Quando alguém “gosta” da minha foto, do meu comentário ou seja do que for que eu “postar” na minha página do “Facebook” o que quer dizer com isso? Que gosta mesmo? E o que é que isso significa? E quando “partilha” com outros, é porque “gosta”? E o que é que isso significa realmente? O consenso no “Facebook” é que quando alguém “gosta” é porque é da mesma opinião, apoia, teria dito o mesmo, toda a gente devia concordar, sim senhora!
Pessoalmente, por não saber o que este “I like” realmente significa – e acima de tudo – se a pessoa que escreveu o texto em questão tem o mesmo conceito de “I like” que eu prefiro nunca “gostar” de nada do que vejo no “Facebook”. É a melhor maneira de evitar mal-entendidos. Enquanto eu não souber se os outros definem “gosto” como eu, prefiro não “gostar” de nada.
Agora, o que é surpreendente na nossa cultura política é a facilidade com que “gostamos” de algum comentário – por mais desvairado que seja – mas desde que ele nos reconforte na ideia de que temos o privilégio de olhar para algo intrinsecamente podre que se vai putrificando sem nos afectar de nenhuma maneira.
Vem daí uma certa apetência pela celebração de tudo quanto tenha a aparência de “crítica”, mesmo se essas coisas “críticas” não tenham estofo para suster os golpes duma análise mais cuidada.
Uma manifestação particularmente curiosa deste fenómeno pode ser visto na imprensa que se considera “independente”. Qualquer académico que apareça em público a dizer mal do sistema político não só é festejado como a incarnação da integridade e da sabedoria infinita. Constitui também ensejo para desqualificar todo o académico que não teve a “coragem” de dizer o mesmo.
E se alguém, depois de analisar o dito e constatar fraquezas, tiver a ousadia de questionar, vão chover sobre ele as acusações mais ignóbeis das suas motivações e instrumentalização pelo poder. E fim da discussão. Do outro lado das coisas acontece, naturalmente, o mesmo. Basta um comentário a favor dos governantes para que se festeje o “patriotismo” do indivíduo e para que se considerem “traidores” aqueles que não tiveram a clarividência manifestada pelo festejado. Aqui também fim da discussão.
O que quero dizer com isto tudo é que temos uma cultura política oca, sem debate, nem – o que é bem pior – deliberação. Virámos uma democracia de espectadores que bate palmas por todo o lance espectacular, mas não se considera a si próprio parte do jogo. Em cada uma das claques – contra ou a favor do Governo – está uma mistura amorfa dos mais estranhos companheiros de cama. Pensam que “gostam” da mesma coisa. Quem quer ter uma ilustração prática disto só precisa de ler as mensagens que vão girando no rodapé de programas televisivos: “força fulano de tal!”, “concordo com beltrano”, etc. Claque, nunca opinião. Mas é com este tipo de gente que Moçambique tem que ser. Como, só os espíritos é que sabem. Ou talvez não. Mas de certeza há por aí um idiota qualquer que “gosta” e que pensa estar acima (e fora) do sistema político.
A “feice-bucalização” da nossa cultura política tem sido um entrave muito grande. Há muita coisa na política que é técnica e que, por isso, não pode prescindir duma discussão factual.
Instituições de pesquisa como o IESE têm feito alguma coisa para introduzir estes aspectos factuais na nossa discussão. O problema, contudo, é que política é também valor e paixão. A articulação de questões factuais tem sido refém das nossas paixões com a agravante de que estas sugerem uma falsa comunhão de valores.
O Canal de Moçambique, um dos jornais mais emocionais que temos no país, pode celebrar efusivamente observações críticas feitas por Jorge Rebelo contra os seus próprios “camaradas” e até atacar – como fez comigo – quem considere essas críticas algo incoerentes sem nenhum sentido de contradição, talvez porque contradição faça parta do campo semântico da dialéctica... O que importa é “I like”, ponto final.
A denúncia
A IDEIA de “denúncia” peço-a emprestada ao antropológo português, José P. Teixeira, que numa discussão na internet a empregou para caracterizar algumas das coisas que em Moçambique passam por crítica.
