente que ainda hoje se fala nos quatro continentes do Mundo. É em minha opinião uma lição de cultura e de civismo. Mostra como um povo minúsculo pode lançar um anel de entendimento e comunicação à volta de todo o planeta. Se esta lição tivesse imitadores e se as grandes potências em vez de mísseis demolidores, enviassem gente pacífica que arroteasse os solos, curasse as doenças, abrisse as estradas, introduzisse as técnicas e as novas ideias, o Mundo podia ser diferente”.
Mas não é.
Em tertúlias académicas, quer em Portugal quer em Moçambique, ouvi alguns professores e amigos do “garimpo académico” e não só acusaram o Professor José Hermano Saraiva de não ser historiador (por possuir apenas a licenciatura e não o doutoramento em história). No rol das acusações, cabe ainda a denúncia de que Saraiva era apenas um mero impostor e malabarista da história. A resposta do acusado foi dada numa entrevista à rádio TSF, em que o professor “descarregou electricamente” mais ou menos nos seguintes termos : “A nossa universidade produz pouco, claro que há lá verdadeiros valores que eu reconheço, mas também há lá, enfim, criaturas que não compreendo que entraram ali a não ser como os insectos entram pelas frinchas de um prédio arruinado, e há uns pobres insectos que trepam por ali, depois se permitem, sem ler os livros dos outros, dizer mal deles. E os alunos deles, que depois vão ser professores, ensinam pelos meus livros”.
Muito ficou por dizer sobre a figura de José Hermano Saraiva. A obra de um homem que fez da televisão e dos livros publicados uma oficina pedagógica para vencer um dos mais sublimes Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, que é a educação, nao se resume em quatro ou cinco páginas de computador.
Simplesmente não se resume, ela permanece na consciência de quem é digno da sua aprendizagem. A minha intenção, ao contrário do título, não é a tenção de homenagear uma das minhas bússolas académicas, mas deixar um enorme agradecimento pelo muito que, sobre a História, pude aprender com ele.
Zicomo kwambiri (muito obrigado)
P.S: Diz o povo que o azar nunca vem só. Uma mensagem que tinha como fito informar ao meu estimado amigo e brigadeiro Francisco Zacarias Mataruca sobre a morte do Professor José Hermano Saraiva teve uma resposta muito triste. Faleceu-lhe o irmão, em Manica, vítima de acidente de viação. À família Mataruca, endereço os meus pêsames pelo passamento.
WAMPHULA FAX – 27.07.2012