ANA GOMES FERREIRA
José Eduardo dos Santos pediu a maioria absoluta. Não deverá tê-la. Angola está
a mudar e ele, um "político inteligente", sabe-o. 2012 pode tornar-se
o ano do seu ocaso.
Na política, o que é verdade agora já não o é dentro de algumas horas, lembra o
professor universitário Eugénio Costa Almeida. José Eduardo dos Santos deu
sinais de querer que as eleições de hoje em Angola sejam também a abertura do
processo da sua sucessão, mas a realidade pode vir a ser diferente. É
Presidente de Angola há 33 anos e a nova Constituição, em vigor desde 2010,
permite-lhe mais duas legislaturas. Se for tudo como parece, cumprirá dois anos
do seu novo mandato. E sairá, deixando no seu lugar um homem que ele escolheu,
Manuel Vicente, esperando que conquiste o país e o MPLA (Movimento Popular para
a Libertação de Angola), e mantenha o partido à frente do segundo produtor de
petróleo de África.
Hoje é o primeiro dia desta história de fim incerto. É o dia em que se realizam
as terceiras eleições do país, independente desde 1975 mas onde mal acabou a
guerra colonial começou a civil, que durou até 2002. As primeiras eleições, em
1992, acabaram em conflito e nas segundas, em 2008, o MPLA obteve mais de 80%
dos votos e elegeu 197 deputados, uma maioria esmagadora.
Mais de nove milhões de eleitores têm na frente nove candidatos à presidência. De acordo com a Constituição, o cabeça de lista do partido ou coligação que vencer elege o chefe de Estado. Nas últimas duas semanas, os partidos e os militantes transformaram Angola numa arena política nunca vista. "Foi uma campanha muito interessante, muito renhida. São as primeiras eleições que se realizam num clima de paz total. E se não há dúvidas de que o MPLA ganhará, as pessoas já começam a olhar para os outros partidos como formações capazes de participar na governação", explica Alberto Colino Cafussa, politólogo de 38 anos e autor do recém-lançado livro Tendência de Voto do Eleitor Angolano nas Eleições Legislativas de 2008. Angola mudou muito em dez anos e a mudança acelerou nos últimos quatro, percebe-se nas explicações do politólogo, que falou ao PÚBLICO por telefone, a partir de Luanda.
O promotor da paz
Nos primeiros anos da paz, as questões históricas foram muito importantes, diz Alberto Cafussa. "O MPLA era tido como o partido promotor da paz, o único que poderia garantir a estabilidade, uma vez que a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) saíra fragilizada da guerra. O líder [Jonas Savimbi] morreu em combate em Fevereiro de 2002 e o partido entrou em "reconstituição". Hoje, prossegue, os angolanos já não pensam na guerra: "Todos estão mais preocupados com o desenvolvimento e com as políticas sociais", diz Colino Cafussa.
"Talvez por perícia na governação, talvez por coincidência, o MPLA tem tido alguma performance nos números, sobretudo na macroeconomia". Porém, refere Cafussa, o eleitorado está, agora, desperto para outros indicadores. "A desigualdade social é visível e é sobre essas questões que os outros partidos debatem", e os eleitores ouvem.
Colino Cafussa diz que a profunda pobreza de há dez anos não é comparável à de 2012. E fala nos esforços de desenvolvimento, muitos deles concentrados em Luanda também por razões históricas: "Não se podia estar no interior durante a guerra e as pessoas afluíram a Luanda; vai demorar tempo a mudar isto". O politólogo explica que a rede viária cresceu muito - "nos anos de 1990 uma viagem de 400 km demorava dois ou três dias, agora faço três horas de carro" - e a reabertura das linhas ferroviárias foi crucial, permitindo a circulação de pessoas e bens. "Pode não parecer muito importante para a Europa, mas a abertura das principais linhas de caminhos-de-ferro foi mais importante para Angola do que ter aeroportos internacionais".
O problema, volta a sublinhar, são as desigualdades. As fontes de rendimento estão nas mãos de muito poucos e o Estado demora em aplicar a riqueza do país (o petróleo, os diamantes e, em breve, o gás natural) no bem-estar da população. Como exemplo, a taxa de mortalidade infantil ainda é elevadíssima.
Nas semanas que antecederam as eleições, Eduardo dos Santos fez muitas inaugurações. E fez discursos orientados, como no Lobito (Benguela), onde lembrou os progressos nesta província do programa "Água para todos" e na rede eléctrica. "É assim que o país avança", disse. Na segunda-feira, no Uíge, Manuel Vicente, num papel tão diferente do habitual, disse que as crianças no ensino primário passaram de 158 mil para 274 mil, no secundário o número subiu de 8600 para 65 mil.
Abel Chivukuvuku, cabeça de lista da CASA (Convergência Ampla de Salvação em Angola), disse aos eleitores que o progresso não pára se o MPLA deixar de ser governo. O que mudará é "a filosofia do trabalho" - a corrupção foi um dos temas fortes da sua campanha. "São problemas que não se resolvem em dez anos" num país onde a primeira grande mudança terão que ser as mentalidades, diz Colino Cafussa.