Parece-me uma ideia extremamente perceptiva. A “denúncia” é típica de sistemas políticos totalitários. Nesses sistemas ninguém gosta de dar na cara, e com razão. Nunca se sabe como o sistema pode reagir. Mas pior do que isso, as pessoas preferem a denúncia à crítica porque a primeira é mais fácil. É só dizer que alguém age contra a norma e esperar que se tomem medidas contra essa pessoa. A crítica, por seu turno, é mais complicada. Não basta queixar. É preciso reflectir sobre como o que está mal compromete a prossecução de algo que reforçaria o nosso sentido de comunidade. Só nesse sentido é que a crítica pode ser constructiva e, na verdade, é desse tipo de crítica que a democracia deliberativa precisa.
Uma manifestação particularmente nefasta da denúncia é o “abaixo-assinado” anónimo que volta e meia aparece nos jornais. O que parece um acto de coragem por parte dum grupo de funcionários que se sente “injustiçado” pelo “poder” vira, após inspecção mais rigorosa, um dos mais vis actos de cobardia que o sistema político pode ter. Aqui o “cidadão” contenta-se simplesmente em difamar quem quer que seja sob a cobertura duma liberdade de expressão mal entendida e corrosiva do tecido social.
Jornais sem nenhum sentido de deontologia profissional acham suficiente imprimir acusações anónimas que, em princípio, são difamatórias e caluniosas porque violam o princípio importantíssimo da presunção de inocência. A nenhum desses “jornais” ocorre a ideia de fazer uma reportagem por conta própria para apurar o pano de fundo, sob o qual assentam as acusações. Se alguém diz que foi “injustiçado” pelo sistema é porque foi mesmo.
Mas há algo bem mais grave que acontece quando a denúncia se torna no principal instrumento político. Ela significa a nossa rendição perante o que está mal ao mesmo tempo que nos faz cúmplices da sua perpetuação. Explico-me. Porque é que funcionários dum Ministério – ou duma agência estatal qualquer – que não estão contentes com certo estado de coisas não exigem, de rosto destapado, a observação das normas? Se é possível organizar um abaixo-assinado é porque foi possível identificar gente insatisfeita com o estado das coisas.
Por que não fazer recurso a todos os mecanismos de articulação do nosso descontentamento que o nosso sistema político nos proporciona e, dessa forma, fortalecermos a nossa democracia? Sei que alguns leitores vão dizer que é mais fácil dito – e logo do estrangeiro e de quem não precisa da Frelimo para singrar – do que feito. Mas esse é que é justamente o problema. Todos nós temos um número infinito de razões para não assumirmos a nossa responsabilidade como cidadãos – organizando-nos – e contentamo-nos apenas com o papel de “Maria-queixinhas” que só empobrece a nossa democracia.
Mas alguém acredita mesmo que a Frelimo ou Guebuza tenham o poder que nós nele suspeitamos? Ou não será que o seu poder é diametralmente proporcional à nossa ausência de coragem em assumirmos a nossa responsabilidade como cidadãos? O nosso problema em Moçambique, mas problema que acaba por ser solução no contexto duma democracia fraca, é capaz de ser o facto de a Frelimo ser um dos poucos grupos organizados que existem.
Isso traz consigo todo o tipo de externalidades negativas, mas a solução não é lamentar a conspiração dos “camaradas”. Também não é necessariamente criar novos partidos, ainda que isto seja importante para o funcionamento da democracia. A solução pode consistir numa melhor auto-organização dos cidadãos em defesa dos seus interesses. Um indivíduo que reclama sozinho a violação de normas administrativas pode facilmente ser ostracizado ou chegar mesmo a ser vítima de atentado por parte de quem por excesso de zelo acredita no poder da Frelimo.
Mas um grupo de indivíduos que reclama abertamente não pode ser ignorado com tanta facilidade. Agora o leitor pense no número de vezes que ouviu que um grupo de juízes, funcionários públicos, directores nacionais, consumidores dos serviços públicos, etc. formou uma associação para a defesa dos seus direitos e luta pela integridade.
Se isso for complicado enumere as comissões de moradores dum prédio que conseguiram juntar dinheiro para mandar reparar uma fossa ou fazer pressão sobre o município para corrigir o problema. Já viu? Esse é que é (um dos) o problema(s)!
Jornais sem sentido de deontologia publicam acusações anónimas
Os outros
A NOSSA história ensina-nos uma coisa muito importante: que a dignidade humana é inalienável. Foi por isso que os que pegaram em armas para lutar contra o colonialismo português pegaram em armas.
