O PRIMEIRO Presidente de Moçambique independente, Samora Moisés Machel, falecido a 19 de Outubro de 1986 no acidente aéreo de Mbuzini, na África do Sul, não era um super-homem, segundo defendeu, em entrevista ao “Notícias”, Suleimane Cabir, um dos decanos do jornalismo no país.
Notícias (Not.)– Como jornalista que acompanhou vivamente a vida e obra de Samora Machel após a independência nacional, que recordações guarda do primeiro Presidente de Moçambique independente?
Suleimane Cabir (SC)– As recordações que eu guardo do primeiro Presidente da República de Moçambique são perenes. Nunca mais se poderão apagar. Mas não só isso. São recordações que ainda hoje estão vivas. São valores que nos foram incutidos naquela altura. Nós éramos muito jovens, ainda não tínhamos consciência política. De certa forma, éramos um pouco rebeldes, devido à nossa idade. Mas foram-nos dadas, logo no início da independência, grandes responsabilidades. Na altura, o país foi deixado completamente despojado. É preciso entender que não podemos nem endeusar, nem mistificar Samora Machel, mas apontar alguns aspectos extremamente marcantes daquele que até hoje vive, embora fisicamente não esteja presente, pelo seu exemplo, seu rigor e sobretudo pela profunda preocupação e quase que obsessão que ele nos incutiu a nós, jovens dessa altura, para agarramos com responsabilidade e com rigor, sem receios de cometermos erros e construirmos este país do nada. Samora e a Frente de Libertação de Moçambique tiveram de gerir um país, logo à partida, completamente falido. Nós jovens tivemos de assumir responsabilidades nessa altura, e assumimo-las sem condições nenhumas. Eu já era jornalista havia poucos meses. Era estudante e ao mesmo tempo trabalhava. Guardo e guardarei o rigor que ele tinha para com os interesses nacionais, em relação à continuidade de construção deste país, a ética relacionada com a melhoria das condições de vida de cada cidadão e sobretudo uma disciplina rigorosa naquilo que fazemos em termos profissionais e uma ponderação sempre equilibrada em relação às opiniões diferentes.
TODO O BENEFÍCIO PARA CAMADAS MAIS POBRES
Not. – Como era a personalidade de Samora Machel?
SC– Talvez eu não seja a pessoa mais indicada, nem a pessoa com conhecimento mais aprofundado para falar duma figura tão importante e tão grande e ainda presente que é Samora Machel. Poderei simplesmente falar pouco ou nada sobre Samora Moisés Machel, pelas oportunidades que me foram dadas de o conhecer de perto, de viajar com ele, de ser enviado muitas vezes para missões de trabalho ao nível jornalístico, mas sem saber para onde íamos. A motivação que ele transmitia fazia com que nós assumíssemos qualquer missão de trabalho sem hesitações e sem medo, fosse para onde fosse. A grande questão que eu posso colocar em relação ao nosso primeiro Presidente e à sua personalidade é aquela grande motivação que ele nos transmitia a nós jovens, de sempre nos superarmos, sempre fazer melhor e ter em primeiro lugar as pessoas, o povo, os cidadãos. Hoje poderá ser um “slogan” esquecido, provavelmente não posso dizê-lo de forma categórica, mas Samora Machel incutiu em nós que, em primeiro lugar, todo o esforço e todo o benefício deve ser para as camadas mais pobres, para as camadas mais humildes, para as camadas que não têm grandes possibilidades, incluindo, naturalmente, duas questões fundamentais que ele sempre indicava, batia e rebatia: a educação, partindo da própria alfabetização, não só dos jovens mas dos velhos. A minha própria mãe aprendeu a escrever o nome dela através de lições de alfabetização. A personalidade de Samora Machel era uma personalidade em que a pátria estava em primeiro lugar, as pessoas em primeiro lugar, a responsabilidade e o rigor eram divisas que podiam parecer, para alguns “slogans”, mas na prática era o que nós na altura assumimos com rigor. Foi a partir daí que tivemos oportunidades profissionais, nos anos seguintes, de cada vez maior responsabilidade e levar o nosso país a ser considerado, pelo menos na nossa área de Imprensa, como um repositório de quadros com grande vocação e com grande profissionalismo, apesar de jovens. Posso dizer, em resumo, que Samora Machel era pátria, era nação, e ainda hoje vive em todos nós.
Not.– Pode se dizer que Samora Machel era um líder carismático?
SC– De facto, era um líder carismático. Ele conseguia levantar as pessoas que nada tinham, mesmo naquela altura de grandes dificuldades, de grandes sabotagens de que o país era vítima. Levantar milhares e milhares de pessoas, devido à sua clareza, sua transparência e sua objectividade. Ele explicava de forma clara, de forma a que todos com qualquer nível educacional compreendessem a mensagem. E conseguia levantar as pessoas, motivar as pessoas para que trabalhassem cada vez mais, para que fizessem, cada um no seu sector, um pouco para construir este país. Posso dizer que, ao nível interno, era de facto e continua a ser um líder carismático. Ao nível externo, tive oportunidades imensas, em África, na Europa, nas Américas, de acompanhar, em trabalho, algumas das visitas do próprio Presidente Samora Machel. A admiração, que mesmo os que condenavam Moçambique, a abertura do nosso Presidente, a clareza do nosso Presidente, a procura de soluções para desamarrar o país daquela situação extremamente difícil em que se encontrava, e inclusivamente o início de todo o processo e o exercício que ele começou a fazer a partir dos anos 80 para encontrar uma solução para o conflito interno, com contactos secretos, com a reposição e aproximação às confissões religiosas. Todas as questões relacionadas com os apoios à guerrilha que estava contra a Frelimo e o Governo, nomeadamente a África do Sul, os encontros que houve em Pretória que depois culminaram com acordo de N´komati em 1984. O grande motivador disso era Samora Machel.
MACHEL ERA A ESPERANÇA
Not.– Era um líder que arrastava multidões para os seus comícios. O que é que motivava as pessoas para aqueles encontros?
SC– Vivíamos todos em dificuldades. Vivíamos todos numa situação em que muitas vezes não sabíamos o que comer ou não tínhamos o que comer. Ou tínhamos de partilhar com amigos ou conhecidos o pouco que nós tínhamos. E Samora Machel era a esperança. Samora Machel transmitia essa esperança de forma tão completa, de forma tão clara que quando se sabia, quando se anunciava num distrito, numa capital provincial, em qualquer ponto do país, que Samora Machel iria falar em comício, as pessoas andavam 10, 20 quilómetros a pé para estarem presente e ouvirem em directo e em presença aquela esperança que sempre foi Samora Machel.
Not. – Hoje, os discursos do Presidente Samora Machel estão a ser replicados e difundidos em videocassetes, ou outras formas, nas ruas, nos transportes públicos e outros lugares. Na sua opinião, porque é que isso está a acontecer?
SC– Para mim, é um fenómeno de que a esperança não morreu nas pessoas. Ela continua a existir, as dificuldades que hoje existem são diferentes. A época e as relações internacionais hoje são completamente diferentes. Samora Machel é um marco indelével, é um marco incontornável, é um marco que perdurará para sempre na história mais recente de Moçambique, não só por ter sido o primeiro Presidente de Moçambique, mas devido à sua personalidade, àquilo que incutiu em nós e que não se apaga. Eu creio que as pessoas nos “chapas”, as pessoas mais jovens e que procuram saber sobre Samora Machel vêem e ouvem Samora Machel como um pilar de que Moçambique tem um futuro extremamente importante, seguindo os valores e tudo o que ele incutiu em nós.
Not.– Pode citar alguns dos valores que ele incutia na sociedade?
SC– Valores sobretudo de ética, de responsabilidade, de justiça e de solidariedade. Não nos podemos esquecer que quando Angola estava em grandes dificuldades, devido à invasão sul-africana, Samora Machel fez um comício em que dezenas de milhares de pessoas contribuíram com um pouco que tinham para ajudar Angola, para além dos elementos das forças armadas que foram enviadas a Angola. Não nos podemos esquecer de que esses valores de solidariedade se replicaram mais tarde para a luta de libertação do Zimbábwè, também para o Sahara Ocidental, replicaram-se também para onde eu estive presente, com alguns colegas, no Uganda, quando Moçambique participou com tropas tanzanianas para repor alguma estabilidade no tempo de Idi Amin, que teve de se refugiar no Sudão. Samora Machel estava preocupado com uma coisa, que é melhorar gradualmente a vida dos moçambicanos, com uma posição e visão estratégica: os jovens, a educação e a sua preparação para o futuro.
Not.– Como era o relacionamento de Samora Machel com a Imprensa?
SC– Samora Machel olhava para nós como, digamos, miúdos. Ele tinha uma actuação connosco de muito carinho, mas ao mesmo tempo incutia em nós a grande responsabilidade do trabalho. Nós viajávamos com Samora Machel para países estrangeiros e não tínhamos nada. Viajávamos com sapatos rotos, com roupa emprestada. Mas isso não nos preocupava. Não falo de mim, falo de todos nós. Preocupávamo-nos em cumprir aquela missão de trabalho, fazer a melhor cobertura possível, com o máximo de equilíbrio e responsabilidade. Portanto, os valores eram integrais, íntegros, de ética, de justiça, de responsabilidade e de pôr a pátria, o país e os cidadãos em primeiro lugar.
Not.– Sobre a ofensiva política e organizacional, acha que foi um modelo válido que importa resgatar nesta fase do processo histórico do país?
SC– Creio que devemos analisar com alguma tranquilidade e ponderação este tipo de questões. Ofensiva política e organizacional justificava-se naquele momento. As condições em que o país vivia eram muito diferentes. O isolamento em que o país vivia, os ataques constantes a todos os níveis e as infiltrações a todos os níveis justificavam que uma figura como Samora Machel, com toda aquela capacidade de mobilização, de análise, de rigor e de decisão, tivesse embarcado na ofensiva política e organizacional. Hoje vivemos uma situação completamente diferente. Vivemos uma situação em que as instituições do Estado têm, por si, essa responsabilidade. Não é menos complexa, apesar de diferente. Os desafios de hoje são de grande complexidade. Eu não vejo que hoje uma ofensiva política e organizacional se possa enquadrar como se enquadrou naquela altura. Penso que hoje, com a descentralização inclusivamente, com a responsabilidade e com o “Job description”, mais rigoroso das instituições, cabe a elas fazer esse trabalho e aconselhar os decisores políticos para melhor decidirem.
Not.– Como pessoa, não era, naturalmente, um imaculado. Pode apontar erros que eventualmente ele terá cometido e que podiam ser evitados?
SC– Eu tenho grande dificuldade em criticar Samora Machel como indivíduo e como dirigente. Quando nós somos escolhidos para ser dirigentes máximos ou de outro nível, nunca tomamos as decisões individualmente. Eu recordo-me porque acompanhei muitos encontros, muitas reuniões ao nível superior como jornalista. As decisões eram colectivas, com aquilo que se dizia ser aplicação dispersa. Portanto, responsabilizar apenas um dirigente pelos erros que foram cometidos é também um erro. Por vezes queremos responsabilizar um indivíduo quando havia uma máquina do Estado, um Estado incipiente, um Estado que ainda estava a surgir, sem quadros preparados, um Estado sabotado e falido, e que tudo fazia para que não fosse falhado. Samora Machel cometeu erros? Sim, cometeu-os conjuntamente com todos os outros que faziam parte dessa máquina. Mas temos de olhar no tempo e espaço para as razões que levaram ao cometimento desses erros.
Not.– O que fazia com ele fosse admirado por muitos, por exemplo, no plano externo?
SC– Samora Machel tinha sempre um sorriso para os amigos e para os inimigos. Mas era rigoroso intelectualmente. Não escondia as grandes dificuldades e problemas, como também não escondia os apoios de que o país precisava. Na altura, os Estados Unidos da América olhavam para Moçambique como um país do chamado bloco soviético. Ronald Reagan ficou desarmado quando na sala oval Samora entrou e disse: “Rony, how are you?”. Ele tinha uma presença de espírito, uma forma de abordar as questões, mesmo com aqueles que consideram Moçambique um país fora da sua esfera de influência.
Not.– Onde é que Suleimane estava e como recebeu a notícia sobre a morte de Samora Machel?
SC– Foi um choque muito grande. Eu estava a dormir em minha casa em Londres, devia ser uma hora e 30 minutos da madrugada, quando recebi um telefonema de um dos directores da BBC, dizendo-me que o avião do meu Presidente estava desaparecido e se supunha que se tivesse despenhado. Vesti-me e fui directamente para as instalações da BBC para acompanhar tudo. Fiquei três dias e três noites sem dormir. Interiormente fiquei com grandes preocupações sobre o rumo que o país poderia tomar.
Not.– Na sua opinião, como é que Samora Machel geriu a relação com o regime segregacionista sul-africano, mantendo no seu país bases do ANC?
SC– Penso que nós temos de olhar para esta situação duma forma mais profunda. A independência de Moçambique trouxe uma situação de grande complexidade na própria África do Sul e no regime do apartheid. Compreenderam logo à partida, pela própria natureza, pela própria via política, que a Frente de Libertação de Moçambique tornou pública e pela sua génese e como a independência de Moçambique foi conseguida com o apoio e solidariedade de muitos países, não só da Tanzania. Sabiam que Moçambique iria continuar essa linha, essa forma de actuação, apoiando os povos que ainda estavam subjugados. Por um lado, na libertação da Rodésia, na altura e no apoio a quem tudo fazia, neste caso o ANC e não só mas também outras forças internacionais, para acabar com o apartheid na África do Sul. Ele tinha uma visão estratégica sobre essa situação. E tentou essa aproximação para encontrar pontos comuns entre Moçambique e África do Sul para a resolução desses problemas e conflitos que na altura existiam na África Austral. Eu recordo-me, fui várias vezes a Pretória nos antanoves da força aérea para aqueles encontros, não sei se eram secretos ou não, onde dirigentes como Sérgio Vieira, Jacinto Veloso e o falecido Fernando Honwana iam lá discutir com as autoridades do apartheid, autoridades militares da contra-inteligencia, etc, para tentar encontrar ma solução. Ele geria com uma visão estratégica de encontrar uma paz e uma estabilidade que servisse a todos na África Austral, independentemente das raças e da sua orientação política.
NOTÍCIAS – 19.10.2013