Há exemplos na história aos quais podemos recorrer para perceber porque isso não é bom. Nos países escandinavos foi assim durante muito tempo. E enquanto o estado-providência funcionou ninguém teve motivos para torcer o nariz perante o nepotismo, o oportunismo e arrogância do partido no poder, nomeadamente do partido social-democrata.
Quando a embaixadora sueca em Maputo proclama em entrevista de jornal que democracia é alternância – num tom perceptor e descarado que fere as regras da etiqueta diplomática – ela deve ter a experiência do seu próprio país em mente. Na verdade, em todo o lado onde um partido ganhou poder absoluto – de forma merecida ou não – a cultura política degenerou porque se criou um ambiente onde o oportunismo e a prepotência tiveram espaço para crescer.
Esta é uma situação que caracteriza a nossa democracia em Moçambique. Não obstante, não é só, nem principalmente isto que está mal. Ao dizer isto sei quanto franzir de sobrolho vou atrair contra a minha pessoa. O que está mal é a cultura política que a sustenta, o que é outra maneira de dizer que ao déficit democrático junta-se o déficit de cidadania. E quem é responsável por essa cultura política não é nem Guebuza, nem Dhlakama, nem Frelimo, nem a Assembleia da República. Somos nós, todos nós. É como o “chapa”.
Todos nós gostamos de projectar tudo quanto está errado no trânsito à má condução do “chapa”. Mas, na realidade, como o “chapa” conduz é como muitos de nós conduzimos. A única excepção é talvez que o “chapa” conduz assim mesmo quando estamos a olhar, enquanto que alguns de nós conduzem mal de preferência quando ninguém está a olhar. Mas dá no mesmo. O déficit democrático é daqui, bem ao jeito do “spot” publicitário que todos conhecem.
A questão que interessa reflectir – e é isso que me proponho a fazer nesta mini-série – é sobre o que está mal nessa cultura política e por que todos nós somos responsáveis. Para dizer a verdade, seriam necessárias mais páginas do que as que vou utilizar para fazer justiça ao tema.
Mas o que é importante pode também ser dito em poucas palavras. E se isso não é possível, então, se calhar não é importante. Proponho duas coisas que estão mal. Primeiro, está mal a nossa concepção de política baseada, como ela me parece estar, na nefasta ideia segundo a qual um sistema político funcional seria aquele que se caracterizaria por regras e normas perfeitas, actores íntegros e comprometidos com o bem comum, objectivos nobres e consenso em relação a tudo que é valor.
Não me farto de repetir que esta ideia de política é que lixou o projecto revolucionário da Frelimo gloriosa, justamente porque não tinha muita coisa a ver com a vida real. Muitos dos que se consideram críticos e analistas privilegiados do que está mal neste país são reféns desta visão problemática. Aprenderam pouco da nossa própria história. A segunda coisa que está mal é a nossa tendência de externalização do conflito político, o que transforma o nosso sistema político num dos mais porosos sobre a face da terra. Tudo isto vou tentar explicar à medida que for reflectindo.
O que vou mostrar, porém, é que estamos perante duas faces da mesma moeda. Como essa moeda é importante para a saúde da democracia não é possível ter melhor cultura política da que temos. E cultura política é debate na perspectiva deliberativa da democracia. Porque democracia é mesmo isso: deliberação.
Mas como ter deliberação numa sociedade que se contenta em destacar o que há de errado nos outros e está-se nas tintas para o pequeno espaço em comum que temos e que devia ser o ponto de partida para deliberarmos sobre a nossa sociedade? Como ter deliberação numa sociedade que se contenta com posições morais extremas, cujo desfecho só pode ser a diabolização de quem se encontra do outro lado? Como ter deliberação numa sociedade onde o exemplo máximo de clarividência analítica é tecer vaticínios em relação aos tumultos que vão abalar o país se os governantes continuarem a ser gananciosos? É sobre estas questões que quero reflectir. Segurem-se!
Pobres em debate
O ESQUEMA do sociólogo americano, Jon Elster, na sua sistematização da democracia deliberativa para destacar alguns aspectos da nossa cultura política. Segundo ele, em política fazemos três coisas: discutimos, negociamos e votamos. Uma análise da nossa cultura política, portanto, pode ser sujeita a este teste. Discutimos? Duvido. Negociamos? Por vezes. Votamos? Sim.
É claro que as coisas não são assim tão lineares. Isto porque as preferências dos actores políticos – em moçambicano: dos “ladrões” e do “povo” – estão sujeitas a três tipos de operação que a gente não pode prever: agregação (quando votamos), transformação (quando aceitamos os argumentos dos outros) e manipulação (quando os outros são mais espertinhos do que nós).
Tudo isto é complicado ainda mais pelo facto de que em todo o processo político há motivações que vão desde a própria razão (isto é, a discussão dos méritos factuais duma questão), passam pela paixão (o compromisso, digamos, ideológico) até aos interesses (por exemplo, preservação de privilégios, etc.). Esta sistematização é uma entre várias, mas dá para mostrar quão problemática é a ideia que temos do que não anda bem no país. Problema por ser demasiado simples.
Votamos, manipulamos e preservamos os nossos interesses. Não discutimos porque discutir é quando aplicamos a razão para apreciar os méritos duma certa decisão independentemente das nossas paixões e interesses. Por que é que a decisão de atribuir 7 milhões aos distritos faz sentido, ou não, no contexto do reforço da autonomia local, descentralização e responsabilização? O que é que a este propósito se discutiu? É para roubarem mais, o dinheiro não vai chegar aos necessitados, é só para ganharem votos, etc.
Pessoalmente, acho que esta foi uma das decisões mais importantes – senão a mais importante desde que introduzimos a democracia multi-partidária – do governo de Guebuza. Ao não ser sujeita a uma discussão racional perdeu toda a força política que poderia ter tido. E força política no meu entender é quando a acção política reforça a nossa democracia. Também não negociamos porque negociar é quando reconhecemos a legitimidade duma posição e procuramos por um compromisso que vai preservar a crença nos mecanismos políticos.
No país há dois instrumentos de negociação: a chamada concertação social e a auscultação popular. A primeira vá que não vá. A segunda é para esquecer. Na concertação social há um esforço notável de respeitar a legitimidade das posições que existem na nossa sociedade. A auscultação popular é coisa do passado que, para o bem da saúde da nossa democracia, devia ser completamente banida do nosso sistema decisório. Tem sido uma artimanha para indivíduos sem a mínima noção do que estão a fazer andarem em viagens a “colher sensibilidades”, quando as viagens são dentro do país, e “recolher experiências”, quando são para fora.
A concertação social é o exemplo de como a democracia realmente funciona. Interesses diferentes encontram-se para negociar a implementação duma medida. É por essa razão, por exemplo, que em democracia nunca é a melhor solução que ganha – do ponto de vista técnico – mas sim a solução mais ou menos consensual.
É por isso também que devíamos mandar passear todo o doador que nos quer convencer da ideia de que a política de desenvolvimento traçada pelo seu país pode ser a solução dos nossos problemas. Não pode porque essa política não é a melhor solução técnica para o problema do desenvolvimento, mas sim o compromisso que foi possível alcançar nesse país.
A concertação social é um mecanismo que precisa de ser alargado no país, mas para que isso aconteça é necessário que as pessoas se organizem e articulem os seus interesses. Esperar apenas pelo dia do voto e, quando ele chegar, votar por instinto e depois reclamar que os outros puseram ladrões no poder ou que os “ladrões” voltaram a ser mais espertos é simplesmente estúpido.
Mas isso é, infelizmente, o que se passa no nosso país.
Alemães barbudos
Só isso é necessário e suficiente para que Moçambique se desenvolva. Quando contra todas as expectativas a constituição revela lacunas, os políticos portam-se normalmente, isto é mal, e o povo faz sorna, por vezes, refugiamo-nos nos impropérios que nos afastam ainda mais duma cultura política sã.
Costuma-se dizer que cada país tem os políticos que merece. Reparem que não é o mesmo que dizer que cada país merece os políticos que tem. O dia é longo, o leitor pode pensar nisso. Mas há uma ligação entre a afirmação correcta e a nossa cultura política. Nenhuma democracia funciona por si só. Que o poder absoluto corrompa absolutamente não revela a baixeza dos nossos políticos. Revela o nosso déficit de cidadania que, nas democracias que funcionam, tem sido o principal correctivo contra uma tendência perfeitamente normal.
Barack Obama, David Cameron e Angela Merkel no nosso país muito provavelmente portar-se-iam como se portam alguns dos nossos políticos. E isso não seria porque eles seriam da Frelimo, mas sim porque estariam a agir num contexto político dentro do qual o cidadão se considera espectador e não actor, enquanto que aqueles que deviam analisar as coisas criticamente estão mais entretidos a festejar a profundidade do pensamento de alemães barbudos como Karl Marx, também refém da ideia escatalógica segundo a qual seria possível desenhar sistemas políticos que vão produzir gente perfeita e resultados desejados sem nenhum investimento subsequente de ninguém. Peço desculpas pelo comprimento da frase. Mente curta, frase longa.
O nosso sentido de cidadania manifesta-se de três maneiras principais, nenhuma das quais é realmente útil. A primeira consiste em repetir incessantemente que o sistema está podre – ou algo assim. Muitas das pessoas que reclamam assim são inclusivamente membros do Partido que nem coragem têm para usar os mecanismos internos ao seu dispor.
As únicas pessoas que agiram de forma exemplar – e que por isso merecem o nosso respeito, mesmo se não concordo com as suas preferências políticas – foram pessoas como Ismael Mussá e Eduardo Namburete que sacrificaram os privilégios que tinham como funcionários do Estado para lutarem pelo que acham correcto. Com essa decisão eles mostraram que a desculpa de represálias e sobrevivência é mesmo isso: desculpa.
A segunda manifestação de cidadania é a externalização da nossa política. Criam-se – ou as pessoas juntam-se a – ONGs que abordam, a partir duma agenda externa, as nossas insuficiências como se de problemas técnicos se tratasse. Não quero questionar a boa fé dessas pessoas. Quero apenas dizer que o nosso conceito de sociedade civil é, se calhar, uma grande farsa que provavelmente contribui muito para fragilizar a nossa cultura política. Quando não é ONG é a articulação de conflitos internos – como por exemplo o saque da madeira no Norte ou, agora, as indústrias extractivas – com campanhas internacionais que desarticulam o vínculo interno que dá força ao sistema político.
Continuo a achar estranho que nenhuma das manifestações de repúdio ao saque da madeira ou ao que se considera como sendo a injustiça dos mega-projectos tenha sido canalizada através dos deputados dessas regiões. A gente corre primeiro para fora. Finalmente, a última manifestação é a esperança quase doentia de que o povo se revolte, o que mostra até que ponto os “ladrões” e o “povo” estão no mesmo comprimento de onda quanto ao seu sentido democrático.
Não admira, pois, que pessoas normalmente sensatas se excedam na comemoração de tumultos como os que se viveram em Fevereiro de 2008 e Setembro de 2010. Pobre é a cultura política que precisa da sublevação dos que nada têm a perder para a sua regeneração.- E. Macamo - Sociólogo