Se uma imagem vale mil palavras, é pela fotografia do moçambicano João Costa (“Funcho”) que se percebe o desencontro entre Nelson Mandela e Samora Machel: o sul-africano, sorridente, diante de uma moldura com o rosto de Samora.
O retrato, tirado na casa de Mandela em Maputo, é uma fotomontagem, assume o seu autor, perante a impossibilidade de ter o histórico líder do ANC “no mesmo plano” do olhar fechado de Machel, fixado, a preto e branco, por outro fotógrafo moçambicano, Kok Nam.
Samora Machel já tinha morrido quando Mandela foi libertado, em 1990, e, às vezes, é preciso uma “pequena ajuda”, como esta, para juntar dois homens que nunca se encontraram, apesar de se terem casado com a mesma mulher, e cuja vida teve consequências diferentes na região.
Para o primeiro embaixador de Moçambique na África do Sul, Mussagy Jeichande, Mandela não se assumiu como um líder global, nem sequer regional.
"Não, se a gente o compara com um Lula ou com um Chávez, que conseguiram fazer uma América Latina completamente diferente, o Nelson Mandela nunca o conseguiu. Todo o pensamento sobre a África Austral já o havia desde o tempo do (Julius) Nyerere, do (Kenneth) Kaunda e do Samora".
A SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) foi desenhada pelo (Agostinho) Neto, Kaunda, Nyerere e Samora", disse à Lusa o diplomata que abriu a legação moçambicana em Pretória, em 1994.
“Mandela foi muito mais ‘darling’ (querido) do mundo ocidental do que Samora, que estava mais preocupado com mudanças radicais para servir as massas do que em evitar conflitos com o capital”, considerou, por seu lado, o académico moçambicano Nuno Castel Branco, num comentário numa rede social.
“O grande contributo de Mandela para a África Austral foi a de criar esta esperança de uma sociedade multi-racial, que existe no seu país, mas também foi no seu tempo que se deu o conflito com os fazendeiros brancos no Zimbabué”, disse à Lusa o antropólogo moçambicano Victor Igreja, professor na Universidade de Queensland, Austrália.
Antes de ser preso, em 1963, Mandela apenas se tinha encontrado com um nacionalista moçambicano, Marcelino dos Santos, em Marrocos, e, quando foi libertado, o ANC tinha arrefecido as relações com o partido no poder em Moçambique.
“Depois da libertação de Nelson Mandela, Moçambique foi dos últimos países a serem visitados (pelo líder histórico), que fez aquele périplo pelo mundo fora", recordou Mussagy Jeichande.
Para o diplomata, que foi representante do secretário-geral da ONU em Angola, esta atitude foi uma retaliação pelos acordos de Inkomati, de 1984, entre o Governo marxista-leninista da Frelimo e o regime de ‘apartheid' da África do Sul, que levaram à expulsão de Moçambique de militantes do ANC.
"Acho que foi um pouco a ala radical do ANC a dizer: ‘Estes tipos assinaram o acordo do Inkomati e vamos pô-los no congelador'".
Victor Igreja considera que os 27 anos de cadeia de Mandela tiveram consequências na sua visão, “por vezes, fora de contexto”, da realidade.
“Já Presidente, em 1997, Mandela recebeu o ditador indonésio Suharto com todas as honras, para lhe vender helicópteros. Toda a gente sabia que ele era um criminoso, não só pelo que fez em Timor-Leste, mas no seu país”, disse.
Enquanto durou a invasão de Timor-Leste, Moçambique não teve relações diplomáticas com a Indonésia, e líderes timorenses, como Mari Alkatiri, foram apoiados no seu exílio em Maputo, numa política internacionalista do Governo de Machel.
Mussagy deu como outro exemplo de controvérsia o de uma reunião na então OUA (Organização de Unidade Africana, atual União Africana), já com Mandela livre mas ainda com um Governo da minoria branca na África do Sul.
"Ali, Mandela propõe o levantamento de sanções contra a África do Sul. E o (Robert) Mugabe diz-lhe. ‘Mas, Presidente Mandela, está a dizer que na próxima sessão da OUA quem vai representar a África do Sul vai ser o De Klerk?", recordou o diplomata moçambicano.
Mas, tudo isto, disse Mussagy, não tira valor e importância históricos ao lendário dirigente do ANC, casado com a viúva de Samora Machel e, frisou, “adorado” em Moçambique.
"O povo moçambicano tem uma grande adoração pelo Mandela: é um homem que esteve preso, não se aponta enriquecimento sem justa causa, nem histórias de corrupção. Não é pelo casamento com a Graça (Machel), mas sim pelo que ele representa".
Lusa – 06.12.2013