O filme “Mueda, Memória e Massacre” (1979), de Ruy Guerra, definido oficialmente como a primeira longa-metragem de ficção moçambicana, poderia ser considerado, numa primeira leitura, como uma reconstituição cinematográfica[1] do Massacre de Mueda [2], um dos últimos episódios de resistência contra o colonialismo português antes do início da Guerra Colonial em Moçambique (1964). Nesse sentido, o filme de Ruy Guerra, produzido pelo INC, o Instituto Nacional de Cinema moçambicano, não só comemoraria o principal e mais directo antecedente simbólico da Guerra Colonial em Moçambique, como também – e sobretudo – fundaria e inscreveria historicamente, na ausência de imagens de arquivo, a memória cinematográfica do acontecimento. Parafraseando Jean-Luc Godard[3], ao evocar a sua passagem por Moçambique, e citando, por outro lado, o título do filme de David Griffith, o nascimento político do país coincidiria aqui com o nascimento da sua imagem cinematográfica.
Neste artigo, gostaria de analisar a forma como nesta ficção de memória, para recuperar uma noção de Jacques Rancière[4], a articulação visual da relação entre a História e a memória se funda, simultaneamente, sobre um processo de reconstituição ou de re-efectuação, termo que possui uma dimensão pragmática mais ampla, do Masssacre de Mueda, bem como sobre um princípio de ficcionalização da memória. Uma complexa articulação entre a história, o presente enunciativo, a memória e a sua mise en scène caracteriza o filme, articulação que instabiliza as categorias operatórias de documentário e de ficção, apontando, ao mesmo tempo, para uma política da representação que seria indissociável da emergência de novos modelos de sensibilidade e da afirmação do cinema enquanto forma de pensamento da História.
Nas primeiras linhas deste artigo, recorri à noção de “reconstituição” para descrever, de uma forma muito geral, a representação cinematográfica do Massacre de Mueda no filme de Ruy Guerra. Todavia, a complexa concepção intertextual da narrativa histórica que atravessa e dá forma à organização diegética de Mueda… faz desta noção uma ferramenta metodológica limitativa para abordar o filme. Entender Mueda… como uma simples reconstituição histórica do Massacre de Mueda seria insuficiente, na medida em que os meandros políticos anteriores e ulteriores – bem como o próprio massacre – são representados de duas formas diferentes no filme. Em primeiro lugar, através do registo fílmico da dramatização do acontecimento que, a partir de Junho de 1976 e durante cerca de duas décadas, ocorria anualmente na praça de Mueda, frente ao antigo edifício da administração colonial e dentro dele, no próprio lugar onde se desenrolaram os acontecimentos, uma representação teatral popular, colectiva e carnavalesca, baseada na peça homónima de Calisto dos Lagos - que é também o guionista e o director dramático do filme -, na qual o povo de Mueda encarnava simultaneamente os funcionários e militares da administração colonial portuguesa e os manifestantes. Em segundo lugar, as imagens da reconstituição dramática do acontecimento, autónoma do filme, são entrecortadas por entrevistas indirectas a sobreviventes do Massacre. Por fim, estes dois planos narrativos são imbricados numa representação do novo país em construção, processo de que o próprio filme – e a sua natureza auto-reflexiva – são sintomáticos. A organização fílmica das temporalidades e dos discursos em conflito inscreve o objecto cinematográfico no programa político do novo país. Ao mesmo tempo, ao fundar a memória oficial do acontecimento sobre a sua memória colectiva, directa e popular, o filme – e o seu sistema enunciativo polifónico - aponta para uma reinvenção das possibilidades expressivas que estaria ligada à instituição do novo sistema político.
Em Mueda…, encontramos dois regimes de expressão em conflito – o documentário e a ficção -, dois sistemas complementares de organização do perceptível e de determinação do representável. Guerra e a sua equipa filmam a reconstituição em curso de um acontecimento histórico, uma dramatização popular que é independente do filme, empregando, não obstante a problemática definição do objecto fílmico como uma longa-metragem de ficção, estratégias e modalidades narrativas, formais e estéticas próprias do cinema documental. Não querendo conceder excessiva importância a taxinomias de género – relevantes, não obstante, a um nível arqueológico -, parece-me altamente significativo que um filme como Mueda… tenha sido oficialmente classificado como uma longa-metragem de ficção. No próprio cartaz original de Mueda..., o filme é definido como a primeira longa-metragem de ficção da República Popular de Moçambique. O desejo de fundação político-estética das formas cinematográficas do novo país parece, pois, ser evidente. Ao mesmo tempo, enquanto formação discursiva, a longa-metragem de Guerra parece querer afirmar que o projecto político revolucionário da Frelimo passaria também pela redefinição das formas estéticas e sensíveis, universalizadas naquele momento histórico. A representação cinematográfica do povo moçambicano serve este princípio: por um lado, o processo de alfabetização, o trabalho nas machambas[5] comunais e na construção de novas infra-estrutruras; por outro lado, o povo-artífice de um filme colectivo, baseado na memória do Massacre de Mueda, bem como nas formas populares de expressão cultural.
Mas este princípio é ambivalente: a representação da vida quotidiana em Moçambique é inseparável de um processo de fixação da memória histórica, de produção e de inscrição da História. A representação cinematográfica do Massacre de Mueda, enquanto acontecimento fundador da história da descolonização moçambicana e da história da Frelimo[6], é indissociável de um gesto de mitificação e de um movimento de deslocação espacial e temporal, isto é, de transferência da natureza mítica do passado cinematograficamente representado para o presente do país em construção - um presente vivo, mas, todavia, já histórico - e de inversão dessa carga simbólica nas novas imagens. Em Mémoire et histoire : l’écriture de l’histoire et la représentation du passé[7], Paul Ricoeur afirma que o problema da representação do passado se encontra primariamente estabelecido no plano da memória individual, onde recebe uma solução limitada e precária que não pode ser transferida para o plano discursivo histórico. A questão da representação não começa, por conseguinte, com a história, mas sim com a memória e os seus processos de recomposição e de ficcionalização do passado. No filme de Guerra, são precisamente os testemunhos - as entrevistas não-dirigidas a sobreviventes do massacre - que vêm legitimar o processo de transformação da memória em História. Se a constituição do discurso histórico é determinada, em vários sentidos, pela síntese ou pela elisão de enunciados contraditórios, em Mueda…, imagens invisíveis, imagens que não vemos – as imagens mnemónicas dos sobreviventes, esse fora de campo histórico -, são convocadas (e, em certo sentido, extrapoladas e traduzidas) pelo discurso fílmico. Na sua representação expandida, o filme mostra-nos mais do que aquilo que nele podemos ver. Mas também nos mostra menos. Nunca vemos o narrador do filme. É certo que, por um lado, temos o narrador da representação teatral e, por outro, a obra dramática de Calisto dos Lagos. Mas há também, no início do filme, um intertítulo onde as declarações de uma testemunha ocular anónima do massacre são citadas: “Mataram cerca de 600 pessoas, esse 16 de Junho de 1960.” O intertítulo aponta, por conseguinte, para uma dificuldade da imagem-movimento - e do seu efeito de presença - em representar por si só um passado não consensual. Se o sistema enunciativo de Mueda… rejeita um olhar retrospectivo ou comemorativo sobre o passado, o texto não-subjectivado que antecipa a imagem e condiciona a sua leitura inscreve, não obstante, esse olhar no filme.
Todavia, as diversas camadas de representação de Mueda…, a complexa estrutura diegética do filme, o constante movimento, a circulação e os momentos de suspensão entre os diferentes níveis narrativos sugerem uma intrincada noção intertextual que estaria na base da construção da narrativa histórica. Esta fiction de mémoire parece propor um novo sistema de representação do visível, libertado do peso ideológico da imagem colonial. Não se trata apenas de fixar a memória do massacre, mas também de criá-la. Para dizê-lo de outra forma, ao produzir um arquivo singular do massacre, imagens diferidas do acontecimento histórico, Guerra cria também as formas da sua definitiva visibilidade, arquivos para a história futura de Moçambique. Arquivos atravessados pelo conflito entre diferentes temporalidades, mas também pela disrupção das linhas de separação entre a realidade, o documentário e a ficção. Se a noção de arquivo é indissociável de um conjunto de metodologias de organização do visível e se os próprios conceitos de objectividade e de verdade histórica, também eles dependentes de métodos e de condições de visibilidade descontínuos, são flutuantes e instáveis, será legítimo considerar hoje as imagens do filme de Ruy Guerra como arquivos (diferidos) do Massacre de Mueda?
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1. Invoca-se, neste ponto, a noção de “reenactment”, tão em voga na teoria anglo-saxónica.
2. No dia 16 de Junho de 1960, a administração portuguesa de Mueda reprimiu violentamente uma manifestação pacífica em prol da melhoria das condições de vida e de trabalho. As circunstâncias do Massacre permanecem ainda hoje ambíguas, particularmente no que respeita ao número de vítimas - 14, segundo o relatório oficial português; mais de 600, de acordo com a Frelimo. O Massacre de Mueda contribuiu consideravelmente para a politização do povo Maconde, influenciando, dessa forma, o desenvolvimento da campanha militar da Frelimo no Norte de Moçambique, sobretudo durante a primeira fase da Guerra Colonial.
3. Godard, Jean-Luc, «Nord contre Sud ou Naissance (de l’Image) d’une Nation 5 films émissions de TV», Cahiers du Cinéma, nº 300, 1979, pp. 69-129.
4. Rancière, Jacques, «La fiction de mémoire. À propos du “Tombeau d’Alexandre” de Chris Marker», Trafic, Primavera de 1999, pp. 36-47.
5. Campos de cultivo agrícola
6. A manifestação do dia 16 de Junho de 1960 foi organizada pela Manu, a União Africana de Moçambique, um dos três grupos políticos que daria origem ao partido de Eduardo Mondlane e de Samora Machel, fundado em Dar es Salaam em 1962.
7. Ricoeur, Paul, «Histoire et mémoire: l’écriture de l’histoire et la représentation du passé», Annales. Histoire, Sciences Sociales, nº 55, Julho de 2000, pp. 731-747.
- Raquel Schefer