O paradoxo
A atitude perante o poder já começou a mexer. Desde o ano passado, as manifestações sem filiação partidária surgiram nas ruas de Luanda. E o movimento de contestação - contra a corrupção, contra a falta de alternância política - cresce na cidade e na Internet. Numa entrevista ao jornal independente O País, Fernando Pacheco, do Observatório Político e Social de Angola, disse recentemente que "o país está a mudar e só os mais distraídos não se dão conta".
Só que, contrapõem Alberto Colino Cafussa e Eugénio Costa Almeida - professor no ISCTE cuja tese de doutoramento se chama A União Africana e a emergência de Estados-Directores no Continente Africano: O Caso de Angola -, falar de alternância em Angola não é o mesmo do que falar na rodagem dos partidos num país europeu. "Em Portugal isso é possível sem causar uma estagnação na governação ou alguma instabilidade. Em Angola ainda há o receio de que a saída de um partido político possa criar retrocesso", explica Colino Cafussa. Eugénio Costa Almeida, que vive em Portugal há 30 anos mas é angolano (tem 55 anos), reforça: "Se toda a gente deseja a mudança, toda a gente teme a mudança".
"Se Eduardo dos Santos deixar o poder, não há quem saiba o impacto que isso terá no sistema angolano, nomeadamente no castrense. Não tenhamos dúvidas: neste momento é ele que consegue manter uma certa estabilidade nas Forças Armadas de Angola [FAA]. Se sair, quem é que vai manter essa estabilidade?", questiona o professor do ISCTE que já pertenceu à UNITA.
O líder da UNITA, Isaías Samakuva, "não é respeitado nas FAA". Abel Chivukuvuku, que foi dirigente da UNITA e oficial das Forças Armadas de Libertação de Angola e das FAA, "poderia obter esse equilíbrio". "Mas o MPLA distribuiu bem os seus homens pelos lugares-chave. Se o MPLA não ganhar as eleições, vai haver uma desestabilização política tremenda porque o novo poder vai querer pôr pessoas da sua confiança nos lugares".
A realidade diz que o MPLA ganhará. Com que percentagem, essa é a dúvida, como explicou ao PÚBLICO outro analista da política angolana, Alex Vines, do think tank Chatham House, em Londres. Apesar dos apelos de José Eduardo dos Santos durante a campanha - desdobrou-se em comícios, ele que pouco sai de Luanda ou de Angola - a uma maioria absoluta, o seu partido deverá conseguir apenas a maioria simples, com a UNITA e a CASA a ganharem espaço no Parlamento, onde outros partidos deverão também ficar representados.
"É um processo que está interessante. E vença quem vencer, a próxima legislatura será diferente e muito mais competitiva. O que se pretende, hoje, é isso: que haja uma discussão menos desequilibrada sobre os problemas do país", diz Alberto Colino Cafussa.
Em 2008, a distribuição tradicional dos votos - o factor étnico - ainda ditou resultados. Mas já não teve o peso do passado - a guerra civil foi travada entre ovimbundos e ambundus ou, na definição de outros, entre os diamantes e o petróleo. Ganhou o petróleo. As fronteiras étnicas diluíram-se ou estão a desaparecer, ainda que Eugénio Costa Almeida considere que na Angola rural as indicações/decisões dos sobas e de outros líderes comunitários ainda pesam.
O modernista
"Este ano - diz Colino Cassufa - vai ser diferente. Estamos perante uma grande quantidade de jovens que nasceram e cresceram sem guerras e que estão preocupados com a formação, com a saúde... Os jovens vão contribuir desfavoravelmente para o partido que está a governar".
José Eduardo dos Santos, que Alex Vines definiu como "um homem que percebe de um modo muito inteligente a política angolana" (PÚBLICO de 26/08/12), sabe que o seu país mudou. Chegado o momento que os analistas consideram inevitável - o sair de cena -, José Eduardo dos Santos escolheu para seu vice-presidente o antigo presidente da empresa estatal de petróleo, Sonangol. Outros vice-presidentes já foram, no passado, apregoados como sucessores. Mas Manuel Vicente surge noutro momento histórico e noutro contexto social, em que começa a surgir uma elite diferente. É um momento em que se exigem outras mudanças, as políticas, que tardam num Governo acusado de excesso de controlo - o Financial Times citava a Humam Rights Watch, que denunciou há dias o "uso excessivo de força" sobre opositores e a "intimidação" de jornalistas.
Apesar de ser um homem do círculo íntimo do Presidente, Manuel Vicente já representa o salto de mentalidades que todos dizem ser preciso em Angola. É um tecnocrata antes de ser um político. E como frisam os analistas, não tem enraízado o "revolucionarismo" que definia os homens que, até há pouco, dominavam a política angolana, fosse no MPLA fosse na UNITA.
Talvez por isso, e por todos os avanços de dez anos de paz, Manuel Vicente consiga impor-se, diz o professor do ISCTE. Talvez por ser de uma "ala mais modernista, a que mais interessa ao século XXI".
PÚBLICO – 31.08.2012