JOÃO MANUEL ROCHA
Legislação prevê que pessoas detidas sejam apresentadas a juiz no prazo de 48
horas. Mas muitos passam anos na prisão sem acusação, denuncia a Amnistia
Internacional
Quando falaram com José Capitine Cossa, em Fevereiro deste ano, não se lembrava
da data exacta da sua detenção. Mas outros reclusos da Cadeia de Máxima
Segurança de Machava, em Moçambique, presos desde 2001, contaram que José já lá
estava quando chegaram.
A Amnistia Internacional (AI), que agora, num relatório sobre detenção
arbitrária e tratamento nas prisões de Moçambique, divulgou o caso de José, de
que teve conhecimento em Fevereiro – bem como o de muitos outros reclusos –, diz
que "na verdade, ele parecia não ter sido mesmo acusado de qualquer
crime".
Sem advogado, sem que lhe tivessem sido explicados os motivos da detenção, sem
julgamento, José Cossa, cuja idade não é referida, esteve preso até que, há
dois meses e meio, no início de Setembro, uns 12 anos depois da detenção, foi
libertado, após diligências que envolveram também a Liga Moçambicana dos
Direitos Humanos.
Em resposta a um memorando da AI, o Procurador-Geral declarou que a libertação do vendedor de rua foi ordenada por "ter constatado haver sinais de a detenção do mesmo ter sido irregular". E informou que estava a decorrer uma investigação.
"A abordagem desordenada de Moçambique à justiça fez com que centenas de detidos tenham sido simplesmente `perdidos' no sistema e definhem na prisão, sem direitos e sem recurso à justiça"
A legislação moçambicana prevê que todos os detidos sejam apresentados a um juiz nas 48 horas seguintes para avaliar a legalidade à detenção.
O caso de Cossa é referido no relatório "Aprisionando os meus direitos", divulgado na quarta-feira, como "exemplo extremo". Mas está longe de ser um episódio isolado. São inúmeras as situações de desrespeito dos direitos dos detidos por suposta ineficácia e falhas do sistema de justiça detectadas em visitas de uma delegação conjunta da Amnistia e da Liga a três prisões de Maputo, a duas da província de Nampula, no Norte, e a outras instalações de detenção, onde contactaram centenas de pessoas detidas por longos períodos, sem julgamento.
A Amnistia indica que serão milhares as pessoas detidas ilegalmente em Moçambique, por vezes durante anos, sem serem consideradas culpadas do que quer que seja e sem poderem contactar advogados.
Justiça só para quem tem dinheiro
Um exemplo também destacado pela organização de direitos humanos ocorreu com António Macuaca, agora com 30 anos, e Abel Ngoambi, 23. Foram detidos em Novembro de 2009, por suspeita de roubo de uma mala, e em Fevereiro deste ano continuavam à espera de julgamento, sem saberem quando iriam a tribunal. Em Setembro, o procurador informou que tinham sido libertados em Abril por "irregularidade na sua detenção".
Ana Sílvia (nome fictício) viveu uma situação diferente. Foi detida em Novembro de 2010, aos 15 anos, acusada de ter morto a mãe. Aparentemente, a morte nada teve de suspeito e não foi feita autópsia. A detenção foi baseada na declaração de um responsável do bairro em que viviam de que, dias antes da morte, Ana tinha discutido com a mãe.
Em Fevereiro deste ano Ana ainda não tinha sido julgada. A AI foi recentemente informada de que, em Julho, foi condenada. O Procurador-Geral não explicou à organização de direitos humanos por que razão não foi feita a autópsia à mãe e informou apenas que a arguida foi condenada a dois anos de prisão, por estrangulamento. Como o período de detenção ultrapassava metade da pena foi libertada condicionalmente.
Os detidos por períodos prolongados são, na maior parte dos casos, pobres que não são informados dos seus direitos ou são incapazes de os compreender. Não podem pagar advogado, são quase sempre representados por pessoas que não são qualificadas e raramente aguardam em liberdade um eventual processo. Alguns, disseram às organizações de direitos humanos terem sido forçados a assinar documentos cujo conteúdo desconheciam. Outros queixaram-se de terem sido torturados ou sofrido maus tratos na altura da detenção.
A delegação da Amnistia e da Liga foi autorizada a visitar celas onde constatou, entre outras situações, sobrelotação, crianças detidas juntamente com adultos, falta de higiene, coexistência de detidos à espera de julgamento com condenados.
"A abordagem desordenada de Moçambique à justiça fez com que centenas de detidos tenham sido simplesmente `perdidos' no sistema e definhem na prisão, sem direitos e sem recurso à justiça", disse Muluka-Anne Miti, investigadora da AI para Moçambique, citada pela AFP.
"Encontrámos detidos, entre eles crianças, sem qualquer evidência de que tenha sido cometido um crime e sem prova suficiente de que o tenham cometido", acrescentou. A investigadora afirma também que o "acesso à justiça em Moçambique é sistematicamente recusado a quem não tem dinheiro".
As duas organizações de direitos humanos apelam às autoridades que ponham fim às detenções arbitrárias, melhorem as condições das prisões e mantenham menores separados de outros detidos. Recomendam também, entre outros aspectos, que tomem medidas para que a polícia não cometa actos de tortura nem outros tratamentos cruéis e que os detidos sejam informados dos seus direitos.
Primeira-dama diz que situações foram "corrigidas"
Em reacção ao relatório da Amnistia Internacional, a primeira-dama de Moçambique, Maria da Luz Guebuza, disse esta quinta-feira, em Vila Nova de Gaia, que as condições nas prisões de Moçambique foram "corrigidas".
"Acho que o nosso país, o nosso Governo e, em particular, o Ministério da Justiça, têm feito um esforço para criar condições para as pessoas que estão nas prisões, que estão cumprindo certas penas e nós pensamos que o Governo está atento", declarou à agênca Lusa a primeira-dama moçambicana, quando questionada sobre o relatório da Amnistia Internacional.
Maria da Luz Guebuza, que está a efectuar uma visita a Portugal, acrescentou ainda que o procurador-geral da República de Moçambique esteve a "visitar as prisões" e que as questões relativas à falta de condições denunciadas pela Amnistia Internacional "foram todas corrigidas".
PÚBLICO(Lisboa) – 22.11.2012