POR um lado, as descrições históricas do massacre foram reorganizadas e modificadas inúmeras vezes, acompanhando as oscilações do poder político, nomeadamente antes e após a independência de Moçambique. A multiplicidade de pontos de vista sobre o acontecimento aponta para a sua natureza altamente simbólica e para a sua relevância política e ideológica. Por outro lado, torna-se imprescindível analisar o contexto histórico de produção do filme de Ruy Guerra.
Um dos primeiros actos culturais da Frelimo foi a fundação do INC, o Instituto Nacional de Cinema, em 1976. Já durante a Guerra Colonial, um importante número de filmes sobre a luta pela independência fora produzido, tais como, por exemplo, Venceremos! (1966), de Dragutin Propovich; Behind the Lines (1971), de Margaret Dickinson; A Luta Continua (1972), de Robert Van Lierop, ou Étudier, produire, combattre (1973), realizado pelo Grupo Cinéthique.
Num país com 90 por cento de analfabetismo e de uma grande diversidade linguística, o cinema seria rapidamente concebido como um instrumento de descentralização da história oficial colonial, bem como uma instância de legitimação não só do Estado socialista em construção, mas também da identidade moçambicana, fundando a ideia de nação unitária e congregando os diversos grupos étnicos. Com este propósito, técnicos cinematográficos e realizadores de todo o mundo foram chamados a Moçambique, incluindo Jean Rouch, que orientou um workshop de Super 8mm na Universidade de Maputo em 1978, e Jean-Luc Godard, que assinou um contrato de dois anos para implementar a produção em vídeo no país, bem como para idealizar a televisão nacional. Entre 1976 e 1991, o INC produziu treze longas-metragens, 119 curtas-metragens e 395 reportagens televisivas baptizadas com o nome de Kuxa Kanema (“Nascimento do Cinema”), título do documentário de Margarida Cardoso sobre o INC (2004).
É neste contexto que Ruy Guerra, cineasta luso-brasileiro nascido em Moçambique, regressa ao seu país natal, convidado pelo INC. Em 1976, Guerra, um dos mais importantes autores do Cinema Novo, realizara já algumas das suas obras mais remarcáveis, como Os Cafajestes, filme de 1962, ou Os Fuzis, de 1964.
A escolha do Massacre do Mueda como temática do primeiro filme de ficção do novo país é significativa neste contexto. Mas, a que se deve a insistência retórica na ficção – por oposição ao documentário – como o sistema de expressão que estabilizaria oficialmente a memória cinematográfica de um dos mais importantes acontecimentos simbólicos da história da descolonização moçambicana?
Em Mueda…, encontramos não só uma dupla temporalidade que conecta os acontecimentos encenados do massacre de 1960 com o processo de construção do novo país em 1976-79, uma anulação da distância temporal, uma reconfiguração efectiva do tempo, mas também um trabalho subterrâneo da memória(1) em articulação com a inscrição do evento na história moçambicana e com o apelo a uma nova política da representação. No entanto, Mueda… é apresentado como o primeiro filme de ficção da República Popular de Moçambique. Um filme de ficção sem encenação directa, uma vez que os acontecimentos filmados – a dramatização teatral autónoma – são independentes do filme, embora a autonomia das sequências filmadas no interior do antigo edifício da administração colonial possa ser questionada. Parece verificar-se como que um processo retroactivo de temporalização e de legitimação: os depoimentos dos sobreviventes do massacre, filmados entre 1976 e 1979, re-temporalizam, como uma espécie de suplemento mnemónico, as sequências encenadas do massacre, enquanto estas, na sua dupla temporalidade, são inscritas na história de Moçambique, adquirindo, num certo sentido, o estatuto de imagens de arquivo do Massacre de Mueda. Arquivos diferidos, enformados por uma complexa articulação entre a história, o presente, a memória e a sua organização cinematográfica.
O trabalho da ficção repousa, precisamente, na organização das diferentes camadas narrativas no processo de montagem. Muito embora o filme siga a estrutura original da obra de teatro, foram articuladas sequências de várias representações do massacre no processo de montagem. A estrutura narrativa que emerge da montagem, as temporalidades desfasadas e a articulação de sistemas de expressão heterogéneos, cria, dessa forma, uma nova memória do massacre. Reconstituindo a reconstituição do massacre, articulando-a com as outras duas linhas diegéticas – os testemunhos e a representação de Moçambique nos primeiros anos de independência -, reorganizando a sua temporalidade e a sua cronologia, o filme de Ruy Guerra cria as formas definitivas de visibilidade do Massacre de Mueda, estabelecendo, ao mesmo tempo, as condições formais e expressivas para o nascimento do cinema nacional. A fundação da história do novo país seria assim concomitante da criação das suas formas cinematográficas. De um cinema que não se distinguiria somente da representação cinematográfica colonial de Moçambique, mas que se demarcaria também quer do cinema do Primeiro Mundo, quer do Realismo Socialista, aproximando-se do Terceiro Cinema. De Chaimite, A Queda do Império Vátua (1953), de Jorge Brum do Canto, filme épico sobre a campanha militar de Mouzinho de Albuquerque em Moçambique, aos filmes antropológicos, o cinema colonial português tende, com raras excepções, a expandir o mito da missão civilizadora. A fundação do INC e os primeiros projectos do Instituto devem ser lidos neste contexto, à luz de uma vontade de ruptura da imagem colonial do país, do seu pré-cinema, herdando, no entanto, algumas das suas formas e aspirações, como talvez a do grande filme épico de ficção, a epopeia que unificaria a história e a memória.
Numa entrevista à revista Tempo, em 1980, Guerra afirma ter procurado obter, através do filme, um julgamento de ordem estética e um julgamento de ordem política que são inseparáveis um do outro(2). Noutra entrevista à mesma revista, o realizador descreve Mueda… como uma tentativa de realização de um cinema imperfeito a partir de um teatro imperfeito(3), citando, dessa forma, o ensaio Por un cine imperfecto, do cineasta cubano Julio Garcia Espinosa, um dos manifestos do Terceiro Cinema (1969). Nele, Garcia Espinosa defende uma nova poética que aboliria as fronteiras entre a política e a estética, universalizando a experiência e a criação artísticas. Passo a citar:
… só a revolução e o processo revolucionário podem tornar possível a presença total e livre das massas. Porque esta presença das massas será a desaparição definitiva da estreita divisão do trabalho, da sociedade dividida em classes e sectores. Por isso, a revolução é para nós a expressão mais alta da cultura – porque fará desaparecer a cultura artística como cultura fragmentária do homem.(4).
Esta concepção reclama a reorganização e a universalização da experiência estética, bem como a redefinição da relação entre o sujeito estético e o seu objecto, em suma, uma nova política da representação. No caso moçambicano, devido às especificidade nacionais, a luta em prol da nova política da representação seria indissociável da edificação da ideia de nação através do cinema. Com este objectivo, unidades de cinema móvel foram criadas pelo INC, produzindo-se reportagens que eram projectadas em todo o país. A construção de um cinema nacional num estado marxista, em contradição com o seu internacionalismo teórico, serve, neste contexto, os princípios de unidade e de identidade moçambicanas. Num segundo momento, equipamento videográfico seria entregue ao povo, que produziria, assim, os seus próprios filmes, abolindo-se, por conseguinte, as fronteiras entre o sujeito e o objecto de representação. O projecto, no qual Jean-Luc Godard esteve envolvido, fracassou, mas alguns dos seus princípios, como a polifonia da palavra e a sua circulação colectiva, prevalecem em Mueda…. No filme de Guerra, a narrativa histórica é construída através da articulação entre a memória colectiva e a expressão cultural popular, que decorre primariamente de um processo de ficcionalização da memória. A definição oficial do filme como uma longa-metragem de ficção serve – é certo – os princípios ideológicos do jovem país, nomeadamente, a mitificação do processo de descolonização. Essa classificação pode ainda expressar uma recusa do ponto de vista histórico adoptado pelo filme por parte das instâncias oficiais da Frelimo. Mas poderá também afirmar uma concepção da ficção, na sua articulação com a política, evocando de novo Jacques Rancière, como um sistema de representação auto-reflexivo, isto é, que se mostra e revela enquanto representação da realidade e onde residiria precisamente a sua força política.
Se abandonarmos o eixo documentário – ficção, será legítimo considerar as imagens de Mueda… como arquivos do acontecimento histórico? Possuem elas o mesmo valor ontológico que as inexistentes imagens de arquivo do massacre? Obviamente, não. Mas, a jeito de conclusão, direi que as tomas do filme são “arquivos diferidos”, planos deslocados e destemporalizados, imagens dialécticas atravessadas por múltiplas temporalidades em conflito, por um passado e um presente que, conjugados, tornam a história presente. A história do massacre, mas também a história do projecto político moçambicano. O filme mostra-nos imagens permeadas por dispositivos de poder, onde reaparecem, sobrepostos ao presente enunciativo, elementos vívidos do passado. Rastrear o traço não é tornar os acontecimentos passados aos quais este conduz contemporâneos do seu próprio traço?(5), perguntava-se Paul Ricoeur em Temps et récit - III, Le temps racconté.
Ao escavar o espaço e o tempo materiais destas imagens, as suas descontinuidades, surgem contradições fundamentais e postulados incompatíveis. Linhas de fractura. Da fundação cinematográfica mítica de Moçambique, primeira longa-metragem de ficção da República Popular, ao espaço institucional dos arquivos, filme fora de circulação durante um longo período de tempo, raramente visto, raramente mostrado, descartado, tal como o projecto político da Frelimo. Imagens que são arquivos diferidos porque não pretendem ser (nem estar em vez de) as imagens do passado, mas que constituem, pelo contrário, uma força disruptiva que liga transversalmente o passado de 1960 ao presente enunciativo de 1979 e aos dias de hoje, marcando a passagem do tempo sobre o discurso da história, a utopia e o trabalho da memória.
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1. Recordemos que entre os actores do filme se encontravam sobreviventes do massacre, nomeadamente, Faustino Vanomba, um dos líderes da Manu.
2. Guerra, Ruy, “Mueda é o respeito pela realidade histórica. Ruy Guerra em entrevista à revista “Tempo”, entrevista de Ruy Guerra a Sol de Carvalho, Tempo, nº 512, Agosto de 1980, pp. 49-53.
3. In Gray, Ros, An Archive of Aspirations, http://www.atelier-real.org/res/ForadeCampo/an_archive_of_aspirations.pd..., última consulta a 28 de Maio de 2011.
4. Garcia Espinosa, Julio, Por un cine imperfecto, 1969, in http://www.cinelatinoamericano.org/biblioteca/fondo.aspx?cod=2333, última consulta a 28 de Maio de 2011(tradução da autora).
5. Ricoeur, Paul, Temps et récit - III, Le temps racconté, Paris, Seuil, 1985 (tradução da autora).
- Raquel Schefer