O seu desmascaramento terá contribuído para a redução do conflito homem/elefante, a par da realidade que aponta para uma diminuição física dos animais, em consequência da impiedosa caça furtiva. Um curandeiro, especialmente contratado pelos aldeões que fizeram as suas contribuições monetárias e de comida para sustentá-lo, terá sido a pessoa que veio “desminar” aquele aglomerado populacional, através da sua actividade de curandeiro, apontando quem, entre os habitantes, fazia com que o conflito homem/elefante perdurasse por muito tempo, matando pessoas, para além da destruição das suas machambas.
Ungura, 158 quilómetros, no interior de Ancuabe, alcança-se seguindo a estrada que nos conduz a Montepuez. Cerca de cinco quilómetros depois de Nanjua, posto administrativo de Mesa, passa-se pela aldeia Nsanja, para logo depararmos um desvio, com uma seta que nos indica, entretanto, a existência, mais à frente, de um local histórico, nomeadamente, da base guerrilheira dos libertadores da pátria, que leva o nome de Chaimite.
A base Chaimite localizava-se no que hoje é Taratibo, no sopé duma exuberante montanha, que tem do lado esquerdo o antigo aldeamento de Ungura, fundado pela tropa colonial, em 1965, no quadro do sistema então adoptado, visando confinar as populações em locais fechados, para evitar o contacto com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).
Hoje, de acordo com o seu secretário, João Adamo, que está naquela função há 25 anos, a aldeia de Ungura tem 2.572 habitantes. Conta com uma Escola Primária Completa, não dispõe de nenhum posto de saúde, sendo que recorre à Mesa, 30 quilómetros, para encontrar um estabelecimento do género ou a mesma distância para a sede do distrito de Ancuabe, ao encontro do Centro de Saúde.
Mas tem um Agente Polivalente Elementar (APE), com todas as suas óbvias limitações, numa região onde a produção agrícola é a actividade económica predominante e, provavelmente, por isso, bastas vezes acossada pela incursão dos elefantes.
Na pós-independência nacional, segundo conta João Adamo, a aldeia viveu dois momentos distintos, pois em Abril de 1986 ela foi tomada pelos guerrilheiros da Renamo e o exército governamental viria a recuperá-la a 17 de Julho do ano seguinte.
“Foi depois da retomada da aldeia pelo exército governamental que começamos a sentir que os animais bravios, essencialmente, os elefantes, estavam a ser intolerantes. Em 1999, houve um incremento que levou a que os militares orientassem a abertura de machambas em blocos, uma metodologia ainda prevalecente” explicou o secretário da aldeia de Ingura.
Mortes misteriosas provocadas por elefantes
Entre 2008/9 o número de pessoas mortas já preocupava os dirigentes, tanto formais como espirituais da aldeia, bem como era visível o aumento de elefantes deambulando pelas matas do perímetro Ungura, Taratibo e rio Montepuez, este que dista 11 quilómetros da primeira aldeia.
Entre os elefantes, começou a identificar-se um tipo que passou a designar-se de problemático, cuja definição do chefe da aldeia conduz-nos àqueles que chefiando uma manada, têm momentos em que abandonam-na, indo à procura de locais onde haja pessoas e lá atacá-las, matando-as, grosso modo.
Neste período foram mortas, por ataques de elefantes, quatro pessoas da aldeia Ungura, designadamente, três mulheres e um homem, cada um por sua vez. Mussa Saúre, o único homem deste grupo, foi vitimado quando tentava afugentá-los na sua machamba, em circunstâncias consideradas estranhas.
Passado quase um ano, a sua irmã, Mudja Saúre, viria a ser morta, quando procurava capim para a cobertura da sua casa, há escassos 77 metros da aldeia, facto que aumentou o carácter misterioso da obra dos paquidermes, sobretudo visto o lado aparentemente selectivo da sua acção, em relação à família dos saúres.
A terceira pessoa, de novo uma mulher, viria encontrar a morte, esmagada por um elefante, na sua machamba. Respondia pelo nome de Laurinda Canique. Pouco tempo depois, nas imediações da aldeia, exactamente 200 metros, onde funciona um poço, viria a encontrar a morte, Tanlia Nauaíha.
Para o nosso interlocutor, em 2010/11 o movimento dos animais estava a reduzir-se, ao mesmo tempo que se multiplicavam os esforços visando trazer à aldeia quem viesse ”iluminá-la”, no sentido de encontrar as razões por detrás das quais as pessoas morriam em condições quase inexplicáveis.
O nosso jornal perguntou ao secretário da aldeia se a redução não ficava a dever-se à persistente caça furtiva que, provavelmente pudesse reduzir os animais, ao que nos respondeu:
“Acreditamos que a caça furtiva possa ter contribuído, mas por outro lado, era imperioso que procurássemos a razão das mortes enigmáticas, provocadas por elefantes que não se assustavam, não fugiam das pessoas e selectivamente procuravam quem deveriam atacar. Nesse período, 2010 a 2011, na verdade, não morreu ninguém” acrescenta João Adamo.
Em Janeiro deste ano, os esforços extra-oficiais, trazem a Ungura, Niwanane, um curandeiro vindo duma aldeia do posto administrativo de Mesa, de quem se sabia da sua competência em matéria de “desminagem” duma região onde emergem e prosperam feiticeiros.
Para tanto, uma contribuição monetária e em comida foi feita, partindo principalmente de jovens que insistiam em que se apontasse quem estaria por detrás dos azares de Ungura.
Niwanane chegou, viu e publicamente apresentou os pretensos aldeões que se faziam passar por elefantes, acusando-os directamente de serem quem estragava as culturas, metendo nas respectivas panças os alimentos de machambas alheias, que se transformavam em superprodução para si e, nalguns casos, recorriam à eliminação dos seus donos.
O primeiro apontado foi Agostinho Terenciano, a quem ordenou que se expusesse ao sol, durante o tempo que ele definisse, como forma de lhe provar os indícios que sobre si recaiam de que estava metido na morte de seus coabitantes, transformando-se em elefante.
“O Terenciano recusou a acatar a ordem e logo a seguir vimo-lo a transformar-se rapidamente, acabando por tomar atitudes animalescas e no fim evacuado para a sua aldeia de origem, Natove, onde viria a morrer, poucos dias depois” conta o secretário da aldeia.
Na verdade, em Ungura, Agostinho Terenciano havia ido porque gostara duma menina da aldeia, com a qual acabou contraindo matrimónio. Segundo a fonte, o curandeiro Niwanane já havia dito aos presentes ao acto público, de que as transformações que se estavam a operar em presença, eram o sinal de que estava implicado na morte dos seus conterrâneos, por via da magia da sua própria transformação em elefante.
A seguir, Niwanane exibiu Serrote, um aldeão originário da aldeia de Mitepo, na outra margem do rio Montepuez, distrito de Meluco. Este não se recusou a acatar as ordens do curandeiro e terá confessado fazer parte dos que “faziam coisas” para o seu enriquecimento, incluindo a sua transformação em elefante.
Sobre este mesmo aldeão, o “Notícias” soube de uma cena em que ele envolveu-se numa peleja com um elefante, tendo saído ileso, o que na opinião pública revela que “não é qualquer”, pois na luta que teve, foi por três vezes projectado pelo elefante, tendo ficado apenas com alguns golpes (feridas) no corpo. Isso foi no ano passado.
Não sabíamos que há homens que se transformam em elefantes
Deve ter uma idade aproximada a 50 anos. Chama-se Talibo Saíde, o homem que a nossa Reportagem interpelou no interior da aldeia de Ungura, de quem queríamos a confirmação dos factos ocorridos na já referida reunião pública, onde o curandeiro apresentou os supostos “elefantes”.
“Eu, na minha idade, já tinha ouvido muita coisa sobre a capacidade de algumas pessoas se transformarem em animais (cobras, lagartos, leões, etc.) mas nunca tinha ouvido essa de também termos aqui mesmo na aldeia “elefantes “que conviviam connosco durante o dia ou alguns momentos e noutros momentos vinham exactamente atacar-nos para os seus objectivos quase inconfessáveis” diz Talibo Saíde.
Muito liberal nas palavras e nos gestos, o nosso interlocutor contou minuciosamente o filme dos acontecimentos daquela data e caracterizou da seguinte maneira, como o falecido Terenciano acabou transformando-se em plena reunião pública.
“Depois de recusar as orientações do curandeiro, vimo-lo de repente com olhos ultra-vermelhos, começou a bater nas árvores, aumentou a sua zanga e pôs-se a sacudir uma árvore muito grande, que se foi mexendo toda, assim como faz um elefante. A seguir lançou uns grunhidos ou gritos, próprios dos paquidermes. Ficamos simplesmente boquiabertos” enfatiza Talibo Saíde.
Eu não sou elefante, elefante é aquele que morreu!
Sem desfalecer, o nosso jornal foi ao encontro do considerado ex-elefante, Serrote, de quem se diz ter cumprido as ordens do curandeiro e confessado a sua alegada participação nas magias que culminaram com o recrudescimento de ataques de elefantes a pessoas da sua aldeia.
Quando se fala de Serrote, faz-se entender que ele terá escapado da morte, tal como, o seu suposto colega, Agostinho Terenciano, pura e simplesmente por não ter mostrado resistência, face às alegadas evidências que o curandeiro trazia.
Notícias - O senhor é acusado de ter sido, até há pouco tempo, um elefante, quer dizer, pessoa que se transformava em elefante para roubar comida produzida por outros para encher o seu celeiro, e que matava pessoas na sua qualidade de elefante. Alias, é o senhor Serrote?
Serrote- Olha, não sou Serrote (esse nome é das bebedeiras), o meu nome é Amade Sumail. Eu nunca fui elefante, não sou elefante, elefante é aquele que morreu.
Notícias Mas dizem que o senhor cumpriu as ordens do curandeiro, por isso escapou à morte, tal como Terenciano…
Serrote- O que dizia aquele curandeiro… algumas coisas, eram verdadeiras, mas mentiu no meu caso, eu não sou e nunca fui elefante.
Notícias Depois contam que o senhor lutou com um elefante, sozinho e escapou. As pessoas pensam que foi por causa da sua magia, o que tem a dizer?
Serrote- Já viu, se eu fosse elefante não haveria de lutar com o meu amigo, meu semelhante, fica explicada ai a sua dúvida, que aliás é a dúvida dos meus detractores.
Para Amade Sumail, o que ele considera perseguição, tem a ver com o facto de que não é natural da aldeia Ungura, onde veio fixar-se por conveniência, pois vem de Mitepo, distrito de Meluco.
A outra razão que encontra para tamanha invencionice contra a sua pessoa terá a ver com a sua relativa opulência, resultado de muito trabalho, nas margens do rio Montepuez, onde em cerca de dois hectares tem milho, mexoeira e outros produtos que bastam, numa região habitualmente, sobretudo nos últimos tempos, com fome.
Amade Sumail ou Serrote, conta a história da peleja que teve com o elefante, que na opinião pública confirmava o seu lado estranho no seio da comunidade.
“Nada de especial. Foi no dia 28 de Maio do ano passado, um sábado, eu ia preparar a festa da criança, 1 de Junho, procurar comida, quero dizer. Na verdade, saia da minha primeira mulher, ora falecida para a segunda, esta que está aqui comigo, mas tudo isso, lá na machamba. Eu nem sabia que havia um elefante escondido…” conta o nosso entrevistado.
O considerado Ex-elefante diz que dali sentiu, de repente, que estava diante de um elefante que com a sua tromba lhe lança e deita no chão, desferindo-lhe um golpe nas costelas esquerdas.
“Depois eu me levantei, quase a ir ao seu encontro, mas ele lançou-me outra vez, desferindo-me outro golpe, desta feita aqui na cintura e depois, já na terceira vez, feriu-me aqui onde não vos posso mostrar” diz, apontando os seus órgãos genitais.
Só depois de tudo isso, Serrote foi socorrido por aldeões de outras machambas, tendo sido posteriormente levado ao hospital, na sede do distrito de Ancuabe.
“Estou muito bem, curei. Mas não estou assim muito bem, porque nunca voltaria a ser como era” foi assim que fechou a conversa.
Os dados do Parque Nacional das Quirimbas…
A história de elefantes-pessoas, ouvimo-la pela primeira vez, no dia 5 de Dezembro corrente, quando enquadrados numa expedição jornalística com outros órgãos de comunicação social, no interior do Parque Nacional das Quirimbas que, como se sabe, engloba seis distritos centrais de Cabo Delgado.
Não satisfeito, o nosso jornal, quatro dias depois, decidiu voltar a Ungura para melhor perceber o fenómeno que o fiscal daquele posto, Simba Bachir, disse fazer parte das explicações que havia na aldeia, face à redução significativa das incursões de elefantes na zona.
Com efeito, segundo Bachir, para além da desconfiança de que seja em resultado do abate indiscriminado perpetrado por caçadores furtivos, na aldeia havia uma explicação, que longe de ser racionalmente aceite, emperrava.
Todavia, para o nosso interlocutor, o que não se pode discutir é o facto de que havia um grupo de caçadores furtivos que operava na zona e actualmente ficou o problema de uso de artefactos menos mortíferos, como armadilhas.
- PEDRO NACUO