Mia Couto, escritor moçambicano, já se encontra em Portugal onde vai receber amanhã, o Prémio Camões atribuído recentemente.
O Prémio Camões que será investido na criação de uma organização que crie oportunidades de edição de livros para jovens escritores é pretexto para uma conversa mantida com , durante o almoço no Restaurante Serra da Estrela. Vida pessoal, a de escritor, de biólogo, inquietações e sonhos, constituíram o tema central da conversa que se segue.
De onde vem o nome de Mia?
Meus pais me contam que tinha eu dois anos. Morava no Maquinino (na Beira) e via muitos gatos que minha mãe dava comida. Comia e dormia com os gatos. Pensava que era um deles. Foi quando disse aos meus pais que queria ser chamado de Mia, em homenagem aos gatos. Meus pais aceitaram o nome. Disseram OK. E este passou para escola, para vida e hoje sou Mia Couto.
Certa vez disse que o segredo da escrita está na forma como o escritor preserva a memória da infância…
De facto há que guardar esse pedaço da infância para nós podermos ser ingénuos e nos encantarmos por pequenas coisas.
O escritor é sobretudo um escutador. Escuta histórias, pessoas. Acho que alguém que matou sua infância e que se envergonha com o facto de ser menino, não é escritor.
É militante de um partido político?
Fui militante da Frelimo até uma altura em que houve esquecimento recíproco. Eles se esqueceram de mim e eu deles. Tenho um cartão em casa, adormecido.
E se fosse seduzido?
Mesmo que fosse seduzido por qualquer partido, acho que não alinharia. Preciso ter uma tranquilidade moral. A disciplina partidária envolve essa obrigação de por vezes não se dizer o que se pensa.
Não tenho ressentimentos nem mágoas. Moçambique passou por uma fase de criar um país novo, sociedade nova. E fomos fazendo uma coisa que não tinha igual no mundo. Parávamos em um sítio e tínhamos zona libertada. E isto era um convite para vivermos a política de uma maneira épica, inovadora, única…
PRÉMIO CAMÕES
É PARA O POVO MOÇAMBICANO
Como se sente após receber o Prémio Camões, o maior de língua portuguesa?
O Prémio Camões não é atribuído à mim, mas ao povo moçambicano, às pessoas com que lido no dia-a-dia.
O prémio é para cidadãos que me fazem gostar de estar vivo; pessoas que dão contribuições felizes na maneira de olhar ao mundo. Estou sendo alimentado pelo povo…
É esse povo que fá-lo inventar palavras?
Sim. Eu não faria isso se tivesse nascido num outro país, noutro contexto. Moçambique tem uma enorme riqueza. Tem uma grande diversidade de culturas, de línguas. E todas elas têm que enfrentar a Língua Portuguesa de uma maneira, numa espécie de namoro.
Exemplos….
Desconseguir, por exemplo. Não tem equivalência. Quando a gente diz não consegui não equivale ao desconsegui.
Quando a gente diz o carro dormiu fora. Parece uma construção poética, mas é um transporte da língua materna na viagem da transformação discursiva.
Isso significa que o povo moçambicano não tem medo do que é correcto, da ditadura do português correcto. Não está inibido nesse encontro com a língua portuguesa.
Como dizia uma camponesa que encontrei na Zambézia: eu falo português corta-mato, o que significa que é aquele que me serve, se releva útil.
Aquela camponesa não teve uma posição de minoridade perante a norma.
INFLUÊNCIA DE LUANDINO VIEIRA
O escritor angolano Luandino Vieira teve certa influência na sua escrita?
Sim. Um escritor tem que confessar suas influências, porque quando as nega, há qualquer coisa que está a ser ocultada. A primeira vez que li Luandino Veira quase que rejeitei sua escrita. Foi um choque muito grande. Eu não sabia entender aquilo. Voltei a ler e percebi.
Obviamente que ele faz muita coisa típica de Luanda. Percebi logo que não tinha de o imitar. Mas havia a luz verde para reinventar o meu percurso.
E daí começou a sua “mania” de inventar palavras…
Nessa altura era jornalista e começei a recolher palavras. Mas se eu transportasse os elementos da recolha ao português-padrão, as histórias morriam. Perdiam a cor.
Então percebi que tinha de encontrar uma coisa que traga a oralidade para dentro da escrita. Começei a fazer isso e publiquei os primeiros textos. Apanhei muita porrada…
Como assim?
Fui chamado para Associação dos Escritores para me darem porrada. Perceberam a minha escrita como se fosse gozo aos que não falam bem a língua portuguesa. Mas com o tempo fui sendo percebido
Quem era o secretáro-geral da AEMO?
Era o Rui Nogar.
Em que momento se inspira melhor na produção de suas obras? De dia, à tarde ou à noite?
Escrevo mais à noite. Mas sou um escritor full time. Em todo momento tenho um caderninho de notas, onde coloco as ideias.
TEMOS QUE REPENSAR NA CULTURA
Que marcos tem da cultura moçambicana?
O primeiro grande marco é a data da nossa independencia. Há obviamente um antes e depois. Nem que seja para dizer agora tenho o direito de até de errar. De fazer mal. Conquistei o destino, o direito de definir a minha própria vida como país, como Nação.
O que nos falta para desenvolvermos uma indústria cultural auto-sustentável?
Acho há que repensar como esta coisa chamada cultura é representada ao nível da estrutura governamental. Eu não sei se precisamos de ter um Ministerio da Cultura.
Há que se pensar em unidades mais móveis que possam dinamizar a actividade de uma maneira menos dependente da estrutura do Governo.
Quando se fala da industria cultural é uma coisa diferente. Já se fala da indústria. Mas no resto acho que uma associação dos escritores pode fazer pelos escritores mais do que qualquer ministerio possa fazer.
Deve-se ensaiar uma coisa qualquer nova. Se me perguntam o que é exactamente eu não sei. Sei que este modelo não funciona.
Para além da Ilha de Moçambique, Nyau, Timbila, o que é que devíamos inscrever como património da humanidade?
Existe tanta coisa que merece. E há uma coisa que não tem nome, mas acho que é arte da nossa moçambicanidade. É algo que me dá vaidade, orgulho. As pessoas que visitam Moçambique ficam impressionadas com a nossa maneira de ser. Acho que isso é um património invisível, intangível. Os moçambicanos têm uma maneira de ser que impressiona. Uma sabedoria, uma experiência de lidar com os outros com facilidades e que não é tão comum. Não se encontra um povo que conquista a outros facilmente. Podemos gaurdar isso como património que nos valoriza. Não devemos imitar os sul-africanos, americanos.
É apreciador de pratos tradicionais moçambicanos? Qual deles é favorito?
Sou apreciador de pratos moçambicanos. Gosto do caril de camarão, uma boa mathapa de camarão. É uma pena porque quando se traz alguém de fora, não temos um sítio para mostrar isso. Há um acanhamento. E é muito estranho que um restaurante saiba fazer um bom bacalhau à brása mas não vem uma couve, mathapa…
Também gosta da fotografia…
Gosto. A fronteira entre fotografar e escrever é muito pequena. Eu acho que a nossa imaginação (a própria palavra vem de imagem) é muito fundada em cima da imagem. O mecanismo de funcionamento do cerebro humano é muito fundado na imagem. Quando penso um texto, penso na imagem.
Mia cozinha?
Não cozinho, sou um desastre autêntico. Gostaria muito de saber cozinhar. Nem sei fazer ovo estrelado. Uma vez fazer batatas fritas e tentei supreender a minha mulher, indo adiantando alguma coiza na cozinha. O que aconteceu é que surpreendi a ela, pois a cozinha quase que ardia.
O que nos falta para desenvolvermos uma indústria cultural auto-sustentável?
Naõ sei responder essa pergunta. Há que repensar esta coisa chamada cultura é representada ao nível governamental. Não sei se precisamos ter Ministério da Cultura. Não estou a criticar este ministério ou o governo em particular. Mas temos que pensar que eventualmente precisamos de unidades mais móvel que possa dinamizar a actividade sendo menos dependente do governo. Uma boa associação dos escritores pode fazer pelos escritores, o resto que o Ministério da Cultura não possa.
É preciso fazer algo diferente?
Temos que ter a ousadia de ensaiar uma coisa nova. Não sei o que é. Sei que o modelo actual não funciona. Temos um modelo festivaleiro. Sei que os festivais nacionais são importantes, mas não pode ser isso só. O que é mais vital responder não é encenação de grandes espectáculos, mas sim trabalhar porque músicos, actores, cineastas precisam de ter apoios.
Qual é o seu maior sonho?
Meu sonho é que meus filhos e netos possam ser felizes como eu sou, que eles sejam amigos de seus amigos. Uma das coisas que gosto é as pessoas me fazerem parar e me contarem histórias. Tenho um sonho maior, da dimensão do país. Sonho que o país tenha gente mais feliz e que as pessoas realizem seus sonhos.
QUANDO ESPOSA E AMANTE
SÃO A MESMA PESSOA…
O biológo ajuda o escritor ou o escritor o biologo?
São a mesma pessoa. Um escritor russo que me marcou muito, chamado António Chekov, que era médico e escritor, disse a respeito da sua condição: neste caso caso não há infidelidade porque a esposa e amante são a mesma pessoa. A biologia para mim é alguma coisa não tem tanta fronteira com aquilo que eu faço como escritor. Amo a Biologia justamente porque é uma narrativa. Ou seja: narra a história mais fascinante que eu conheço: a história da vida…
JORNAL DOMINGO