O Presidente da República, Armando Guebuza, apresentou na última quinta-feira o Informe Anual sobre o Estado Geral da Nação na Assembleia da República, numa altura em que os moçambicanos vivem momentos de tensão devido aos ataques armados que têm ocorrido na província de Sofala. No fim, o Chefe de Estado não soube dizer em que estágio é que o país se encontrava, tendo referido apenas que “Moçambique continua a caminhar decidida e imparavelmente para a prosperidade e o bem-estar”.
Na verdade, o Chefe de Estado não trouxe algo de novo no seu informe, dominado por questões que têm a ver com o diálogo entre o Governo e a Renamo, ataques armados e a redistribuição dos rendimentos provenientes da exploração dos recursos minerais. O documento apresentado por Armando Guebuza foi, no cômputo geral, triunfalista ao fazer uma radiografia dos feitos do Governo nas mais diversas vertentes e ao enaltecer as Presidências Abertas e Inclusivas, as cerimónias de homenagem aos heróis, entre outras realizações.
Um dos poucos aspectos negativos, senão o único, é a actual tensão político-militar, ignorando por completo os inúmeros escândalos com que foram “brindados” os moçambicanos, tais como o rombo no Tribunal Administrativo, o caso da compra dos barcos para a protecção costeira e pesca de atum, associada à empresa EMATUM, a aquisição da avioneta de luxo para transportar altas individualidades, a intolerância política, e as diversas situações de conflitos entre as comunidades, Governo e empresas multinacionais como, por exemplo, o projecto de exploração e produção do gás natural em Palma, Cabo Delgado, ProSavana, entre outros.
Esperava-se também do Chefe de Estado, relativamente aos megaprojectos, explicações que pudessem dissipar as dúvidas existentes à volta da contribuição destes em termos de impostos. Mas o que se ouviu foi um discurso repetitivo, que gravitou, como sempre, à volta de três palavras: paz, unidade nacional e auto-estima.
Raptos
Um dos pontos sobre os quais os moçambicanos esperavam que o Presidente da República se pronunciasse é o relacionado com a criminalidade, que tem ganhado contornos alarmantes nos últimos tempos, o que foi agravado com a escalada da onda de raptos, um fenómeno novo na nossa sociedade. Para Armando Guebuza, este tipo de crime traduz o cúmulo do desrespeito pela dignidade humana e viola os valores mais elementares de cidadania.
Entretanto, quando se referia às medidas tomadas pelo Governo com vista a estancar esta e outras modalidades de crimes, o Chefe de Estado invocou, como troféu, a detenção de suspeitos de envolvimento no seu cometimento, alguns dos quais condenados a penas pesadas.
Estas detenções, segundo explicou, surgem no contexto das estratégias de prevenção e combate que estão a ser implementadas em paralelo com o “reforço do controlo da aplicação das medidas disciplinares no seio das Forças de Defesa e Segurança com vista a detectar todos aqueles que possam cair nas malhas do aliciamento dos criminosos”. Num outro desenvolvimento, Guebuza referiu que a prevenção e eliminação dos raptos, em particular, dependem também do reforço da cooperação com instituições de combate ao crime e da administração da Justiça, pois (os raptos) têm uma dimensão transfronteiriça.
Porém, segundo o discurso, pode-se depreender que para o Presidente da República o combate e a prevenção deste tipo de crimes não passam pela melhoria do salário e das condições de trabalho dos agentes da Polícia da República de Moçambique. É que, no que se refere às medidas que têm sido tomadas para estancar este mal, o Chefe de Estado mencionou apenas a realização de cursos de formação, a reabilitação de infra-estruturas e o agravamento de penas de prisão.
“Com efeito, continuamos a realizar cursos de formação de nível básico que visam dar resposta à necessidade de incremento dos efectivos; prosseguimos com a formação para a especialização nos diferentes domínios do saber policial; diversificámos as intervenções no domínio da reciclagem no que respeita a matérias ligadas ao comando, gestão e liderança; procedemos à revisão curricular do curso de licenciatura em Ciências Policiais. (...). No domínio das infra-estruturas e equipamentos de apoio logístico, necessários para a realização da nossa missão no âmbito do reforço da Ordem, Segurança e Tranquilidade Públicas, continuamos a privilegiar a construção, reabilitação e apetrechamento das unidades policiais em todo o nosso Moçambique”, disse.
