Por Gento Roque Chaleca ([email protected])
Do Papa VI, na “Evangelii Nuntiandi”: «O homem moderno já não acredita em palavras, exige exemplos. Quando acredita na Palavra do pregador é porque a sua vida é exemplo». Extracto de uma conversa com o diácono e padrinho Paulo Roque.
O trabalho de escolher as figuras do ano, no meu ponto de vista, é difícil e por vezes incompreensível, mas tem de ser feito. Como em qualquer jardim, há sempre uma flor que mais se destaca e tem melhor aroma que as outras. Na miscelânea de flores, encontramos as seguintes: orquídeas, rosas, hibiscos, cravos, tulipas, e até mesmo espinhosas de vário jaez. Quanto às espinhosas do ano, não desejo que elas acabem, mas que vivam o suficiente para assistirem a virtude e o triunfo do bem.
Ao escolher as minhas figuras do ano não pretendi, de forma alguma, endeusá-las ou beatificá-las, que é contrário ao ABC da minha tradição católica. Estou ciente de que estas escolhas não encontrarão consenso entre os meus leitores, tão-pouco ficaria feliz se as minhas crónicas fossem uma espécie de catequese. Aceito, portanto, ideias contrárias, mas nunca o vilipêndio de quem muitas vezes se esconde no espesso véu do anonimato, até que a ventaria mostre a sua cloaca aos olhos de todos.
1. D. Dinis Sengulane
Quando devia catequizar o seu rebanho, incrementar e impulsionar a doutrina cristã, num ambiente de paz, percorria as ladeiras da Gorongosa em busca de uma solução pacífica para acabar com a contenta política que se instalou no país. Já o tinha feito no passado, durante a guerra civil moçambicana, pese embora os manuais da história pouco ou nada dizem sobre esta sumidade, e continua a ser e com a mesma pujança o extintor das chamas provocadas pelo desentendimento político entre irmãos. A sua paciência chinesa e bonomia incomensurável têm feito com que, mesmo depois da ruptura do diálogo precipitado pelo ataque das forças armadas de defesa e segurança à Santungira, D. Dinis Sengulane continue a ser além de charneira entre os dois opositores figadais da arena política nacional, uma figura querida, respeitada e de um nítido consenso entre os dois beligerantes na mediação do diálogo. O bispo dos Libombos é a minha escolha do ano também por outras razões. De crucifixo no peito e uma batina eclesiástica, D. Dinis Sengulane acredita num Moçambique melhor, em que todos os homens são irmãos e que todos reconhecem-se filhos do mesmo pai, e sem espaço para malária, guerra, corrupção, entre outros males que incorporam a nossa sociedade.
2. Carlos Serra
Numa sessão etílica em Lisboa, para variar o habitual café ou chá, perguntei a um amigo o que achava das intervenções do Professor Carlos Serra. Como se os olhos dele tivessem saído da órbita, abanou a cabeça em movimento sincrónico com o pescoço e respondeu: “Quando a grandeza intelectual de um cidadão atinge (ou atingir) a dimensão de um Kilimanjaro, há maior probabilidade de não ser compreendido pelo sistema político vigente, por não serem videntes e visionários.” Esta frase deu-me muito que pensar. Será que o Professor está fora do seu tempo, ou será que, pela altura e largura do seu saber, os pigmeus não o compreendem? Se o Professor Carlos Serra é ou não compreendido, caberá a História fazer este julgamento, a verdade é que se o compreendessem, o país seria hoje Canaã para todos os moçambicanos. Quer nas salas de aulas, quer fora dos perímetros da academia, quer através do seu prestigiado blogue “Diário de um Sociólogo” (que possui distinção internacional e não admite espaço para a epidemia de copy & paste), Carlos Serra tem sido um Professor incansável, expoente máximo da batina pedagógica, ao serviço da educação. Se não pautasse por uma atitude que eu considero de “acção de graça” para com o povo moçambicano, demonstrado no facto de ensinar e fazer descobrir a ciência sem cobrar sequer um vintém, seria um homem rico, com pepitas de ouro ou jazidas de petróleo, tal como são alguns profissionais. “Mas, como sempre acontece, a estiagem assola os coelhos que temem migrar em busca de novos pastos.” Neste ano, prestes a terminar, para não defraudar a tradição e o seu altruísmo, o Professor Carlos Serra lançou mais uma obra literária e dezenas de apontamentos, incluindo participação em “Colecções – Cadernos de Ciências Sociais”, alguns dos quais podem ser consultados no seu blogue que atingiu 1.580.995 visitantes desde Abril de 2006. Mais ainda, é caso raro em Moçambique encontrar uma pessoa da sua idade, ainda mais professor, a utilizar e inovar nas tecnologias de informação e comunicação para interagir com os seus alunos. Dizem algumas pessoas que lhe são próximas, que ele paga essas tecnologias do próprio bolso. Esta filantropia é extensiva ao Governo, na medida em que o Professor elabora questionários sobre diversos assuntos de actualidade que servem de estudos e vereda a seguir. Um blogue assim, com estas características multidisciplinares, só pode ser uma academia de ciências. Se ele é Kilimanjaro em pessoa, então a sua grandeza não se resume a estas poucas palavras, que mais não são do que cólicas para um reconhecimento maior que o país certamente o fará, pois Carlos Serra “é um intelectual de rara sensibilidade penetrativa em assuntos de difícil descortinagem. É uma das raras maravilhas académicas de Moçambique.”
3. Fernando Gil
Já não me lembro em que ano foi, um famoso gestor das alfândegas pediu que fosse ao seu gabinete de trabalho. Chegado ao seu gabinete pediu-me que o indicasse um blogue onde a opinião e os comentários são livres, sem formalidade e sem censura, discreto e que fosse um repositório de informação. Não tive dúvida, indiquei o blogue “Moçambique para Todos” do senhor Fernando Gil. É um blogue independente em que Moçambique é realmente para todos, embora, na minha opinião, haja dois pontos que mereçam sua especial atenção, disse. O primeiro: não há nenhum sistema informático discreto de tal forma, que não se possa conhecer a localização e os dados do computador do utilizador; segundo: por ser livre, alguns bloguistas salafrários emitem comentários injuriosos que mancham o brio do próprio blogue. Não sei se alguma vez “Moçambique para Todos” ganhou algum prémio (cá por mim, estas coisas de prémio virou moda e não passa de uma selecção natural, uma espécie de darwinismo que condeno em absoluto), a verdade é que tem sido uma referência incontornável e até mesmo uma receita para quem quer estar informado. O seu maior prémio é a gratificação que o autor encontra em trabalhos científicos (teses, monografias, ensaios, papers, etc.), das pessoas que fazem referência ao blogue. O fluxo de visitantes de diferentes quadrantes do mundo revela quão importante é este espaço na informação do povo, pois é dos poucos que realmente informa sem desinformar. Mas vamos aos números, que não deixam de ser históricos: 8940016 desde Abril de 2004, num total de 29158 posts, 42382 comentários e 3912 newsletter diária (dados fornecidos pelo autor). E tem mais: Fernando Gil é o ponto de encontro entre as pessoas, o elo de ligação entre “perdido e achados” e a voz dos que não a tem num sistema em que a imprensa é cada vez mais mutilada. Em 2013, Fernando Gil esteve na vanguarda dos direitos humanos, denunciando atrocidades das forças de defesa e segurança do Estado e da Renamo; defendeu e promoveu o turismo nacional, especialmente o da Ilha de Moçambique. O “Moçambique para Todos” consolidou, no mesmo ano, mais uma vez o seu estatuto de espaço de debate para todos, uma espécie de Parlamento sem bancadas.
4. Daviz Simango
Tenho ainda mais um caso a registar no campo das compensações. Equiparo o Engenheiro Daviz Simango à figura de Nelson Mandela. Alguns podem achar isto absurdo, visto que Mandela ficou 27 anos na cadeia, ao contrário de Simango, que ao que se sabe, nunca foi preso. Depois de solto, Nelson Mandela conviveu até à sua morte com todos aqueles que o prenderam e acusaram de terroristas. Daviz Simango, talvez por respeito aos ensinamentos de Deus, nunca virou a cara para aqueles que supostamente mandaram encarcerar e matar os seus pais, pelo contrário, dedica-lhes respeito e consideração. A sua forma de fazer política é por si só um acto de fé e de perdão, pois nunca usou a morte dos pais como uma agenda política para ganhar votos ou granjear simpatias das pessoas. É um político humilde que, quando atacado, não riposta, dá a outra face. Muitas vezes questionei a sua tranquilidade, igual a de um cordeiro no corredor da morte; julguei que atingindo a presidência do município da Beira enveredasse pela “caça às bruxas.” Não é isto que tem acontecido, tem se revelado um político conciliador, que o povo admira e venera. Em 2013 houve as quartas eleições autárquicas, o seu partido, MDM, venceu as principais autarquias do país, à excepção da cidade da Matola e Maputo, quando muitos apregoavam o contrário, e soube reconhecer a derrota onde realmente o partido perdeu. Com a sua inteligência e liderança, o MDM acabou com a bipolarização do Parlamento e reduziu a ideia paternalista do Estado. Não recorreu às AKM ou bazucas, muito menos aos discursos belicistas para “domar” os corações dos moçambicanos. Fê-lo com arte e perícia de um pescador profissional.