Eles queriam recuperar a nossa dignidade humana. Embora a história subsequente do país não tenha necessariamente produzido esse resultado, ela criou um quadro normativo que nenhum de nós pode ignorar. Ontem, como hoje, o que dá substância à política continua a ser a garantia da dignidade humana.
Este princípio é que nos proporciona o pouco espaço comum que nos define como nação. Ao abordarmos a conduta dos nossos governantes e a nossa reacção a ela à questão que cada um de nós podia colocar para o bem deste país podia ser justamente esta: em que medida é que determinada acção, medida ou ideia nos ajuda a garantir a dignidade humana e a dar substância ao que levou gente corajosa a lutar pela independência?
O problema entre nós, contudo, é que esta questão tão básica e elementar se perde facilmente no jargão impenetrável que preferimos utilizar para abordar as coisas da nossa terra. Falamos de democracia, boa governação, direitos humanos, combate à pobreza, etc. Tudo no abstracto. Não preciso de ser Kantiano para reconhecer que a dignidade humana é um imperativo categórico. Se a existência de cada um de nós é algo imanente é fácil ver que todo o sistema político que se preze tem que ter um interesse especial em garantir a dignidade.
Moral, na política, significa que cada um de nós se sinta incomodado sempre que uma vida humana não tiver condições para realizar o seu potencial. É por aqui que a pobreza é um problema, e não porque com ela os Objectivos do Milénio não se vão cumprir. É por aí que a falta de integridade pública é um problema, e não porque com isso arriscamos ficar mal nas estatísticas da Transparência Internacional.
Agora, reparem bem: a moralidade que isso implica não pode ser apenas vista na acção de quem detém o poder político. É de cada um de nós, pois – e para parafrasear Kant – o que faz da dignidade humana um imperativo categórico é o facto de ela nos comprometer com um enunciado que qualquer de nós gostaria que fosse uma lei universal. O sofrimento de qualquer moçambicano que seja é um atentado à moral de cada um de nós porque compromete a nossa liberdade e autonomia. Aceitar o sofrimento de alguém é concordar com uma visão instrumental do ser humano, logo, de nós próprios.
A nossa cultura política, porém, está muito longe deste tipo de considerações. Cada um de nós é testemunha do sofrimento humano todos os dias, sofrimento esse para o qual cada um de nós pode contribuir com as suas opções e preferências. Que sabemos nós da vida dos nossos empregados domésticos, dos miúdos que lavam os nossos carros, dos nossos subordinados nos ministérios, do agente da Polícia que recebe uma ninharia para garantir a nossa segurança? Que fazemos nós para atenuar isso? Como nos sentimos na cidade de Maputo, por exemplo, quando por volta das 10 da noite percorremos as avenidas Eduardo Mondlane ou 24 de Julho e vemos o mar de pessoas à espera do transporte para casa? Será suficiente procurarmos por bodes expiatórios, de preferência fora de nós e bem posicionados lá no “Governo”?
Não é por acaso que vezes sem conta grandes críticos do que está mal, uma vez no poleiro, adoptem o mesmo comportamento que se tinham habituado a criticar. Há qualquer coisa fundamentalmente errada num sistema político povoado por gente íntegra e idónea, mas controlado por “ladrões”. O que é que nós – não os outros – estamos a fazer de errado? O que tentei fazer nesta mini-série foi temperar um pouco a nossa apetência por análises simplistas do nosso sistema político. Não reclamo para mim próprio uma análise mais profunda. Não obstante, se alguns leitores concordarem comigo que o problema é bem mais grave do que o chamado “déficit democrático” – por ser um “déficit de cidadania” – terei contribuído para que juntos comecemos a analisar melhor o nosso sistema político.
A análise é tanto mais útil quanto ela nos equipa para vermos o anormal. No caso da política, o anormal não são políticos corruptos e arrogantes. O facto de no “Facebook” ser fácil encontrar mais uma caricatura que dá conta da corrupção política num país qualquer e que serve para descrever a nossa própria situação é a prova de quão normal isso é. O mais difícil é explicar porque alguns sistemas políticos – poucos – escapam a essa lógica. É isso que precisamos de perceber no nosso país para uma interpelação útil do que é nosso. O “chapa”, no fundo, não é só daqui. É de todo o lado.
- E. Macamo - Sociólogo