OS fundamentos da descentralização em Moçambique datam dos tempos da luta de libertação nacional, sobretudo com a realização do II Congresso da Frelimo, segundo revelou, sexta-feira, em Maputo, o Professor José Óscar Monteiro, primeiro ministro da Administração Estatal no país.
O II Congresso da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) foi realizado em Madgedge, província do Niassa, em 1968.
Numa dissertação sobre o enquadramento histórico do processo de descentralização em Moçambique, José Óscar Monteiro afirmou que a descentralização do poder tem como condição essencial a pureza dos políticos. Segundo o académico, muitas vezes se receia descentralizar por desconfiança.
Disse que o II Congresso da Frelimo aprovou uma resolução sobre formas de administração das zonas libertadas e o carácter popular da luta armada de libertação nacional. Naquelas zonas, segundo o orador, os assuntos que constituíam preocupação do povo eram discutidos pelos comités populares.
Para José Óscar Monteiro, as comunidades são as autarquias originais. Conquistada a independência nacional, em 1975, disse, os dirigentes da Frelimo viram-se confrontados com os problemas de gestão do Estado. Referiu-se aos acordos de Lusaka, assinados a 7 de Setembro de 1974, afirmando que uma das suas cláusulas dizia que a administração geral do território era da competência do Governo de Transição.
Alcançada a independência nacional, uma das tarefas fundamentais era assegurar a defesa das fronteiras do país contra uma eventual agressão (provavelmente por parte do regime do “apartheid” na África do Sul, já que naquele ano os sul-africanos já haviam invadido Angola) e organizar os cidadãos para enfrentar os desafios resultantes dessa independência.
Aludiu ao discurso proferido, na altura, pelo falecido Presidente Samora Machel, intitulado “unidade, trabalho e vigilância”, que fazia referência à responsabilidade que o Governo de Transição tinha no que diz respeito à extensão do poder democrático até às zonas onde este não existia. Surgiram como consequência desta necessidade os grupos dinamizadores, facto que, segundo José Óscar Monteiro, permitiu a emergência de novas lideranças, novos factores e até contradições.
Foram instituídas as assembleias populares e era necessário legitimar a presença do Estado em todo o território nacional, com aposta em áreas como a Educação, Saúde e a Defesa. Segundo José Óscar Monteiro, os actuais conselhos consultivos distritais possuem um carácter eminentemente deliberativo sobre o Fundo de Desenvolvimento Distrital, poder que as assembleias populares não tinham, em termos de decisão sobre dinheiro.
Enquanto se apregoava, a nível de discurso, a realização das assembleias populares, como forma de descentralização do poder e fóruns de participação e decisão, paradoxalmente o orçamento do Estado era cada vez mais centralizado. Para José Óscar Monteiro, afirmar que as assembleias populares detinham poder e competências sem meios financeiros é o mesmo que dizer que elas não podiam realizar nada, não podiam funcionar.
Explicou que a falta de recursos financeiros, situação com que o Estado foi confrontado desde logo com a independência nacional, levou à centralização do orçamento. Na óptica de José Óscar Monteiro, a verdadeira descentralização é uma questão financeira. Enquanto tudo depender do orçamento central, afirmou, a descentralização não terá sucesso.
Defendeu a necessidade de se combinar a descentralização e a desconcentração.
DESCENTRALIZAÇÃO: POLÍTICA E ESTRATÉGIA
O GOVERNO aprovou, em Setembro de 2012, a Política e Estratégia de Descentralização. Ela funda-se nas tradições e na prática de democracia de base que tem caracterizado o processo de edificação do Estado moçambicano.
A Constituição de 1990 abriu espaço ao sistema multipartidário e à possibilidade de uma maior participação dos cidadãos na eleição dos seus representantes. A emenda constitucional de 1996 introduziu uma revisão pontual à lei fundamental do país, consagrando as autarquias locais como pessoas colectivas públicas, dotadas de órgãos representativos próprios.
A Política e Estratégia de Descentralização (PED) explicita integra e orienta de forma mais sistematizada as várias acções no domínio da descentralização no país. Neste processo, o talento, a capacidade, o sentido de responsabilidade dos cidadãos são a força motriz da solução dos seus problemas, segundo explicou Cândida Moiane, directora de planificação e desenvolvimento institucional no Ministério da Administração Estatal.
Ao Estado competem as funções de soberania, a criação do quadro de estabilidade indispensável, a garantia da unidade nacional. Contudo, a participação não se esgota nessas funções principais. A mais consequente participação dos cidadãos é quando estes tomam conta dos assuntos de interesse da sua comunidade.
A criação das autarquias locais tem como objectivo último o bem-estar e a melhoria da renda e da qualidade de vida do cidadão, o que é possível através do desenvolvimento económico local. A prestação de melhores serviços em cada comunidade depende dos recursos gerados nas próprias comunidades. O desenvolvimento dos serviços urbanos está em relação directa com o aumento de receitas autárquicas, pelo que a maior atenção deve ser dada a área do desenvolvimento local nas autarquias.
No que concerne à desconcentração, o ponto de partida é o reconhecimento de que existe uma cultura de organização vertical enraizada no Estado. Num determinado período histórico, os órgãos centrais consideraram sua missão operar directamente no território.
Essa intervenção directa permite obter resultados sectoriais mas em contrapartida não permite um desenvolvimento equilibrado. A sua réplica, ao nível local, cria dificuldades de coordenação. Enquanto a governação integrada parte de uma visão holística (global) de cada território onde o bem-estar das populações é uno para as resolver de forma coordenada e com economia de esforços.
O saneamento do meio, educação, desenvolvimento, manutenção da ordem e segurança públicas, gestão das calamidades não são acções separadas ao nível local. A sua organização por sectores ao nível central responde a uma indispensável exigência de especialização.
O princípio da organização e funcionamento a seguir é constituir estruturas integradas de modo a garantir a celeridade e adequação das decisões às realidades locais, tendo em consideração as necessidades, potencialidades e capacidades existentes para o desenvolvimento local. A liderança a todos os níveis deve desenvolver, assumir e colocar em prática o conceito de descentralização.
Com efeito, uma tutela activa e efectiva, confiante e pautada pela legalidade garantem a confiança necessária para a extensão permanente do processo.
Todo o processo deve ser desenvolvido de forma previsível e planeada, sem descontinuidades. O processo de descentralização afecta todos os sectores com excepção dos órgãos de soberania. Implica alterações institucionais em muitos sectores. A direcção deve ser assegurada pelo sector que superintende na administração local, cujos mecanismos institucionais devem visar o apoio multissectorial consistente e coordenado.
O processo de descentralização parte do reconhecimento das capacidades e iniciativas dos cidadãos, individualmente e organizados nas suas instituições, para um efectivo combate à pobreza através do desenvolvimento económico e uma eficiente prestação de serviços públicos. As iniciativas e capacidades são apoiadas e desenvolvidas pelas instituições públicas mais próximas dos cidadãos que recebem poderes e meios crescentes do Estado para apoiar essas iniciativas e desenvolver as capacidades.
Em Moçambique, a descentralização é feita através de autarquias locais, órgãos locais do Estado e instituições de participação e consulta comunitária.
De forma mais específica, a política de descentralização visa promover a participação dos cidadãos, comunidades e outros actores na governação local, melhorar o desempenho da administração local do Estado e da administração autárquica, através de mecanismos que conduzam à eficácia e eficiência na prestação de serviços e promover a convergência e interacção entre as diversas formas de descentralização, nomeadamente democrática, empoderamento das comunidades e desconcentração, como movimentos coordenados visando a promoção do desenvolvimento local e bem-estar das populações.
Visa ainda promover a capacitação contínua dos intervenientes no processo de descentralização, nomeadamente órgãos e instituições centrais e locais do Estado, autarquias, comunidades e cidadãos.
Constituem princípios operacionais da descentralização gradualismo na criação de novas autarquias locais e na transferência de mais funções e competências, à medida que forem criadas condições objectivas para o efeito. Onde necessário, outras categorias autárquicas, superiores ou inferiores à circunscrição do município ou da povoação poderão ser criados.
No que diz respeito às autarquias locais, no quadro da estratégia, pretende-se prosseguir com a transferência de competências para os municípios. Nesta perspectiva, o Estado continuará com o processo de transferência das competências para as autarquias locais em curso por sua iniciativa e por iniciativa dos municípios e assegurará a transferência dos respectivos recursos, bem como a criação das capacidades para o pleno exercício das novas atribuições pelos municípios.
O Estado promove as iniciativas de cooperação e colaboração inter-municipal e encoraja empreendimentos e iniciativas comuns dos municípios vizinhos na provisão de serviços públicos. Prevê a capacitação e o apoio aos municípios na identificação e arrecadação de receitas, mobilização de recursos, gestão e processos orçamentais, reforçar a capacidade de tutela inspectiva para garantir a legalidade da gestão financeira e patrimonial das autarquias locais, entre outras acções.
No âmbito do reconhecimento e empoderamento das comunidades locais, promover a troca de experiências, sistematizar e disseminar as boas práticas nas instituições de participação e consulta comunitária, desenvolver a mobilização e organização das comunidades para gestão e fornecimento total ou parcial do processo de provisão de serviços, promover a capacitação dos conselhos e iniciativas comunitárias que contribuem para o aumento de produção e melhoria das suas condições de vida, entre outras acções.
A estratégia contém ainda assuntos transversais, como inclusão da mulher no processo de planificação local e garantir a sua promoção em funções de direcção e chefia na administração pública local e inclusão nos planos estratégicos e operacionais dos órgãos locais das actividades de prevenção e combate ao HIV/SIDA.
APRIMORAR PROCESSO DE ATRIBUIÇÃO DO FDD
A CRIAÇÃO do Fundo de Desenvolvimento Distrital (FDD), vulgo 7 milhões, em 2006, enquadra-se no processo de descentralização. A esse respeito, a ministra da Administração Estatal, Carmelita Namashulua, disse que o processo de atribuição do Fundo de Desenvolvimento Distrital, vulgo 7 milhões, está em constante aprimoramento.
“Hoje há maior percepção e assumpção das comunidades de que aquele valor deve impulsionar o desenvolvimento local. Os conselhos consultivos locais já compreenderam qual é o objectivo e o alcance dos fundos descentralizados”, disse, acrescentando que há momentos em que são os próprios membros dos conselhos consultivos que definem quais são as áreas a investir para a obtenção de maiores lucros.
Os membros dos conselhos consultivos, segundo Carmelita Namashula, beneficiam de acções de formação e capacitação para que possam, não só definir as áreas, mas também os valores a atribuir e fazer a devida monitoria aos mutuários.
Namashula indicou que neste momento se está numa situação em que o nível de reembolsos melhorou bastante em relação ao primeiro ano de implementação dos “7 milhões”, mercê da capacitação dos membros dos conselhos consultivos locais.
Refira-se que na II Conferência Nacional sobre Descentralização foram também apresentados outros temas como transferência de competências e funções, experiência da governação local em África, quadro organizativo e institucional dos Órgãos Locais do Estado: desafios na implementação de estruturas, sistemas e processos, desenvolvimento de capacidades de recursos humanos, desafios da mobilização de receitas para as autarquias locais, potencial tributário autárquico de Moçambique, implicações do ordenamento territorial no desenvolvimento local e provisão e manutenção de infra-estruturas e equipamento.
Foram ainda apresentados casos de sucesso na implementação dos “sete milhões”, experiência de funcionamento dos comités locais de gestão de risco de calamidades, de boas práticas na implementação do fundo de estradas, na planificação, construção e manutenção de infra-estruturas dos órgãos Locais do Estado, de implementação de ordenamento territorial e experiências de contratação e capacitação de recursos humanos e capacitação dos membros dos órgãos de participação e consulta comunitária.
NOTÍCIAS – 16.12.2013