ENTRELINHAS
Por Gento Roque Chaleca Jr.
“As terras são como as pessoas, todas são interessantes, o que é preciso é conhecê-las. O povo costuma dizer que a gente só conhece o que vê, eu penso exactamente o contrário, a gente só vê o que conhece” – José Hermano Saraiva (1919-2012), historiador português
Aproveitando o feriado do dia da paz, porque há muito que o trabalho não me dava tréguas, decidi visitar pela primeira vez Inhambane, a chamada “Terra da Boa Gente”.
Bem, penso que alguns leitores já perceberam a minha veia crítica e, portanto, não posso deixar de comentar o facto de que foi a mitologia colonial portuguesa coadjuvada por uma determinada literatura nacional emergente na então cidade de Lourenço Marques, que apelidaram, em prejuízo de outras terras por onde a semente da colonização comandada por Vasco da Gama passou, o distintivo de “Terá da Boa Gente” à Inhambane. E de facto é.
Polémica à parte, a verdade é que Inhambane é uma terra linda, castiça, histórica e antiga quanto o tempo.
Formada em “Q”, Inhambane está cercada de água e com uma única entrada por terra, faz-me lembrar a Ilha de Moçambique em dimensões 3D. O seu maior capital, a par da sua gente, são as lindas praias que os “manhambanes” têm sabido cuidar com zelo e dedicação.
À semelhança de todas as capitais do país, a cidade de Inhambane possui uma estrutura de edifícios em ruína decadente, que clamam por reabilitação, sob pena de as gerações futuras ficarem privadas de conviver de perto com o passado. Não é o problema de higiene, até porque a cidade tem um cheiro agradável, é a erosão do tempo e do salitre, que desfiguram a pintura, a paisagem e o valor arquitectónico das obras de arte da cidade, deixando-as sem graça.
É sabido que a importância de uma terra está ligada às estradas, até porque costuma dizer-se que os caminhos fazem as terras. Ora, as estradas de Inhambane, sobretudo as que dão acesso à cidade capital e aos locais turísticos como praias, estão em avançado estado de degradação. É preciso andar com sacos de enjoo e primeiros socorros para o caso de, “não vá o diabo tecê-las”, o leitor cair numa de muitas covas, autenticas armadilhas para ratazanas, abertas nessas vias.
Como disse anteriormente, Inhambane possui lindas praias, de beleza indescritíveis, fazendo crer que Deus as esculpiu para hospedar raras espécies de animais aquáticos e irradiar o coração dos seus visitantes, o que merecia uma dosagem de investimentos em infraestruturas. Para mim, tanto a praia do Tofo como da Barra são relíquias que deixam garboso a qualquer moçambicano, por isso não vou aqui especificar qual delas é a mais bonita. Seria a mesma coisa que escolher, entre os meus dedos, qual deles é o mais bonito.
Acontece porém que para se chegar a estas duas praias é preciso dominar o medo, porque as estradas são sinuosas e pouco sinalizadas. Falta também nessas praias placas direccionais. Penso que uma boa gestão turística e patrimonial destas e outras praias de Inhambane, pode trazer o tão sonhado desenvolvimento a esta província. Já existe uma faculdade de Turismo da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), o que é preciso é fazer dessa faculdade um laboratório onde o talento humano está ao serviço de Inhambane.
Fiquei atordoado com o facto de nos restaurantes de Inhambane não se preparar comida típica da terra. Insisti e até ameacei desclassificar, na minha galeria de gostos, alguns restaurantes que possuem cardápios virados para pratos que aumentam a gordura e o colesterol, iguarias que os médicos não recomendam aos seus pacientes. Um proprietário de um dos muitos restaurantes que visitei, explicou-me que o problema é do frio que afugenta os peixes. Já um estudante de turismo na UEM, que comigo confabulava, afirmou que tal deve-se ao facto de Inhambane ser visitada por turistas que não consomem comida local por preferirem outros manjares.
Perguntei a ambos se conheciam a palavra vergonha, pois para mim, tal justificação só podia ser um subterfúgio dos dois (a tal chamada desculpa de mau pagador). Sem que adiantassem uma resposta, puxei de uma das gavetas da minha memória uma frase de Milan Kundera que diz:
“A base da vergonha não é algum erro que cometemos, mas que essa humilhação seja vista por todos”. Todos os presentes reconheceram que, neste aspecto, Inhambane está a perder a luta pelo progresso, que são as batalhas da cultura.
Não gostaria de terminar sem antes falar de dois pontos, ainda que isso cause algum incómodo ao editor deste jornal devido a extensão da crónica: o primeiro é a forma como a travessia é feita entre a cidade de Inhambane e Maxixe. Existem barcos alternativos ao batelão, que não oferecem segurança aos passageiros, para além de excederem a lotação máxima de pessoas e bens e uma vez que os batelões trabalham em função do horário e do número de passageiros a bordo, muitas pessoas preferem apanhar esses “barquitos”, nos quais as pessoas são transportadas como se de alguma mercadoria se tratasse e sem o mínimo de consideração. É um problema que tem sido ignorado e congelado pelo executivo de Agostinho Trinta e que pode resultar em tragédia.
Quanto ao segundo e último, penso que o governo poderia poupar muito em termos de combustível em Inhambane, tratando-se de uma cidade pequena, em que as instituições estão próximas umas das outras. Numa das visitas que fiz a Amesterdão e Haia pude constar que a maior parte dos funcionários públicos daquelas cidades dispensam viaturas nas suas movimentações dentro das cidades, optando por andar a pé ou usando bicicletas, contribuindo assim para diminuição do efeito de estufa. É uma ideia, que também é extensiva ao governador que não dispensa a sua escolta para percorrer uma distância de aproximadamente 50 metros. Ndatenda (Obrigado)
O AUTARCA – 22.10.2013