“Dialogar não é impor exigências”
Referindo-se ao diálogo que o Governo tem estado a manter com a Renamo há mais de um ano e que ainda não produziu resultados, Armando Guebuza considerou que o impasse que se verifica resulta do facto de a Renamo pretender transformá-lo num processo de imposição de exigências, o que o Executivo não vai aceitar, apesar de reconhecer que há necessidade de continuar a diversificar e a alargar todas as formas de conversação com vista à manutenção de uma nação sólida, unida e em paz.
Para sustentar as suas palavras, segundo as quais a Renamo confunde diálogo com imposição de exigências, o Chefe de Estado invocou o facto de o Governo ter aceitado e integrado, no princípio, muitas pré-condições que, na sua opinião, são inadmissíveis.
“O diálogo entre o Governo e a Renamo foi precedido de uma série de pré-condições inadmissíveis solicitadas por aquele partido, que incluíam a limitação da circulação das forças de Defesa e Segurança em algumas áreas do território nacional e a proposta de intromissão do Governo em assuntos que não eram da sua alçada, dada a separação de poderes que caracteriza o Estado de Direito Democrático em Moçambique. Mesmo assim, as condições foram alvo de discussão no Governo e na Assembleia da República e, apesar de muitas dificuldades, fomos integrando algumas dessas exigências”, explicou Guebuza.
“A primeira condição apresentada ao Governo tinha a ver com a necessidade de o diálogo decorrer em lugar neutro, mas quando o encontro se efectivou (no Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano) este partido prosseguiu com a sua postura, ensaiando outras pré-condições destinadas a atrasar o processo de diálogo que ele mesmo solicitou”.
O Presidente da República acrescentou que, por exemplo, “das 16 alíneas apresentadas pela Renamo para um acordo político o Governo não aceitou apenas três. Todas as reuniões eram alvo de actas assinadas pelas partes, mas a partir de um determinado momento deixaram de ser assinadas pela Renamo. O Governo não fechou a porta à discussão das três alíneas que rejeitou e nunca deixou de comparecer às reuniões marcadas para o Centro de Conferências Joaquim Chissano, demonstrando assim a sua vontade de continuar a dialogar com a Renamo. Porém, o diálogo não se pode transformar num processo de aceitação de exigências. Ele deve obedecer à Constituição”. Paridade (exigida pela Renamo) ignora o multipartidarismo.
Refira-se que a Renamo exige que o Governe aceite e adopte a paridade na composição dos órgãos eleitorais, nomeadamente a Comissão Nacional de Eleições e o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral. Referindo-se à paridade, Guebuza considera que a mesma “ignora por completo o facto de que nestes mais de 21 anos de paz a democracia multi- partidária moçambicana fez emergir vários partidos políticos, uma Magistratura Judicial, um Ministério Público credíveis e organizações da sociedade civil muito prestigiadas”.
Na sua opinião, é inconcebível que os órgãos eleitorais sejam constituídos com base na paridade uma vez que a Frelimo e a Renamo não são os únicos partidos no país. Existem vários (mais de 50) e não é possível integrá-los todos nestas instituições. “A sugestão de que todos os partidos devem ir em igualdade de circunstância às eleições significa que, no cumprimento deste conceito de “paridade”, se tivermos cinco dezenas de partidos políticos em Moçambique, todos eles devem estar representados nos órgãos eleitorais”.
“Não se vislumbra aqui uma Comissão Nacional de Eleições com meia centena de partidos a decidir sobre matérias que precisam de tanta serenidade e concentração. Em contrapartida, e segundo recomendação dos Observadores Eleitorais nacionais e estrangeiros, temos defendido a constituição de uma CNE profissionalizada. (...) Todavia, tivemos que abrir espaço para acomodar parte da insistência deste partido com assento parlamentar. Por isso, acabámos por ter uma Comissão Nacional de Eleições híbrida, com a participação dos partidos políticos, da sociedade civil e de profissionais da nossa magistratura”.
Com esta posição do Chefe de Estado, torna-se mais remota a possibilidade de a exigência da Renamo ser acolhida, o que significa que a composição da CNE e do STAE continuará a ser por proporcionalidade.
“O princípio da proporcionalidade para a constituição dos Órgãos do Estado, que integram cidadãos eleitos pela Assembleia da República, está previsto na Constituição da República. Isto reflecte-se, por exemplo, em órgãos como o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, o Conselho Superior da Comunicação Social, a Comissão Permanente da Assembleia da República e as comissões de trabalho deste órgão do Poder Legislativo, bem como a composição das suas delegações ao exterior”.
Observadores internacionais não são necessários no diálogo
Reagindo à proposta da Renamo que vê a inclusão de facilitadores nacionais e observadores internacionais no diálogo para se ultrapassar o impasse que se verifica, Guebuza considerou que estes últimos não são necessários pois o Governo é pela concórdia nacional, daí que já havia aceitado a presença do académico Lourenço do Rosário e do bispo Dom Dinis Sengulane.
“Apesar de todos os pontos da agenda terem sido pro- postos por este partido, a forma como se tem portado na mesa do diálogo, a imposição de novas pré-condições e a forma imprevisível como age, indicam que talvez o senti- do de urgência que norteou o seu pedido de audiência ao Governo tinha outros objectivos, ainda por desvendar. (...). Começámos a registar, infelizmente, a obstrução do diálogo, com a alegação de que havia falta de acor- do, mesmo com as garantias do Governo de que as três alíneas em que permanecem os desacordos não seriam abandonadas, mas tão-somente congeladas para serem revisitadas posteriormente”.
“Esta obstrução ganha uma nova dimensão com a exi- gência de mediadores internacionais. Esta exigência sur- ge quando, num claro testemunho do seu compromisso com a concórdia nacional e com a Paz, o Governo havia já aceite a presença de Observadores Nacionais na mesa de diálogo. O diálogo não se pode confundir com um monólogo. O diálogo não é uma imposição unilateral de vontades sobre governação. Isso é perigosamente anti-democrático para a nossa Pátria Amada”.
Forças de Defesa e Segurança estão (par)a impor a autoridade do Estado
Um outro ponto que mereceu destaque no informe do Presidente da República sobre o Estado da Nação é o re- lativo aos ataques que têm sido protagonizados pelos homens armados da Renamo nalguns distritos da província de Sofala, com destaque para o troço rio Save-Muxúnguè e na região de Vundúzi, que já resultaram na morte de militares e civis, para além de danos materiais.
A Renamo afirma que os ataques são em resposta ao Governo, que tem estado a movimentar militares e armamento para aquela região alegadamente com o objectivo de assassinar o seu líder, Afonso Dhlakama. Entretanto, Armando Guebuza confirmou as alegações da Renamo (sobre a movimentação de militares e equi- pamento bélico) e diz que tal visa repor a segurança naquela região e que o Estado foi obrigado pela “Perdiz” a impor a sua autoridade.
“Enquanto decorria o diálogo entre o Governo e a Renamo passámos a testemunhar, de forma preocupante, desde Abril, à escalada da violência armada contra pessoas e bens, ao longo da Estrada Nacional Número Um, no troço entre o Rio Save e Muxúnguè e na região de Vundúzi, protagonizada pela mesma Renamo. Estes ataques eram direccionados a viaturas civis, centros de saúde, esquadras da Polícia da República de Moçambique e a posições das Forças de Defesa e Segurança.
Perante este cenário, segundo o chefe do Estado, e com o objectivo de garantir a livre e segura circulação de pessoas e bens naquela região, “o Governo decidiu aumentar a presença do número dos efectivos das Forças de Defesa e Segurança que, cerca de seis meses depois, portanto, em Outubro, enveredaram pela via do restabelecimento da Lei, Ordem e Segurança Públicas, tomando o controlo de Sathundjira e Marínguè, que, contrariamente à errónea mensagem de serem locais de paz e de pacata vida civil, eram os pontos a partir dos quais a Renamo organizava as suas investidas.
Aliás, o próprio senhor Afonso Dhlakama mostrou aos moçambicanos e ao mundo, no dia 17 de Outubro passado, uma parada de homens e mulheres a quem incutia o contra-valor de armar as mentes e os braços”. No fim, o chefe do Estado disse ainda estar disponível para um encontro com o líder da Renamo no qual possam discutir as diferenças que estão por detrás da actual crise político-militar.
“Queremos, aqui, reafirmar a nossa incondicional predisposição de nos encontrarmos com o senhor Afonso Dhlakama para o diálogo. Nós, e repetimos, não queremos a guerra em Moçambique. A guerra deve ser assunto de ficção científica, de videogames e de produções literárias e cinematográficas. Por isso, tudo continuaremos a fazer para, através do diálogo, persistirmos no caminho da consolidação da Paz em Moçambique”.
“Acordo Geral de Paz é público”
Esporadicamente, a Renamo tem-se queixado do alegado incumprimento de alguns pontos do Acordo Geral de Paz, assinado a 4 de Outubro de 1994 em Roma, Itália, e que pôs termo a 16 anos de conflito armado, tais como a integração dos seus homens nas fileiras das Forças Armadas de Defesa de Moçambique e da Polícia da República de Moçambique.
Porém, para Armando Guebuza esta acusação não procede pois “o Acordo Geral de Paz foi aprovado, por consenso, pelos deputados através da Lei no 13/92, de 14 de Outubro, passando a integrar a nossa ordem jurídica. Neste contexto, não há nada que foi acordado em Roma, cujo texto vigorou até à entrada em funções do Governo saído das primeiras eleições multipartidárias de 1994, que tenha ficado de fora da nossa Lei-Mãe.
Não há nada sobre o Acordo Geral de Paz, assinado em Roma, que não seja público e acessível a qualquer cidadão interessado”. Guebuza recordou ainda que o AGP está reflectido na actual Constituição da República, cujas revisões, subsequentes ao acordo “contaram com a participação de todos os partidos políticos, com assento parlamentar”.
Recursos minerais: Governo não vai colocar dinheiro no bolso do cidadão
Diversos sectores da sociedade têm criticado a distribuição dos (escassos) rendimentos provenientes da exploração dos recursos minerais de que o país dispõe por parte das empresas multinacionais. Segundo defendem, a mesma (distribuição) é feita de forma desigual. Em jeito de resposta, Armando Guebuza não disse algo de novo, tendo-se limitado a repetir o que os seus ministros têm dito, ou seja, que “redistribuir os benefícios da exploração dos recursos minerais não é colocar dinheiro no bolso dos cidadãos”.
“A redistribuição dos rendimentos acontece quando as empresas pagam salários, cumprem com as suas responsabilidades fiscais ou fazem acções de responsabilidade social, o que tem permitido vários investimentos que beneficiam as comunidades. Os Sete Milhões e os 2,5 milhões que contam com a gestão colegial do Conselho Consultivo já têm um valor muito acima deste que passou a ser uma referência. (...) redistribuir não é colocar dinheiro no bolso do cidadão, mas sim aproximar os serviços públicos do cidadão e trabalhar para a inclusão económica e para a implantação de infra-estruturas públicas”.
Guebuza “faz as pazes” com as redes sociais
Num passado recente, o Presidente da República referiu-se às redes sociais como fábricas de sonhos inalcançáveis, quiçá irritado com o nível de debate que tem sido levantado nelas, (por vezes) críticos à sua governação.
Entretanto, no informe, Guebuza contradisse-se e afirmou que o Governo diversificou os mecanismos de diálogo com os diversos sectores da sociedade e que “esta forma horizontal de comunicar veio a ser enriquecida pela forma horizontal de debater assuntos em blogues, Facebook, Twitter”. E para não fugir à regra, o Chefe de Estado atribuiu esse feito (debate nas redes sociais) “às nossas políticas de redistribuição de rendimentos”, que têm permitido que “os nossos compatriotas adiram diariamente às redes sociais”.
Víctor Bulande
@VERDADE – 20.12.2013