CRÓNICA de: Jorge Ferrão
No Chinde, onde um dos braços do delta do Zambeze beija as ondas do Índico, ainda se contam relatos dramáticos de tragédia social. No limiar dos anos 70 Portugal vivia contradições decorrentes do avanço da luta de libertação nacional. Guerrilheiros intensificavam a frente de Manica-Sofala cruzando o rio Zambeze.
Na região de Mutmane, terras dos “Chindus” chefiados pelo chefe “Chinde”, contava-se que um cargueiro zarpando às pressas do Porto do Chinde encalhara com bidões de álcool a bordo. Os pescadores artesanais foram intimados a desembarcar a mercadoria. Só assim, o navio (re)flutuaria. Foram dias de azáfama e desespero. Canoas, bidões e pescadores se confundiam com o próprio mar.
O álcool, misterioso, seguia em direcção a África do Sul. Os propósitos eram, na altura, desconhecidos. A mercadoria chegou no cargueiro pela lanchacanhoeira “Chire” após ter sido descarregado no porto de São Tomé, em Marromeu. No porto do Chinde foi transbordado para aquele navio cujo nome o mar silenciou.
Desencalhado, o navio ainda ensaiou nova caminhada. Fez uns movimentos agonizantes e se afundou. A carga, baldeada para a praia de Kumangue, ali permaneceu ao longo de semanas. Com a Administração militar e civil despreocupada,a carga foi desaparecendo por debaixo dos palmares.
Naquelas noites de luar, os larápios desenhavam sombras que se confundiam com espíritos. Eram baldes de todos tamanhos que alimentariam outras cobiças. Chinde festejava na calada da noite. Noites que já não eram tão silenciosas. A “sura das palmeiras” e a “cabanga” tradicional de maxoeira haviam sido substituídas. As mulheres nas suas capulanas amarradas por “nhecas” e blusas também acompanhavam seus maridos na festança diabólica do raiar ao por do Sol. Não tardaram as primeiras vítimas.
As vítimas eram indígenas negros. Depois, pereceu um mecânico portuário mulato. Não tardou que tivesse morrido um colono. Pianista branco e único na vila. Ele sim, mexeu com a serenidade da administração.
Chinde perdia o ritmo e compasso nas celebrações. A vila descoloriu.
Num ápice se converteu em enfermaria anexa ao cemitério.
As suspeitas ganharam corpo.
Era álcool metílico. Destino era África do Sul do apartheid.
Retornaria a Moçambique confeccionado como bebida barata, para ser distribuída por regiões contíguas às da luta armada. Era o tudo por tudo da “psico-social”. As novas e subtis formas de destruturar o processo de libertação.
O encalhe do navio frustrou as intenções da inteligência militar.
Ainda assim o álcool metílico, por conta e risco, espalhou-se pelo vale do Zambeze. Milhares de bidões seguiram, na contracorrente, até Tete. Comerciantes sem escrúpulos enriqueceram. Este argumento ajudou a explicar tamanha cegueira no vale do Zambeze. A este álcool metílico se associava a aguardente de maçanica (maçã da Índia).
Eventualmente a aguardente de maçanica possuía certo teor de álcool metílico quando fermentada.
Certas frutas são susceptíveis a esta reacção química. Em Portugal existe um tipo de uva que só pode ser consumida como fruta e não como vinho pois, quando fermentada, ela produz álcool metílico.
O etanol, bem como o metanol, encontram-se no álcool. Ingeridos são transformados no fígado pela enzima desidrogenase. Porém, os metabolitos subsequentes do etanol são convertidos em água e dióxido de carbono. Portanto, não tóxicos.
Com os metabolitos do metanol essa degradação não ocorre na sua plenitude. Consequentemente uma percentagem não degradada se transforma em substância tóxica. A ingestão do metanol ou álcool metílico, ainda que em quantidades reduzidas, pode causar danos à retina e ao nervo óptico devido à toxicidade. Também pode matar.
Existe percepção generalizada de que o vale do Zambeze se confronta com casos anormais de cegueira.
Os estudos precisam de confirmar estas percepções. A toxidade da maçanica?! Só assim se explicariam as patologias oculares, suas origens e causas. Chinde das terras húmidas, de pôr-do-sol paradisíaco sobre as palhotas de macuti, não exportará mais bidões de álcool metílico. Esta terra abençoada e as suas gentes continuarão acolhendo com doçura os ventos da mudança.
WAMPHULA FAX - 10.01.2014