5. Mister Nhúngue
Não é novidade para ninguém que Tete é terra de carvão e, acima de tudo, de gente humilde, trabalhadora e hospitaleira, mas há muito que mostrava uma estiagem na arena musical, mormente a nível nacional e internacional. Não quero com isto dizer que não haja talentos musicais em Tete, pelo contrário, existe às carradas, o problema é que faltava patrocinadores para divulgar e promover esses talentos. Os consagrados músicos da terra da maçanica e do embondeiro, tais como Chandú Lacá, Paulo Miguel Torres Caliano (Kaliza) e irmãos, Carlos Bernardo Chongo (sem nenhuma relação de parentesco com o saudoso músico Carlos Chongo), entre outros, não tendo entrado em “andropausa” musical, abrandaram o ritmo, por razões várias, entre as quais, o vírus da pirataria, a falta de patrocínio e de estúdio, a exclusão nos espectáculos e eventos, a proliferação de aselhas na arte musical, etc. Eis, então, que surge um nome, o de Mister Nhúngue, de seu nome verdadeiro Rashid Dini Mahomed. Embora enfrentando os mesmos problemas, Mister Nhúngue procura, como o rio Zambeze esquivando-se dos obstáculos, dinamizar a cultura daquela que também é conhecida como a terra de Chicoa. Acarinhado e apadrinhado pelo conceituado músico beirense Jorge Mamade, este músico tetense lançou este ano algumas elucubrações musicais, com enfoque para as músicas “cale cale acasy akhabvala”, cuja acepção é “antigamente as mulheres sabiam vestir-se” e “acasy”, que significa “mulher (es)”. Na primeira trata-se de uma crítica a indumentária das mulheres que se vestem de forma indecente; na segunda, o autor insurge-se contra os homens que fornicam com mulheres de outrem e avisa “a lagartixa perdeu o rabo e a cabeça quando voltava de mais uma investida extraconjugal”. Mister Nhúngue tornou-se uma referência incontornável no panorama musical da província de Tete, de tal maneira que a população local afirma “não há festa sem Mister Nhúngue”. Isto faz-me lembrar os míticos John Chibadura, Leonard Dembo, Thaz, Eduardo Carimo, Zaida Chongo, Madala, etc.
6. Robert Mugabe
Esta crónica já vai longa. Não posso terminar sem antes reconhecer – o que aliás faço com grande prazer, o papel do Presidente Robert Mugabe na resistência contra o domínio estrangeiro. Até Hitler, aquele que o mundo ocidental diaboliza, tem sido poupado em relação ao presidente Mugabe. Na cruzada contra Mugabe, tudo fizeram, entre sanções e embargos, até mesmo à criação de um fantoche político, para o emporcalhar e mais tarde, através de uma agitação popular, forçar a sua retirada do poder. O tiro saiu-lhes pela culatra. Mugabe resistiu juntamente com o seu povo às adversidades que o país enfrentou e inverteu o quadro mau do país. Os seus detractores estão enfermos e arrependidos por terem servido “Caim”. A paz e o bem-estar político, económico e social estão a regressar ao Zimbabwe. O Presidente Robert Mugabe é a minha figura do ano porque, entre outras façanhas, venceu, juntamente com a Zanu-PF, as eleições gerais de Junho de 2013, e deu uma lição ao mundo: a divisa de qualquer homem é a sua cara e a sua honra, essas, nenhum biberon nacional e/ou estrangeiro pode comprar, seja qual for o adoçante nele introduzido, porque Zimbabwe é dos e para os zimbabweanos.
Ndatenda (Obrigado).
O AUTARCA – 31.12.2013
NOTA:
Caro Gento Roque Chaleca
Antes de mais é uma honra que o MOÇAMBIQUE PARA TODOS seja colocado entre os personagens aqui destacadas por si. Não por falsa humildade. Apenas por amor a Moçambique.
Quanto a prémios, nunca se inscreveu em nenhum concurso, mas tem-nos em palavras e números dos amigos que o frequentam. É quanto basta!
Um abraço e, se possível, o melhor 2014 para todos!
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE