HERNANI E LINDOLFO MONTEIRO
(ou a vã glória daqueles que brincam com a
vida alheia)
Lindolfo Monteiro, de cima dos seus 1,84 metros de altura e 100 quilos de
peso, depois de ter aberto a porta do seu gabinete, tenso e sério, atirou de
chofre as palavras, que recalcadas no seu íntimo, aguardavam a presença de uma
pessoa amiga, para extravazarem a tristeza, a revolta, a incompreensão da
profunda injustiça que desabava agora para cima dos seus ombros :
- Diz-me
Neves Pinto, o que vês em frente de ti ? Diz-me lá ... Um empresário que tanta
gente gaba ? Que tantas firmas, empregos e desenvolvimento criou para o futuro
desta terra ? Uma pessoa inteligente, com visão, um verdadeiro empresário, que
sabe fazer e acautelar os seus investimentos ?
O seu amigo fitava-o, também
sério, sem dizer uma palavra, parado à sua frente. E ele continuou :
- Eu digo-te,... estás a ver o maior burro da Zambézia, isso sim é o que está à tua frente.
Sentaram-se os dois, de olhares vazios dirigidos para partes diferentes da sala, evitando-se, de lágrimas contidas. E em profundo silêncio, para ali ficaram aqueles dois, desbravadores de terras e condutores de homens, de bravura impar, sem saberem o que mais dizer um ao outro.
Monteiro & Giro, Lda. era tida na Zambézia, como uma firma de sucesso, e olhada com admiração.
Iniciada em 1926, contava agora em 1975, nove firmas associadas, interligadas em serviços e produção de utilidade, para os seus oito estabelecimentos comerciais de alta qualidade e supermercados, espalhados por todo o território de Moçambique.
Proprietária de 40.000 hectares de terras, dos quais 4.000 plantadas com chá, era já considerada o maior produtor mundial nesse sector. Com onze fábricas a laborar, dezenas de plantações diversas, explorações de pecuária já com um efectivo de 23.000 cabeças de gado bovino, aviários, oficinas de reparações de automóveis, agências de turismo, e um Hotel de luxo, o célebre Hotel Chuabo, empregava na altura 14.300 pessoas.
Por sua vez Hernani Neves Pinto, Lda. tinha desenvolvido a sua actividade, a 210 Km de Quelimane, bem no coração da Zambézia, junto a Mocuba, "onde todos os caminhos se cruzavam e a Zambézia se abraçava", como fazia lembrar a placa de cerâmica colocada à entrada da vila.
Tinha sido uma opção, se assim se poderia dizer, uma vez que dera continuidade ao início já feito pelo meu avô Alfredo Sarmento Pimentel, numa região conhecida como,..."o cimitério dos brancos". Essa fama advinha das muitas mortes dos que para ali tinham ido trabalhar, proveniente da mais grave doença tropical, a malária.
O tipo de comércio desta firma era o oposto à do seu amigo.
Levar todos os bens de primeira necessidade à interioridade e de lá escoar os produtos agrícolas que os seus naturais produziam, para os vender junto das grandes cidades do litoral, constituíam o seu objectivo.
O meu pai, sentado no gabinete do seu amigo Lindolfo, com quem tantas vezes se encontrava nas suas vindas a Quelimane, onde trocavam ideias ligadas às suas vidas empresariais, bem entendia o que o outro lhe estava a transmitir.
Na verdade este tinha-lhe tirado as palavras da sua boca. Ele sim era quem mais se podia recriminar e era este o sentimento que queria transmitir ao vir ao seu encontro. Não conseguia compreender como era possível estar agora na situação em que estava.
Mas nesta dimensão havia um maior agravamento para ele, pois tinha sido avisado de que isso lhe aconteceria, há muitos anos por Frei José, um secerdote franciscano amigo, e há bem pouco tempo pelo tio da sua mulher, o capitão João Maria Sarmento Pimentel, residente no Brasil.
Após o 25 de Abril, o Partido Socialista fez a primeira reunião da sua cúpula directiva, chefiado pelo Dr. Mário Soares, em casa desse tio da minha mãe, na cidade de S.Paulo no Brasil.
No assentar de ideias e estratégias, foram estabelecidas as linhas mestras pelo qual esse Partido se iria reger para o futuro. No que respeitava às Províncias Ultramarinas, a decisão foi a da sua entrega urgente, imediata e incondicional aos Partidos Políticos que faziam a guerra no Ultramar. Nem mais, nem menos, essa era a prioridade que interessava.
Eis que esse meu tio—avô escreve de imediato uma carta aos meus pais, na qual lhes relatava as circunstâncias que exigiam a nossa saída de imediato de Moçambique.
A carta terminava com um aviso :
- "Fujam depressa daí !"
- E que fez o meu pai ? ...Depois de ter lido a carta, virou-se para a minha mãe e disse-lhe :
- Olha, lê esta carta do teu tio do Brasil, e guarda—a
nas tuas coisas. Como é possível que possa escrever o que aqui vem ?!!!
A situação em que agora, um e outro se encontravam, era algo fora
da capacidade de entendimento e previsão.
Há quinhentos anos que a roda do
desenvolvimento iniciada pêlos portugueses, nos descobrimentos, tinha sido posta
em movimento. A inércia dessa roda exigia uma força tremenda para tão pouca
gente, mas tinha sido posta em movimento, e, na década de sessenta, a sua
velocidade era estonteante.
A construção civil, as estradas, os embriões de
fábricas, as escolas, tudo ia aparecendo a um ritmo que a todos contagiava.
Todos viam desabrochar em Moçambique, um segundo Brasil em embrião.
Mas um
outro factor pesava mais que tudo para o amor que estes homens dedicavam a esta
terra. Era a sua identidade, a sua personalidade.
Os grandes espaços a perder
de vista, a liberdade com que o seu clima permitia o vestir despretencioso das
suas gentes, a fauna selvagem, os seus frutos sumarentos de uma doçura extrema,
e principalmente as suas gentes, cordatas, de grande afabilidade.
O
entusiasmo contagiante, no assistir ao desenvolvimento das cidades, portos,
aeroportos, ao rasgar das estradas alcatroadas, o suor do rosto no trabalho do
dia após dia, o nascer, casar e enterrar dos entes queridos, fazia com que
ninguém questionasse o investimento de todas as suas economias naquela
terra.
Para todos era impensável uma independência nos moldes em que esta
mais tarde se viria a dar.
O Estado Português garantia que aquela parcela era
e seria sempre portuguesa.
Mas, os portugueses que lá viviam, tinham a
consciência de que, para um território com aquela dimensão, e com o
desenvolvimento a que se assistia, não o seria possível manter naquela realidade
política.
Mas agora, com a independência dada na pessoa de um Partido
Político, a Frelimo, estava-se a assistir à concretização do seu ideário
marxista-leninista, e às promessas de aliciamento oferecidas aos guerrilheiros
que nas fronteiras tinham feito a guerra: " a mulher e a casa do branco
".
Depois da independência, todos os passos foram dados neste sentido, e os
portugueses, que queriam adoptar agora a nova independência, constatavam o
profundo logro em que tinham caído.
Primeiro, obrigaram-lhes a investir todas
as suas economias nessa terra, dizendo-lhes que era portuguesa, e por isso não
as podiam transferir para o continente, e depois, ...disseram-lhes o contrário,
e, ...abandonaram-nos à sua sorte.
Lindolfo Monteiro, Hernani Neves Pinto, e
largas centenas de pessoas ficaram então na miséria e tiveram que regressar ao
país de origem, pois lhes nacionalizaram todos os seus bens.
A história se
encarregará de repor tudo nos seus lugares, porque factos são factos, e contra
eles de nada vale a retórica.
As casas, prédios, herdades, lojas, fábricas,
hotéis e belas cidades, espalhadas por Moçambique, são a prova de que as pessoas
que as fizeram, aí colocaram o seu enlevo, as suas esperanças, aí queriam viver
e morrer.
Não são esses os merecedores da ignomínia, mas sim aqueles que de
tudo os espoliaram, mais os que concorreram para isso.
Ë pois justo
perguntar, para quando esses responsáveis políticos, poderão vir a estar
sentados no banco dos réus, e responsabilizados por tanta miséria e morte que
ocasionaram, por sua expressa vontade ?
Ë vê-los, bem de vida, cheios de
mordomias, a distribuir elevados pensamentos de sapiciência laica, bem vestidos
nos seus mantos de cordeiro, chamando de bem, ao mal que fizeram.
Se uma
América do Sul o pode fazer a um Pinochet, qual a razão para que isso esteja
vedado a um país da União Europeia, que se advoga paladino dos direitos humanos
?
Gondomar, 2004/05/17
João Maria Neves Pinto
P.S.: O título e o
destaque são da minha responsabilidade
Fernando Gil
NOTA:
Será que este encontro e decisões tomadas em S.Paulo constam do vários livros que Mario Soares e Almeida Santos escreveram ou dos que sobre eles foram escritos?
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE