Esta posição foi ontem manifestada ao “Notícias” por académicos contactados a propósito dos 20 anos de paz no país e dos pronunciamentos feitos, recentemente, pelo líder da Renamo nas matas de Gorongosa.
Tais declarações proferidas por Afonso Dhlakama suscitaram grande preocupação em toda a sociedade, sobretudo no seio das congregações religiosas filiadas ao Conselho Cristão de Moçambique (CCM), que consideram que a paz e a contínua construção de um Moçambique estável estão sendo beliscados, porque o caminho do diálogo e reconciliação continua um desafio presente, tomando em consideração os pronunciamentos e discursos proferidos nos últimos dias pelo líder da Renamo, Afonso Dhlakama, em Gorongosa.
Como no passado, o Conselho Cristão de Moçambique diz estar a acompanhar a situação e pretende desempenhar um papel construtivo para que os ganhos alcançados nos últimos 20 anos e o sonho dos moçambicanos de um Moçambique estável, desenvolvido e pacífico não sejam defraudados.
O CCM exorta os membros, simpatizantes e quadros superiores dos dois maiores partidos políticos do país, nomeadamente a Frelimo e a Renamo, para que sejam agentes activos na promoção e manutenção da calma e tolerância que os caracteriza desde a assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma, e prestem todo o apoio necessário aos seus dirigentes na busca pacífica das soluções para os problemas que apoquentam os moçambicanos.
Encoraja, de modo especial, o Presidente da República e o líder da Renamo a tomarem a liderança na promoção dos valores da paz, a incentivarem o povo para que aposte no diálogo e no respeito como meios indispensáveis na construção dessa paz.
Irâe Lundin
Quem quer a paz não mantém homens armados
Irâe Lundin, socióloga e investigadora, afirmou que, paradoxalmente, o líder da Renamo diz que não quer a guerra, mas mantém homens armados consigo. Para a académica, a questão central é que a Renamo distraiu-se quando assinou o Acordo Geral de Paz. Não teve o cuidado necessário de abordar com maior profundidade o assunto relacionado com os seus homens, muitos dos quais não foram reintegrados.
“Não se discutiu muito bem a questão de defesa e segurança. Só muito mais tarde é que a Renamo despertou. A parte da defesa e segurança não avançou muito, e eles (a Renamo) levaram muito tempo para trazer o assunto à baila. Não houve regulamentação da questão de defesa e segurança”, disse.
Questionada se na opinião dela o Acordo Geral de Paz deve ser revisitado ou não, afirmou que a questão não é revisão, mas sim a sua aplicação. Indicou que as coisas se foram complicando à medida que Afonso Dhlakama e o seu partido foram perdendo as eleições. Lembrou, porém, que o líder da Renamo é um dos signatários do Acordo Geral de Paz é uma figura que tem o seu estatuto. Aliás, para Irâe Lundin, ele tem mérito na manutenção da paz em Moçambique.
O que há a fazer, no âmbito do bom senso e na defesa dessa paz, segundo a investigadora, é as duas partes sentarem-se à mesa e discutirem as questões que se julgarem pertinentes, como é a existência de homens armados da Renamo.
“Somos todos moçambicanos. Já fomos capazes de conversar. Somos um exemplo em África. Por isso, vamos dialogar para terminar o que iniciámos nos anos 80”, disse, acrescentando que esse diálogo não precisa necessariamente envolver directamente o Presidente da República. Aliás, Irâe Lundin afirmou que quando Afonso Dhlakama faz alusão ao diálogo com o Chefe do Estado, trata-se duma forma de falar, de exteriorizar o seu sentimento.
“A humildade é a grande virtude dos grandes governantes”, disse, sublinhando a necessidade de diálogo para se “ver o que ainda não está bem”.
José Jaime Macuane
Moçambicanos souberam perdoar-se uns aos outros
Para o académico e analista político José Jaime Macuane, os 20 anos de paz no país foram marcados, acima de tudo, por uma mistura de diálogo e tolerância entre os moçambicanos.
