O acordo a que chegámos, e localmente firmámos, foi o que a situação em Portugal, em Moçambique e na frente militar, por um lado, permitiu e, por outro, exigiu que fosse.
Apesar dos pressupostos, não tanto criados, mas em qualquer caso confirmados e estabelecidos no anterior encontro de Dar-es-Salam, entre Melo Antunes e Samora Machel, não deixámos de tentar convencer os nossos interlocutores da mútua conveniência em legitimar a transferência do poder através de um acto de consulta - eleitoral ou referendária - invocando o facto, à data verdadeiro, de que a Frelimo ganharia sem a menor dúvida essa consulta. A Lei 7/74, em seu lacónico dizer, não a impunha. Mas ainda assim a consentia, ao atribuir ao Presidente da República competência para «praticar os actos e concluir os acordos relativos ao exercício do direito» à autodeterminação. Não precisando que actos nem que acordos, a Lei 7/74 deixou em aberto todo um leque de vias, incluindo, naturalmente, uma consulta popular.
Como já esperávamos, a delegação moçambicana invocou de imediato o precedente do acordo de descolonização da Guiné. Debalde tentámos realçar as diferenças. A Guiné já havia autoproclamado a sua independência e, com mais significado ainda, «essa» independência havia sido reconhecida pela OU A, indirectamente pela ONU e por cerca de cem países à data da assinatura do acordo. Tratava-se, pois, de uma independência já internacionalmente consensualizada.
Mas o argumento não fez faísca. O que esse apelo à consulta popular envolvia - objectaram - era uma oportunidade aos partidos de última hora, de gente que, de um modo geral, havia convivido airosamente com o regime colonial e que, ao soar Abril, tentou tomar o comboio de um heroísmo que nunca tinha tido. Era injusto, no entender dos nossos interlocutores, dar-lhes a mesma oportunidade que seria dada à Frelimo, ao fim de dez anos de luta sacrificada e heróica.
Acrescentaram ainda, com razão que veio a tornar-se óbvia, que a oportunidade dada a esses «partidos fantoches», em seu dizer, seria dada também aos eternos inconformados com a descolonização, mais do que nunca agarrados ao projecto de uma independência de tipo rodesiano, com a racista Africa do Sul como pano de fundo. E a esses - diziam a reforçar - não faltariam apoios políticos e militares.
É claro que se não esqueceram de invocar também o facto de a legitimidade do novo poder em Lisboa ser tão revolucionária quanto a da Frelimo. Este argumento era de difícil recusa. O heroísmo e o sangue, mais do que o voto, foram historicamente fonte do poder.
A discussão, em qualquer caso, teria de morrer perante o incontornável argumento de que insistir na realização de uma consulta popular equivaleria à continuação da guerra. Para este argumento, tínhamos deixado de ter resposta. Verbal e militar!
Apesar de tudo, o texto do acordo reflecte as pequenas conquistas que foram possíveis: o direito à independência foi reconhecido ao «povo de Moçambique»; e «a transferência progressiva dos poderes» que o Estado português detinha «sobre o território», foi por nós aceite, sem explicitação do destinatário. O mais que se disse foi que essa transferência foi «aceite por acordo com a Frelimo». Mas não «para» a Frelimo, que não foi expressamente reconhecida como única e legitima representante do povo de Moçambique. Foi este o prémio de termos deixado cair a exigência da consulta popular. A delegação moçambicana mostrou compreensão para este detalhe.
Como é sabido, foi acertado um «período de transição» de duração fixada em cerca de quase dez meses, durante os quais um alto--comissário representaria o Presidente da República Portuguesa, que o nomeava, bem como o Governo português; asseguraria a integridade territorial de Moçambique; promulgaria os decretos-leis do Governo de Transição; asseguraria o cumprimento dos acordos celebrados entre o Estado português e a Frelimo, bem como o respeito das garantias mutuamente dadas, nomeadamente as consignadas na Declaração Universal dos Direitos do Homem; dinamizaria, enfim, o processo de descolonização.
A função executiva foi cometida a um Governo de Transição constituído por um primeiro-ministro e nove ministros, um terço dos quais nomeados pelo alto-comissário e dois terços pela Frelimo.
A uma Comissão Militar Mista, nomeada por acordo entre o Estado português e a Frelimo, constituída por igual número de representantes das Forças Armadas do Estado português e da Frelimo, foi cometido, como «missão principal, o controlo da execução do acordo de cessar-fogo, que foi fixado para as zero horas do dia seguinte» (8.9.74), nos termos de um protocolo anexo ao acordo principal.
Em caso de grave perturbação da ordem pública, o comando e a coordenação das Forças Armadas ficou a competir ao alto-comissário.
Foi cometida ao Governo de Transição a criação de um corpo de polícia encarregado de assegurar a manutenção da ordem e a segurança das pessoas.
A Frelimo e o Estado português «afirmaram solenemente o seu propósito de estabelecer e desenvolver laços de amizade e cooperação construtiva entre os respectivos povos»!
Previram-se, para o efeito, «comissões especializadas mistas» para, durante o período de transição, acordarem as soluções exigidas pela chamada descolonização económica e financeira.
