Ana Dias Cordeiro
O retrato que Rafael Marques traça da corrupção em Angola também serviu para o Ministério Público português abrir um inquérito-crime contra três poderosos de Luanda. O jornalista está indiciado por difamação.
Rafael Marques, jornalista e investigador angolano, é autor de vários trabalhos que comprometem o poder em Angola, como o relatório publicado em 2009 sob o título Presidência da República: O Epicentro da Corrupção em Angola. É também dele o livro Os Diamantes de Sangue - Corrupção e Tortura em Angola, publicado cá pela Tinta da China, em 2011. Esta semana, Rafael Marques voltou a ser notícia em Portugal. No primeiro processo foi constituído arguido, depois de uma queixa por difamação interposta junto da justiça portuguesa por nove generais angolanos e duas empresas que operam nas zonas diamantíferas em Angola, que tinham sido por ele acusados de abusos sobre as populações e de violação de direitos humanos. No segundo, o jornalista foi citado no caso que levou à abertura de um inquérito-crime na Procuradoria-Geral da República (PGR) portuguesa contra, pelo menos, três figuras intocáveis em Luanda e do círculo restrito do Presidente angolano, José Eduardo dos Santos: Manuel Vicente, ex-presidente da Sonangol e vice-presidente de Angola, o general Hélder Vieira Dias "Kopelipa", chefe da Casa Militar da Presidência da República e ministro de Estado, e o general Leopoldino Nascimento "Dino", consultor do ministro de Estado e ex-chefe de Comunicações da Presidência da República.
Foi constituído arguido por calúnia, com termo de identidade e residência na sua morada em Luanda. Vai voltar para Angola?
Com certeza. É lá a minha residência como está estabelecida nos autos. Estou em Lisboa porque vim responder a esse processo dos generais e fiquei de apresentar mais alguns elementos na próxima semana. Terminado o meu trabalho em Lisboa e as investigações iniciais junto do Ministério Público, vou regressar e esperar até ser novamente chamado.
Este processo contra si pode correr em Portugal porque o seu livro foi publicado cá?
Sim. Mas este corresponde ao quarto relatório que faço sobre o assunto. Estes mesmos indivíduos tinham sido acusados por mim dos mesmos crimes, embora de factos por vezes diferentes. Este caso em Portugal apareceu depois de uma queixa-crime que eu apresentei em Luanda, em Novembro de 2011, denunciando os generais por crimes contra a humanidade. Foi no âmbito dessa queixa-crime que as testemunhas das Lundas [zona diamantífera no Norte de Angola] começaram a ser ouvidas em Luanda, algumas em Março. Eu mesmo fui ouvido. E o director da Sociedade Mineira do Cuango foi chamado para depor em sua defesa. Houve muita pressão. E a TeleService, empresa privada de segurança que prestava serviços à Sociedade Mineira do Cuango, foi obrigada a retirar-se. A minha queixa era contra generais, alguns ainda nas Forças Armadas Angolanas (FAA), que são accionistas dessas duas empresas - Sociedade Mineira do Cuango e TeleService. É a promiscuidade de que eu sempre falo. E são eles que agora me acusam de difamação. Os generais vieram abrir um processo contra mim em Portugal por se sentirem ofendidos como cidadãos privados. Mas não defenderam as FAA, das quais se servem para ter o poder que têm em Angola.
Quem são esses generais?
Um deles é o general Hélder Vieira Dias "Kopelipa", ministro de Estado e chefe da casa militar da Presidência da República. Também o general António dos Santos França "Ndalu", deputado do MPLA [no poder] e presidente da De Beers em Angola [empresa sul-africana de diamantes]. E outros. Acusam-me de ser membro activo da oposição.
Tem alguma ligação à UNITA ou a um outro partido?
Não tenho, nunca tive e não tenho intenções de ter, porque considero que a sociedade precisa é do exercício da cidadania. As militâncias partidárias têm estado a destruir o tecido social angolano, a capacidade dos angolanos de se afirmarem como indivíduos autónomos. Além disso, não é crime ser militante de um partido. É a falta de argumentos que os obriga a vir a Portugal mentir.
Quando está em Angola, recebe ameaças? Sente-se intimidado?
Não recebi nenhuma ameaça directa. Sei que há um clima de grande pressão e movimentos estranhos à minha volta, mas isso é o que os outros angolanos passam no dia-a-dia. Os angolanos têm pavor de dizer certas coisas ao telefone, por causa das escutas. E alguns dirigentes começam, eles próprios, a sentir-se vítimas. Eu não vou viver com medo. E não vou sofrer em silêncio. O medo não é uma forma de construir uma sociedade.
Qual o seu relacionamento com o poder angolano?