“Os moçambicanos desempenharam um grande papel. Souberam perdoar-se uns aos outros durante estes 20 anos. Assimilaram os valores da tolerância, do diálogo e do respeito”, disse.
Durante os 20 anos da paz, segundo José Jaime Macuane, o país registou muitos avanços em vários domínios. As condições de vida dos moçambicanos melhoraram imenso, muito embora se esteja ainda aquém do desejável. Disse que o líder da Renamo precisa de clarificar muito bem o que realmente quer para este país, apesar de reafirmar que não retornará à guerra.
Afonso Dhlakama deve respeitar as instituições do Estado, sobretudo quando se tiver em conta que possui a pretensão de chegar ao poder. José Jaime Macuane defende o diálogo entre as partes, mas salientou que o mesmo não pode ocorrer nas matas de Gorongosa como o líder da Renamo condiciona, pois seria como que banalizar o Estado.
Para o académico, o que Afonso Dhlakama impõe é utópico e contribui mais para a sua ridicularização. Ele tem todo o direito de exigir o diálogo, como signatário do AGP, mas tal não deve ser condicionado. Deve reivindicar dentro duma estrutura razoável e lógica.
Sobre os homens armados, disse tratar-se duma situação que, naturalmente, cria um clima de tensão que pode provocar outras consequências. Porém, afirmou, a base social para a Renamo retornar à guerra não existe.
O que existe, segundo o académico, é o descontentamento perante as dificuldades, facto que pode ser usado para desobediência civil.
Sobre a revisão ou não do Acordo Geral de Paz, afirmou que a questão que tem sido colocada é o seu cumprimento. José Jaime Macuane não crê que haja espaço para uma revisão do AGP. Porém, acha que o mesmo pode ser revisitado para de forma clara a sociedade compreender muito bem o que está por detrás das reivindicações do principal partido da oposição no país.
Num exercício de verdade e reconciliação, segundo defendeu, a sociedade precisa sentar-se e analisar o Acordo Geral de Paz, em termos do que está ou não a ser implementado.
António Gaspar
Clima de apreensão
Para António Gaspar, académico e investigador, a movimentação do líder da Renamo de Maputo para Nampula e de Nampula para Gorongosa cria um clima de apreensão na sociedade. Disse que os amantes da paz não defendem a encenação protagonizada pelo líder da Renamo nas matas de Gorongosa.
“Se Dhlakama quer o diálogo, deve estar aberto a esse diálogo e não impor pré-condiçoes. Somos moçambicanos, nós, os moçambicanos, somos pela paz. Afonso Dhlakama é pela paz. O povo moçambicano está apreensivo, mas também fica sempre a ideia de que quando ele está aflito usa aquele tipo de pressão”, disse.
António Gaspar afirmou que há a necessidade de se consolidar a paz conquistada há 20 anos. Defendeu que as reivindicações do líder da Renamo devem ser discutidas por todo o povo moçambicano.
Afonso Dhlakama não deve abusar do estatuto de signatário do AGP. Ele lutou pela democracia e um dos pressupostos da democracia é o debate de ideias, segundo o académico. Quando a Renamo fala de transição ou duma nova ordem, deve clarificar muito bem esse conceito.
“Do ponto de vista legal, o que significa essa transição? É preciso socializar os conceitos, para que todos saibam”, disse, acrescentando que, na sua opinião, o líder da Renamo ter-se-á deslocado às matas de Gorongosa pressionado pelos seus homens.
Observou que o espaço para o diálogo nunca está esgotado. Afonso Dhlakama disse publicamente que possui o número de telefone celular do Presidente da República. Por isso, pode usá-lo.
“Quando ele fala do povo moçambicano, qual povo? O povo moçambicano é uno, ainda que haja diferenças. O povo quer a paz. A mim parece um pouco de chantagem o que ele pode considerar de pressão. É preciso dar garantias de que a encenação que faz não vai degenerar em violência”, disse.