A Frelimo declarou-se «disposta a aceitar a responsabilidade decorrente dos compromissos financeiros assumidos pelo Estado português em nome de Moçambique, desde que assumidos no efectivo interesse do território».
A Frelimo reafirmou também «a sua política de não discriminação».
Acordos especiais, numa base de reciprocidade, viriam a regular «o estatuto dos cidadãos portugueses residentes em Moçambique, e dos cidadãos moçambicanos residentes em Portugal».
O Estado português comprometeu-se ainda a transferir para um banco central, a criar em Moçambique, «as atribuições, o activo e o passivo do departamento de Moçambique do Banco Nacional Ultramarino».
Fecho «heróico»: «O Estado português e a Frelimo felicitam-se pela conclusão do presente acordo que, com o fim da guerra e o restabelecimento da paz... abre uma nova página na história das relações entre os dois países e povos... Desenvolverão os seus esforços a fim de lançarem as bases de uma cooperação fecunda, fraterna e harmoniosa entre Portugal e Moçambique.»
Alonguei esta transcrição porque, agora mesmo, ao reler o texto de Lusaca, que a maioria dos portugueses nunca leu, tenho de uma vez mais reconhecer que, nas circunstâncias em que foi negociado e redigido, foi de facto o acordo possível, bem longe da «entrega sem condições» de que viríamos a ser acusados.
Assinei-o convencido da relativa boa-fé dos nossos interlocutores. Não eram obrigados a concordar com as obrigações que assumiram, nem com as boas promessas e palavras que firmaram. A data - creio nisso - eles acreditavam em que ia ser assim, até porque eram os primeiros e maiores interessados nisso.
Os discursos finais, tão cheios de esperançosas expectativas, não foram hipócritas. O meu, seguramente o não foi. A cerimónia da assinatura, a que presidiu Kaunda, foi bonita e foi promissora. Um real armistício e uma sincera promessa de amizade e cooperação futura.
Mas a história ia pregar-vos, nesse mesmo dia, uma cruel partida, que veio a comprometer toda a esperança que havíamos depositado no acordo. Onde era a confiança, foi a suspeita. Onde a paz, a violência. Onde um recomeço de vida, de novo a morte. A intentona desse esperançoso e por fim fatídico 7 de Setembro, em Lourenço Marques, com o seu cortejo de reaccionarismo, violência e ódio, envenenou definitivamente o processo.
In Quase Memórias, 2º Volume, de Almeida Santos, pags 88 a 92
NOTA:
“A uma Comissão Militar Mista, nomeada por acordo entre o Estado português e a Frelimo, constituída por igual número de representantes das Forças Armadas do Estado português e da Frelimo, foi cometido, como «missão principal, o controlo da execução do acordo de cessar-fogo, que foi fixado para as zero horas do dia seguinte» (8.9.74), nos termos de um protocolo anexo ao acordo principal.”
Ora, este ”protocolo anexo ao acordo principal” é que foi mantido secreto “a pedido da parte portuguesa”.
Porquê Dr. Almeida Santos e Mário Soares?
O que se soube foi que: “Apesar de tudo, o texto do acordo reflecte as pequenas conquistas que foram possíveis: o direito à independência foi reconhecido ao «povo de Moçambique»; e «a transferência progressiva dos poderes» que o Estado português detinha «sobre o território», foi por nós aceite, sem explicitação do destinatário. O mais que se disse foi que essa transferência foi «aceite por acordo com a Frelimo». Mas não «para» a Frelimo, que não foi expressamente reconhecida como única e legitima representante do povo de Moçambique. Foi este o prémio de termos deixado cair a exigência da consulta popular. A delegação moçambicana mostrou compreensão para este detalhe.”
E, no acordo de cessar-fogo(não divulgado):
"Artigo 9 - O Estado Português desarmará imediatamente todos os corpos de milícias, OPVDC, milícias privadas, Flechas e outras organizações similares, entregando à Frente de Libertação de Moçambique as armas não pertencentes ao Exército Português.
Artigo 10 - O Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique cooperarão na detecção e neutralização de todos os agentes reaccionários e subversivos e nomeadamente os ex-agentes da PIDE- DGS.
Artigo 11- O Estado Português e as forças Armadas Portuguesas tomam medidas para impedir que os seus nacionais se envolvam, individual ou colectivamente, em actividades de colaboração militar com os governos da África do Sul e da Rodésia.
Título V - Dos moçambicanos nas forças Armadas Portuguesas
Artigo 12 - Com a assinatura do presente acordo cessa a incorporação de moçambicanos nas Forças Armadas Portuguesas.
Artigo 13 - o Estado Português desmobilizará os moçambicanos actualmente em serviço nas Forças Armadas Portuguesas dentro do território moçambicano, os quais serão reintegrados na sociedade moçambicana, sob a responsabilidade da Frente de Libertação de Moçambique, a fim de evitar perturbações da ordem pública, as forças especiais como os GEP e Comandos, serão imediatamente desarmadas."
Destes, tão moçambicanos quanto os da FRELIMO, é que esta tinha medo. Já não dos "tugas".
Sofismas!!!
E assim se “brincou” com a vida e o destino de milhares de pessoas…
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE