Abdul Zubaida, o terceiro em pé da direita a esquerda, integrado na selecção de futebol de Inhambane (1959) (Click na imagem para ampliar)
linha d’Água:
Por Luís Loforte
(fé, razão, cegueira e intolerância)
A última vez que nos vimos foi num convívio que reuniu antigos estudantes do, atrevo-me a dizer, lendário professor João Manuel Paixão. Eu não estava nessa condição, mas tão somente porque disponibilizei o meu quintal para o feito. E se calhar isto merece alguma explicação e enquadramento.
Por causa de depoimentos que escutara acerca do professor Paixão, resolvi em tempos escrever um artigo para a revista Prestígio, através do qual sintetizei alguns dos feitos do homem em prol de muitos moçambicanos, entre os quais alguns familiares meus.
Um filho do professor telefonou-me, de Lisboa, para me dar conta que lera o artigo, ao mesmo tempo que agradecia a referência elogiosa feita a seu pai.
Bem, disse-lhe apenas que me limitara a dar voz aos que benefi ciaram dos ensinamentos do homem, alguns dos quais me confessaram que não seriam o que são se João Manuel Paixão não tivesse feito o que fez por eles. Deu-me a saber que estava de malas aviadas para Moçambique, e gostaria de conviver com aquelas pessoas, se eu as pudesse reunir. Menos de dois meses depois, e porque alguns dos visados estavam à mão de semear, a confraternização aconteceu.
E vamos então às incidências do convívio.
Um dos convivas foi o Abdul Remane Zubaida, conterrâneo e velho amigo da minha família, tendose feito acompanhar da esposa.
Às tantas, e fazendo uso das minhas prerrogativas de hospedeiro, entendi que se calhar o convívio teria algo de útil se os presentes, e na condição de antigos alunos do Paixão, pudessem depor sobre o que guardaram na memória sobre a sua relação com o professor. E assim foi.
O depoimento do Zubaida foi longo e, sobretudo, comovente, que o levaria até às lágrimas. Começou por falar da sua infância pobre, muito pobre mesmo, na cidade de Inhambane. Disse-nos que aumentava a parca renda da mãe vendendo iguarias da terra e utensílios domésticos a magaízas que por ali passavam demandando as suas aldeias, no seu regresso da África do Sul; que estudou pouco porque não tinha meios para mais, o que lhe impediu até de se fazer presente no exame da quarta classe, valendo-lhe, porém, a ajuda de João Manuel Paixão, que desembolsou o valor necessário para que ele pudesse fazer o exame, que passou com distinção.
Anos depois, Zubaida foi a Portugal para jogar futebol. Depois de uma rápida passagem por Lisboa, Zubaida rumou ao Norte, para jogar pelo Guimarães.
Falou da mão amiga que teve em Adelino Jorge e Armando Manhiça, ambos futebolistas moçambicanos de nomeada, assim como, com a ajuda de uma professora portuguesa que lhe observara o empenho e a dedicação, concluiu o primeiro e o segundo ciclos dos liceus, estudando à noite. Zubaida falou-nos da sua aventura como empresário ligado ao desporto internacional, do mundo que percorreu e das mais importantes personalidades ligadas a ele que conheceu.
Apenas por curiosidade, disse-nos que em Londres foi vizinho do cantor norte-americano James Brown, o rei do soul music. Finalmente, o Zubaida falou-nos do pedido que lhe fizeram para que regressasse a Moçambique e dos receios que teve, obviamente por causa da intolerância dos nossos primeiros anos da Independência em relação ao capitalismo, mas que Samora Machel o encorajou a regressar e a lançar os seus negócios sem receios. E de facto os benefícios do seu regresso não se fizeram esperar. Serviu-se dos seus conhecimentos internacionais para a rentabilização de uma aeronave de grande capacidade alocada em exclusivo à Presidência da República.
No entanto, alguém conspirava e fazia ninhos atrás da orelha de Samora, obstruindo os pagamentos a Zubaida, principalmente quando estes eram avultados.
Samora, no entanto, e cumprindo a sua palavra, demovia os escolhos. O Zubaida terminava assim o seu depoimento enaltecendo duas personalidades: João Manuel Paixão e Samora Machel. Quis dizer mais alguma coisa, mas as lágrimas, a emoção e a voz embargada não o deixaram.
E porque é que cansei os leitores com estes episódios?
Embora todos esperem pela morte, a verdade é que a todos surpreende. Surpreendeu-me e doeu-me muito a morte do Zubaida.
Mas mais surpreendente e dolorosa ainda foi, sem dúvida, a forma como decorreria, quarenta dias depois, o ofício religioso para assinalar o assim chamado ziarat, na mesquita Chadhulia, no Alto Maé. Estávamos presentes pretos, brancos, mestiços, cristãos, muçulmanos, gente das mais variadas convicções políticas e religiosas, afinal a imagem do homem cuja alma sufragávamos. Só que, infelizmente, essa imagem seria borrada por um jovem ignorante a quem conferiram a responsabilidade de dirigir o culto religioso muçulmano. Chamou de indignos, mentirosos, charlatães e blasfemos todos aqueles que não seguiam o islamismo; disse-nos que o verdadeiro mensageiro de Deus sobre a face da terra foi o profeta Mohamed, e que todos os outros eram impostores.
No fundo, aquele ignorante estava a ofender não só a pessoa que motivara a nossa presença ali, como também a todos os amigos do Zubaida, presentes e ausentes, a todos aqueles que o ajudaram a erguer-se quando caía, e muitas vezes quando já julgava que nunca mais se reergueria. Estava também a ofender as opções sentimentais do Zubaida, que casara com uma cristã, sem que alguma vez a tivesse exigido para seguir o islamismo.
Zubaida era a expressão de um país quase único no mundo, onde as religiões nunca dividiram os seus habitantes, mas que, infelizmente, agora, aparecem extremistas de toda a jaez querendo e lutando para destruir esse cimento que sempre nos uniu.
Já fora do recinto, pergunto a um amigo muçulmano sobre como toleravam pessoas daquela jaez à frente de uma mesquita. “Este tipo foi mandado estudar para o Sudão, formou-se lá em direito islâmico…!”, respondeu-me ele. Valendo-me da nossa amizade, permiti-me dizer-lhe que não, que aquele jovem não fora ao Sudão para se formar em coisa alguma que não fosse em intolerância, ainda que ele, eventualmente, tenha fé. Pois é, pensei eu, de que vale a alguém ter a fé se ele não usa a razão?
Ao entregar este texto, e nesta avalanche de reflexões que nos chegam todos os dias e por todos os meios sobre o escrutínio de um novo Papa, leio alguém que nos diz: “Ideia nuclear é a do diálogo entre a fé e a razão. A fé, sem a razão, é cega e intolerante.”
É isso mesmo: alguns sectores islâmicos em Moçambique estão apostados em lançar o caos social em Moçambique. E nós, infelizmente, assistimos impávidos e serenos, ou até acocorados aos interesses daqueles.
CORREIO DA MANHÃ – 12.03.2013