Como o de qualquer cidadão. Quando peço encontros, sou atendido. Quando fui à procuradoria interpor a queixa contra os generais, fui tratado como qualquer cidadão. O que é importante notar não é o que o Rafael Marques diz. O que eu faço é dar voz a testemunhos de abusos de centenas de pessoas que falam abertamente destes casos nas zonas diamantíferas. Eu simplesmente amplifico as vozes destas pessoas.
Essas notícias saíram nos jornais em Angola?
Nalguns. Evidentemente que nos jornais controlados pelo poder, não. Mas alguns, da imprensa privada, falaram com as testemunhas. Por exemplo, o Folha 8 ou a Rádio Despertar.
Quer dizer que há liberdade de imprensa em Angola?
Não. Não há liberdade de imprensa porque não há liberdade de expressão. A liberdade de imprensa é um produto da liberdade de expressão.
Se não há liberdade de expressão em Angola, como é que pode sentir-se em segurança depois das acusações explícitas que faz contra o poder?
O problema de segurança que se coloca sobre a minha pessoa é o mesmo de milhares de angolanos que vêem violados os seus direitos. Eu sou contra todo esse tipo de abusos. A única maneira de haver uma nova geração livre desses abusos é denunciá-los. O silêncio não oferece protecção a ninguém. A passividade instalou-se na sociedade e isso não está a salvar vidas. Mas as denúncias levaram, por exemplo, a que a empresa de segurança TeleService saísse das Lundas, perdendo um contrato de milhões de dólares. As pessoas começam a denunciar, a falar contra as arbitrariedades dos que estão no poder. As pessoas estão a começar a odiar os responsáveis de forma vigorosa e a desejar-lhes mal.
E isso inclui o Presidente da República?
A figura do Presidente é o principal foco desse sentimento. Ele e a sua família não são os únicos corruptos em Angola, mas o Presidente acaba por ser vítima do sistema que criou. Quaisquer autoridades que exercem o poder, quando são contestadas, invocam o Presidente. Ou seja, todos os actos de governo, mesmo os dos governadores provinciais ou dos fiscais, são imputados, pelas pessoas, ao Presidente.
Por que é que isso acontece?
As pessoas começam a odiar os responsáveis porque não há diálogo na sociedade que lhes permita apresentarem as suas queixas e verem uma resposta para as suas preocupações. O poder continua a mostrar às pessoas que o país se mantém por via da violência. E as pessoas começam a acreditar que as mudanças só se fazem pela violência. É preciso mostrar outro caminho - o do diálogo e da denúncia.
Quando fez a queixa contra os generais em Luanda, pensou que eles alguma vez iriam ser julgados?
Na altura, as autoridades judiciais e políticas angolanas compreenderam o sentido pedagógico da minha queixa e procuraram fazer mudanças. Eu não queria levar os responsáveis à Haia [Tribunal Penal Internacional que julga os crimes contra a humanidade]. Eu queria que os generais vissem que, à luz da própria legislação angolana, eles correm graves riscos de amanhã irem parar à cadeia.
Como se explica que o resultado das eleições de 31 de Agosto, que deu uma vitória de 72% ao MPLA, não tenha reflectido essa aversão das pessoas para com o poder?
É preciso ver em que condições foram realizadas as eleições. A taxa de abstenção chegou quase aos 40%. E houve uma manipulação grosseira dos registos eleitorais. Segundo uma auditoria da Deloitte, antes do voto, não havia como autenticar a identidade de seis milhões de eleitores. Os ficheiros do recenseamento eleitoral eram controlados pelo Ministério da Administração do Território e por via de Portugal, através de uma empresa com capitais angolanos, a Sinfic. O MPLA reteve 1,5 milhões de cartões de eleitores. Não se sabe o que fez com eles quando chegou o momento de divulgar os resultados.
No entanto, as eleições foram validadas pela comunidade internacional.
A comunidade internacional também validou a transferência, de forma corrupta e ilícita, dos fundos do petróleo para a gestão privada do filho do Presidente, Filomeno dos Santos. Ao apoiar o Fundo Soberano, de que o filho do Presidente é um dos três administradores, o FMI deu legitimidade a essa transferência. Ou seja: deu credibilidade a um fundo que resultou de um acto corrupto e ilegítimo.
Não acredita então que as eleições tenham sido transparentes?
O que sei é que há duas coisas muito diferentes: uma é a vontade do povo; a outra é como isso aparece nos resultados eleitorais. Aos olhos do povo, não é o facto de ter havido estas eleições [gerais, que, por via da maioria do MPLA, levaram à eleição indirecta do Presidente], que o Presidente tem mais legitimidade. Hoje ele tem menos legitimidade do que quando não era eleito, por causa destes comportamentos contra as práticas de boa governação e os princípios de transparência.
"Kopelipa" é um dos generais que interpuseram a queixa contra si por difamação. O nome desta figura aparece também, com o de Manuel Vicente e do general Leopoldino Nascimento "Dino", no inquérito-crime aberto na Procuradoria-Geral da República em Portugal, por branqueamento de capitais e fraude fiscal. Além dessas três figuras, prestou depoimentos sobre muitas outras, entre as quais as duas filhas do Presidente, Tchizé e Isabel dos Santos. O que têm em comum todas estas pessoas?
Eu falei de vários casos, de muitas pessoas. Todas elas têm negócios em Portugal. Tem havido transferência de fundos públicos para os negócios privados das duas filhas do Presidente. Se parte desse dinheiro vem para ser investido em Portugal, deve ser investigada. É nesse sentido que eu tenho referido o nome destas pessoas. É ilegal. É a própria legislação angolana que proíbe que se envolva dinheiro do Estado em negócios particulares de familiares do Presidente. Muitos dos negócios de Isabel dos Santos em Portugal são com o envolvimento da Sonangol, empresa do Estado. E para que esses investimentos sejam feitos têm de ter o aval do Presidente, que é seu pai. É um acto claro de corrupção. É o Presidente que aprova o negócio da filha com um investimento estrangeiro.
A lei de Probidade Pública proíbe os dirigentes de terem negócios que envolvam o Estado e dos quais possam tirar benefícios. Foi o próprio Presidente que promulgou as leis que qualificam o self-dealing e os negócios privados de dirigentes com o Estado como actos de corrupção e de enriquecimento ilícito. Foi ele quem aprovou estes diplomas e não cumpre.
O inquérito-crime contra, pelo menos, as três altas figuras do Estado referidas foi aberto em Julho, depois de um ano de averiguações levadas a cabo pelo Ministério Público em Portugal. Acredita que este processo vá para a frente?
Dificilmente chegará aos tribunais enquanto a elite angolana estiver no poder.
Acha que Portugal protege as elites angolanas?
As relações entre Portugal e Angola estão a ser mal interpretadas, da mesma maneira que Portugal teve algum descuido em perceber as animosidades entre angolanos que levaram a retirar 400 mil portugueses de Angola em 1975. Não é por fecharmos os olhos a uma situação de tensão latente que ela se resolve. Há uma ruptura entre aquilo que hoje a elite angolana diz representar e aquilo que é a realidade do povo angolano. Não se vai dar segurança aos portugueses que vivem em Angola dando cobertura a crimes de enriquecimento ilícito dos dirigentes quando, dos 18 milhões de angolanos, 1,5 milhões vivem com fome. E não se vão proteger os negócios quando se potencia ainda mais a corrupção em Angola. Antes dos portugueses precisarem de Angola, devem precisar dos angolanos. Hoje a estabilidade que existe no país é a da corrupção e da repressão.
Depois dos investimentos na banca em Portugal, os angolanos estão interessados em investir na comunicação social. Mas não se sabe quem está por detrás dessas intenções, como a de comprar uma parte da Controlinveste, que detém o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias. Porquê este secretismo?
Porque há necessidade de esconder a identidade dos angolanos que investem. É óbvio que são dirigentes, porque não há empresário nenhum angolano com capacidade para investir numa área, a da comunicação social, que não dá lucro. É óbvio que estes investimentos são pensados por razões políticas. E essa razão é controlar a informação sobre Angola, sobre a presença e os actos da elite angolana em Portugal e sobre os negócios portugueses associados ao poder angolano. Esse interesse nos media portugueses obedece a um critério pura e exclusivamente político.
Também havia razões políticas para os investimentos angolanos no sector da banca em Portugal?
Os investimentos na banca têm a ver com a facilidade de criar mecanismos para o escoamento dos fundos que têm estado a ser desviados de Angola. Agora, a comunicação social também obedece a essa lógica de ser um sector fundamental para a elite angolana capaz de a libertar do recurso à diplomacia. Portugal continua a ter um papel fulcral nos desígnios políticos da elite angolana. A imprensa portuguesa é muito lida em Angola e continua a ser como um espelho de uma certa realidade angolana. Se não for vigiada pelo regime, pode desequilibrar o controlo da informação que o poder tem em Angola. Mais: esta elite, em termos de imagem, depende muito mais de Portugal do que se pode pensar. Ainda há pouco tempo, havia em Portugal a ideia de Manuel Vicente [vice-presidente de Angola] como um grande gestor. Hoje fala-se dele como um corrupto. Essa diplomacia da corrupção de Angola pode tornar-se contraproducente para estas figuras no poder, como se está a ver com estas investigações na PGR portuguesa.
PÚBLICO(Lisboa) – 18.11.2012