Na poligamia, todos os envolvidos sabem do sistema em que estão, inclusive é permitida por algumas religiões e até mesmo pela legislação de alguns países. No nosso País, as coisas não são bem assim. As uniões poligâmicas, na verdade, põem em decadência o princípio da igualdade entre homens e mulheres e são várias as questões que se colocam, neste tipo de relacionamento: Como é que é o processo de poligamia? Será que a mulher, de livre e espontânea vontade, assim entende sugerir ao marido que gostaria de ter uma companheira no casamento?
Notícias (NOT) - Uma questão que se coloca, quando falamos da poligamia se relaciona com os sentimentos da esposa: terá a mulher de um polígamo a opção de escolha?
Dr. Manuel Didier Malunga (DM) - Creio que não existe a escolha da mulher. Há países africanos em que a poligamia é aceite . Mas mesmo assim, a pessoa tem que optar pelo regime de casamento que quer seguir. Se opta pela via tradicional do casamento ou regime costumeiro, ai pode casar com duas, três ou mais mulheres. . Porém, se a pessoa opta pela via formal já não pode se casar com mais de uma mulher. Este é um tema que exige muito trabalho. Toda a tentativa de trazer à legalização, o sistema de poligamia, está a violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres. A própria sociedade aceita com naturalidade a poligamia (um homem com muitas mulheres), mas já não o faz em relação à poliandria (uma mulher com muitos maridos), que é uma prática quase inexistente, pelo menos, no nosso país. Por isso, a questão da poligamia é um tema que merece ainda muita discussão. Contudo, reitero, para mim, a poligamia é em si uma violação ao princípio da igualdade entre as pessoas.
NOT - Estamos na fase da revisão do código penal e uma das questões que se coloca à volta disso é o reconhecimento legal da poligamia. Se ela viola a igualdade, a sua posição em relação a isso é não?
DM - A constituição defende o pluralismo jurídico, o que significa que não é só olhar para a lei, os códigos, mas olhar para aquilo que resulta da forma de ser e de estar da comunidade. Mas também temos um desafio. Por um lado, defende-se que devemos valorizar os usos e costumes do povo, mas por outro lado, temos um desafio muito grande que são os padrões internacionais de direitos humanos que a constituição recebeu, como o princípio de igualdade entre homens e mulheres. O que está em causa é que quando nós falamos de usar o direito costumeiro ou os usos e costumes, nunca se deve abandonar os direitos fundamentais das comunidades. Cada um dos integrantes da comunidade tem os direitos fundamentais que vêm na constituição. Quando qualquer tentativa de resolver problemas na comunidade violar os direitos fundamentais dos integrantes da comunidade, penso que é ilegal.
NOT– Olhando para a Lei da Família, encontramos três regimes de casamentos: casamento civil, religioso, tradicional. Um dispensa o outro, Dr.?
DM – Na verdade, quando se aprovou a Lei da Família, há algo que não ficou claro para as pessoas. É que continuamos a ter, rigorosamente, um único tipo de casamento. Quando olhamos para o que é necessário, para a validade de um casamento, vemos as mesmas exigências legais. Portanto, a capacidade para casar é a mesma para todos e outros requisitos que impedem para o casamento (impedimentos matrimoniais) também são os mesmos. A Lei da Família (2004) o que veio fazer foi criar modalidades de celebração do casamento. Criando as modalidades, para além do civil que já existia, foi introduzido o religioso e tradicional. Um exemplo muito simples é de que se alguém vai celebrar uma cerimónia matrimonial na igreja sem passar pelos requisitos do civil este indivíduo é considerado ainda solteiro. A lei diz que quando alguém pretende celebrar o casamento deve se dirigir à conservatória para determinar se quer celebrar o matrimónio na conservatória ou perante um padre. Se quer casar na igreja a conservatória começa a verificar todos os requisitos legais e passa um certificado (certificado de capacidade matrimonial), como uma espécie de guia de marcha, e a pessoa leva para a igreja e o padre celebra o casamento. Após a celebração do casamento, o padre devolve a informação para ser transcrita no registo civil. Quer dizer, o registo civil só faz a transcrição do casamento religioso se o processo tiver iniciado lá, caso contrário não recebe a informação da igreja. Contudo, há excepção para esse mecanismo: a Lei diz que se por ventura o dignitário religioso ou o padre constatar que há razões ponderosas de carácter moral, por exemplo, se a mulher está grávida e entende-se que, moralmente, a pessoa deve dar parto depois de casar, ai pode se dispensar a ida inicial, a conservatória. Porém, quando o padre celebra o casamento sem ir à conservatória perante essas duas circunstâncias, ao mandar a informação para a transcrição deve justificar as razões que o levaram a celebrar sem antes ter-se iniciado o processo no registo civil (atenção que as razões têm de ser de ordem moral e ponderosas). Isto significa que os casamentos celebrados na Igreja antes da aprovação da actual Lei da Família não são transcritos na conservatória, se tiverem sido celebrados depois de 1975 (pois antes o regime de casamento canónico era aceite).
NOT - Antigamente, parece que o casamento religioso ou canónico (como se chamava, nesse tempo) não carecia do registo, na Conservatória, ou estamos enganadas?...
DM – Havia, sim, os chamados casamentos canónicos que são bem diferentes dos casamentos religiosos actuais. Antes, o estado português tinha assinado em 1940 uma concordata com a Santa Sé (Vaticano) para que se celebrasse os casamentos em Moçambique, que eram católicos. Mediante esta concordata havia um acordo segundo o qual, o estado aceitaria a transcrição destes casamentos feitos na igreja católica. Contudo, mesmo depois de transcrever o casamento a pessoa não podia mais tarde dirigir-se ao tribunal para resolver um problema que tivesse a ver com o seu casamento. Os nubentes assinavam um acordo em que eles se abstinham de ir ao tribunal para resolver o problema do casamento. Os divórcios eram resolvidos em tribunais eclesiásticos. Quando a pessoa se casasse canonicamente afastava-se do regime civil. Depois da independência, o Estado moçambicano afastou-se desse regime porque o Estado é Laico e não deveria assinar um acordo com o Vaticano nesse sentido. Em 2004, com a aprovação da Lei da Família foi-se estabelecer um novo regime de casamento religioso, mais abrangente.
NOT - E no casamento tradicional, deve-se também iniciar o processo no registo civil?
DM- O casamento tradicional também rege-se pela Lei, só que tendo em conta o local onde ocorre que, geralmente, é no campo onde se supõe que as pessoas têm pouca possibilidade de legalizar previamente a documentação. O casamento tradicional é feito sem a verificação prévia dos requisitos. Significa que, se alguém quer realizar o casamento tradicional tem que ter lá um líder comunitário que vai testemunhar a ocorrência. A Lei impõe a produção de uma acta e o líder comunitário tem que ter lá duas testemunhas. É uma proclamação oral feita pelo líder comunitário. Depois da elaboração da acta deve-se fazer a transcrição do casamento no registo civil. O conservador, por sua vez, verifica a acta e avalia se há condições para a transcrição do casamento. Numa comunidade lá para o distrito, havia um jovem de 15 anos robusto, alto, com gado e que já tinha mulher. O líder comunitário achou que ele estava em condições de casar e celebrou o casamento nestas condições. Elaborou a acta e levou ao conservador para a transcrição do casamento, mas o conservador se recusou devido à idade do nubente que por Lei ainda é menor. Aqui levanta-se a questão de que os líderes comunitários ainda não estão preparados, tecnicamente, para celebrar com eficácia esses casamentos. A ilusão que se criou em relação ao casamento tradicional foi de que a Lei está a permitir o casamento segundo os usos e costumes, mas não. A Lei apenas criou condições para que as pessoas se casassem nas comunidades, dispensando os pré-requisitos legais, exigidos.
NOT - No fundo o casamento reconhecido é o civil?
DM - Sim, todas estas modalidades de casamento vão desaguar no civil. Os requisitos exigidos para o casamento ser reconhecido são quase os mesmos. Nas sociedades patriarcais, por exemplo, o homem pode anelar duas ou três mulheres. Se a Lei permitisse o casamento com base em usos e costumes aceitaria a transcrição do casamento com as três mulheres...
Impedimentos do casamento
NOT- Suponhamos que o homem se casou-se tradicionalmente com três esposas e pretende transcrever o casamento com uma delas, as outras podem impedir ou não a celebração do matrimónio?
DM- Não podem. Isto é, a ligação que um homem possa ter com uma mulher tendo como base os usos e costumes não é impedimento para ele se casar no civil. Ele até pode arranjar uma quarta e com ela celebrar o matrimónio.
NOT- No momento em que o celebrante pergunta se há alguém contra o matrimónio, as outras não podem impedir o casamento, mesmo assim?
DM- Quando ele estiver a casar perante o líder comunitário e aparecem duas, por exemplo, a dizer que têm impedimento sem apresentar provas da existência do registo de casamento, tal não é válido dai a demonstração inequívoca de que o casamento realizado segundo os usos e costumes não é valido. A prova única de se ser esposa de alguém reconhecido por Lei é a certidão de casamento. O lobolo por si só não impede que a pessoa se case com outra. Se não transcreveram o casamento na conservatória não impede que a pessoa se case no civil. O facto de o homem ter anelado três mulheres não impede que ele se case com uma quarta. A nossa Lei não reconhece a poligamia. O nosso casamento é monogâmico.
NOT- E nesta situação, que protecção têm essas mulheres em termos de direitos patrimoniais resultantes dessa ligação?
DM - O apanágio que a Lei da Família prevê no artigo 426, em eventualidade da morte de alguém que esteve em união poligâmica, sabendo que esta união não é reconhecida por Lei, as mulheres envolvidas nessa relação têm o direito da quota parte da pessoa falecida, dependendo do tipo de vivência. Mesmo o homem casado, eventualmente, com uma e tendo outra ou é casado com uma e não se divorciou da anterior, o que a Lei diz é que após a morte dele, aquela esposa que viveu com ele em união poligâmica mesmo sabendo que não é legal tem direito a alguma coisa, mas avalia-se as circunstâncias, o tempo que viveram juntos. A lei absorveu timidamente esta parte de uso e costumes. São efeitos muito específicos de salvaguardar as pessoas que ficam e viveram com base em usos e costumes da comunidade. Diz a norma que a mulher nessa situação, tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo falecido se à data da morte se encontrasse a viver com ele em união poligâmica há mais de cinco anos. Os alimentos são graduados por igual entre as companheiras (se mais que uma) do falecido mas, não devem, em todo o caso, ultrapassar metade do valor dos rendimentos dos bens da herança, a que os filhos tenham direito.
NOT - No caso de uma dessas mulheres decidir afastar-se da relação por não se sentir confortável, depois de viver 20 anos, por exemplo, em união poligâmica, ela terá algum direito ao património construído durante a relação?
DM – Quando é assim, a pessoa sai da relação sem nada. E como se sabe da lei, dentro de uma união poligâmica não há a união de facto protegida por lei. Para que haja protecção pela figura da união de facto seria necessário que ela vivesse de forma singular pelo menos um ano, para que tivesse direito à metade dos bens adquiridos. A união de facto é singular, isto é, quando um homem vive com três mulheres já não está em união de facto. Isto é, em caso de separação, a mulher já não se beneficia daqueles elementos que vulgarmente conhecemos que é ter a metade da herança adquirida durante a relação. O que pode acontecer, já é uma questão do direito civil e não da Lei da Família: Numa união poligâmica, o que a mulher pode fazer é, das vezes que se comprar uma motorizada, por exemplo, registar-se, esse bem, em nome dela, dá próxima em nome da outra e assim elas poderão sair da relação com propriedade própria. Mas como sabem, a falta da cultura jurídica e o facto de ainda persistir a ideia de que o homem é chefe da família e de que todos os bens devem ser registados em seu nome, colocam a mulher nesta desvantagem.
Provar a união de facto no Tribunal
NOT - Tendo em conta que a maior parte das famílias moçambicanas é constituída na base da união de facto, quando é que é reconhecida este tipo de convivência entre um homem e uma mulher?
DM - A união de facto tem uma complexidade quanto ao reconhecimento. Esta é uma das lacunas da Lei da família. Nos ordenamentos jurídicos de alguns países, a união de facto deve ser registada, mas a nossa Lei diz que não. A união de facto é informal e temos vários problemas, alguns dos quais prejudicam ao homem e outros à mulher. A partir do princípio em que quando há dissolução da união de facto por morte e, se for o homem a morrer, que é o detentor do património, a pessoa que fica só pode requerer a herança ao tribunal. A única forma de provar a união de facto é só no tribunal. Normalmente, quando as pessoas casadas morrem, a pessoa que fica não precisa de ir ao tribunal é só ir ao cartório notarial e fazer a habilitação de herdeiros e publicar-se o extracto e depois disso registar-se os bens. Este facto prejudica à mulher, na medida em que ela vai ter dificuldades de provar que vivia em união de facto. Tal facto concorre para que parte do património fique com os demais familiares. A união de facto pode prejudicar o homem e a sua família e o exemplo é este: um homem que vive nove anos sozinho e no último ano de sua vida vive com uma mulher em união de facto e morre. A lei diz que o património partilhado é aquele que é gerado durante a vida em comum e naquele último ano ele não gerou nenhum património. O que se assiste é que a mulher ou homem procura testemunhas para provar que viveu mais anos com este marido ou esposa. Ela/ele acaba ficando com metade do património de que não participou para a sua geração, e ai já é um prejuízo para o homem ou mulher porque, eventualmente, ele/ela tenha filhos de uma outra mulher/homem.
NOT- Se a pessoa morre antes de um ano ou a relação não dá certo e nesse espaço de tempo ter participado e contribuído para a geração de algum património. Que protecção terá?
DM – O que se deve fazer é tomar as medidas cautelares. No inicio da relação definir regras. Quando compra-se um carro, por exemplo, registarem juntos, quer a casa, e outros bens e tornarem-se comproprietários. Se o património estiver registado em nome do falecido, seria difícil afastar outros herdeiros legais alegando que contribuiu para a geração daquele património. Pode ser possível provar mas será uma batalha jurídica delicada.
NOT - Olhando para a Lei da Família o que se deveria melhorar mais para que haja maior protecção das pessoas?
DM - Acho que se deve detalhar mais a questão da união de facto. Na Lei tem lá apenas dois artigos (212 e 213), um que define o que é a união de facto e outro que diz os dois efeitos de que falei. Agora o que acho que falta na Lei da Família é que não basta prever uma norma, os efeitos de uma norma, prever um direito e os seus efeitos, é preciso criar condições para que as pessoas tenham acesso e beneficiem desse direito. Para a união de facto a Lei não trás mecanismos processuais. O mecanismo processual é aquele comum em que, por exemplo, se a pessoa tem um problema e que tem que demonstrar, deve fazê-lo perante o juiz mediante provas testemunhal ou material. Acho que se deve rever a Lei da família no sentido de se desenvolver os mecanismos processuais para questões de união de facto. Pode-se desenvolver a Lei no regulamento ou em sede de normas processuais: processo civil ou registo civil, se a visão for de registar a união de facto. Por exemplo, nós temos o casamento e na Lei da família vem o que é casamento mas como se faz a celebração do casamento está no registo civil, há mecanismos para aceder. Penso também que a Lei deveria desenvolver mais no que concerne a alimentos. De forma mais ou menos tímida, a lei fala de alimentos em caso de morte, isto é fundamental. No artigo 426, o apanágio em caso de união poligâmica, a Lei diz que tem direito a ser alimento pelo rendimento dos bens deixados pelo actor da sucessão (o falecido), se à data da morte a mulher estiver em união poligâmica há mais de cinco anos. Imaginemos que um homem viveu cinco anos em união poligâmica e é casado com uma delas, a Lei reserva algum benefício para aquelas mulheres que viveram nessa união, mas tem que ter vivido cinco anos, caso contrário não têm benefício (os cinco anos me parecem exagerados).
NOT - Como é que é feita a divisão do património em caso de morte?
DM -Depende do regime do casamento. Quando é casamento em regime de comunhão de bens a divisão é de 50 por cento para cada, homem e mulher. No caso de separação de bens, cada um fica com seu próprio património e não há lugar a partilha de bens. A pessoa que sobrevive no casal só é chamada para ficar com o património se não existirem pais, filhos, irmãos e respectivos filhos da parte do falecido.Protecção e pensão alimentar das crianças
NOT - Se o casal tiver filhos. Qual é a parte deles? Beneficiam dos cinquenta por cento da mãe ou do pai?
DM - Numa relação cujo casamento é sob o regime de comunhão geral de bens, quando morre um dos intervenientes, os filhos concorrem aos 50 por cento do falecido. Mas se estiverem casados em separação de bens, morre o individuo os filhos concorrem para o património todo que ele deixou, se ele, o falecido, for o detentor do património, a mulher fica sem nenhum património.
NOT - Que protecção terão as crianças do casal em caso de separação?
DM - Em caso de separação, há um instrumento que se chama de regulamentação do poder parental. Se os filhos forem menores de idade, a lei obriga que haja um instrumento aprovado pelo tribunal de menores a dizer qual é a situação dos filhos. Duas coisas têm que ser definidas: guarda das crianças (ficam com a mãe ou o pai). É no tribunal onde o juiz procura numa primeira fase sugerir acordo entre as partes. O princípio é que tudo a ser decidido tem que ter em conta o interesse superior das crianças. Mas quando não há acordo, o tribunal analisa a situação. É chamada a acção social para analisar a situação social da pessoa que se pretenda que seja o representante das crianças. Faz-se a peritagem e olha-se mais as condições psicossociais para o bem-estar das crianças. Quando a criança fica com qualquer das partes, a outra parte fica com alguma obrigação de participar nas despesas da criança, geralmente um terço do seu salário.
- Delfina Mugabe, Evelina Muchanga e Joana Macie