Por: Alfredo Manhiça
“O mais provável é que a maior insónia do presidente Guebuza seja aquela de não saber dizer se o seu maior «inimigo» é a Renamo ou é o MDM, ou é o Povo Moçambicano. Na verdade, nenhum destes é o seu principal inimigo. O seu principal inimigo é a sua visão errónea do poder político.”
“...um chefe de Estado que atribui a ele próprio a paternidade de todo o bem realizado no Estado que dirige, mostra claramente que a sua intensão é governar servos e não cidadãos; um presidente do partido que transforma o programa do partido em programa pessoal mostra que a sua intensão é ter empregados e não camaradas.”
É possível que o primeiro elemento a suscitar maravilha no presidente Armando Guebuza tenha sido o silêncio ou a «passividade» do povo moçambicano quando o partido no poder inaugurou o processo de substituição da soberania nacional pela soberania do partido.
Quando, sucessivamente, Guebuza ensaiou a substituição da soberania do partido pela soberania presidencial, tudo parecia que lhe estava andando bem nos primeiros momentos mas, depois, emergiu um conflito irreconciliável entre as três «soberanias»: a nacional (a legítima) contra as duas ilegítimas, e as duas últimas entre si.
Pelos vistos a colisão entre o interesse dos usurpadores (Guebuza e a Frelimo) e o interesse nacional está na sua fase crucial. Até há bem pouco tempo parecia que o único opositor do programa de sequestração do Estado pelo partido fosse só a Renamo e, por isso, todos os esforços, primeiro militares e depois diplomáticos e, de novo, militares, foram concentrados no combate a este obstáculo para, simultaneamente, eliminá-lo e reforçar a posição do presidente e do partido.
Quando o blitz de Sadjundjira (que devia ser completado pela purga dos elementos do partido de Afonso Dhlakama) falhou, os esforços foram concentrados nas eleições autárquicas. Além de continuarem a ser utilizadas como propaganda de baixo custo para garantir-se os favores da opinião pública internacional, dando imagem de um governo comprometido com a regularidade da realização das eleições, as autarquias de 2013 deviam também servir de «ensaio» para testar se o tradicional instrumento de controlo, manipulação, corrupção e repreensão estava ainda ou não em condições de assegurar a vitória nas eleições presidenciais de 2014. De facto, embora tivesse falhado a colocação de João Leopoldo da Costa para a presidência da CNE, tinha sido possível encontrar um outro «Cavalo de
Troia», Sheik Abdul Carimo Sau, disposto a tutelar os interesses do regime. Durante o período do recenseamento
(ou atualização), tinha sido possível alargar os números de potenciais eleitores nas autarquias consideradas de predominância do partido no governo e restringi-los nas autarquias suspeitas. E por fim, tinha sido também possível, como sempre foi, mobilizar a máquina estatal e administrativa para garantir a vitória da Frelimo, e os «watch dogs» (a PRM e a FIR) para reprimir qualquer protesto ou apoio à oposição.
Não obstante tudo isto, os resultados foram muito desfavoráveis para o presidente Guebuza e o seu programa de usurpação da soberania nacional. O «povo maravilhoso» dos 53 municípios que decidiu ir votar, foi para manifestar o seu «NÃO» à usurpação da soberania nacional.
Inclusive os membros e simpatizantes do partido Frelimo – que já perceberam que a usurpação da soberania pela parte do partido era apenas um passo preliminar para a usurpação por um só homem – também votaram a favor da mudança que tutela a soberania nacional. O «não» dos eleitores às intenções de Guebuza constitui também um «cartão amarelo» para o partido Frelimo: de facto, além das cidades de Beira, Quelimane e Nampula, onde o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) venceu com largas margens, em muitas outras autarquias como Angoche, Chimoio, Mocuba, Marromeu, Gurué, Maputo, tudo indica que a Frelimo ganhou, mas graças ao uso do instrumento da manipulação dos resultados, feito pela CNE/STAE, assistidos pela PRM e a FIR.
Na sua longa carreira política, as maravilhas operadas nestas últimas eleições, foram as mais desagradáveis para o presidente Guebuza.
De facto, em explícito gesto de cancelamento deste episódio na história da sua governação, Guebuza não o mencionou no seu discurso da Apresentação do Estado da Nação, proferido no dia 19 de Dezembro (de 2013), na Assembleia da República.
Para o «povo maravilhoso», as eleições autárquicas de 2013 foram uma manifestação explícita do repúdio da utilização da instituição eleitoral para legitimar o controlo absoluto do poder político-económico por parte duma minoria. Utilizando o mesmo instrumento, os moçambicanos não se contentavam só de votar contra, mas quiseram também controlar o que a CNE iria fazer dos seus votos.
Nisto os moçambicanos foram criativos. Em nenhuma parte dos Estados democráticos já se ouviu dizer que depois de votar os eleitores permanecem no local para controlar a contagem dos votos!
Quem sabe, os moçambicanos poderão exportar esta nova regra democrática para todos os países da África, onde quase sempre as eleições são manipuladas pelos grupos que detêm o poder.
Ora, tudo isto, acionou a ira que, para aplacá-la, o presidente da República «declarou» uma guerra total. Na sua guerra total todos são inimigos e por isso as frentes são muitas. A crónica questão da Renamo ganhou proporções cada vez mais difíceis de controlar. Na fase em que nos encontramos, mesmo o apoio militar dos zimbabweanos ou dos sul-africanos não serve. Nenhum destes dois exércitos vizinhos estaria disposto a correr atrás de cada 5 ou 10 homens armados da Renamo, cada vez que eles perturbassem a ordem pública nas aldeias ou nas estradas nacionais. Se se tratasse de uma operação massiva de um ou dois dias consecutivos, em pontos bem identificáveis, com certeza que se podia contar com o apoio deles. Mas na situação em que nos encontramos!!….
A manifesta ascensão do MDM revela a superação (sem resolver a crónica questão da Renamo) da visão bipolar com que, até há bem pouco tempo, se enfrentava o problema político moçambicano.
O mais provável é que a maior insónia do presidente Guebuza seja aquela de não saber dizer se o seu maior «inimigo» é a Renamo ou é o MDM, ou é o Povo Moçambicano. Na verdade, nenhum destes é o seu principal inimigo. O seu principal inimigo é a sua visão errónea do poder político.
Como era de esperar, depois dos acontecimentos de Sadjundjira, os custos de uma negociação com a Renamo aumentaram e, para não enfrentar tais custos, Guebuza prefere insistir na solução armada que, desta vez – além dos homens da Renamo que efetivamente retomaram as armas ou se organizam para reabrir as suas antigas bases militares – inclui também todo e qualquer cidadão associado ou associável à Renamo, particularmente os antigos guerrilheiros. Aliás, além das perseguições, prisões e assassinatos desta categoria de elementos da Renamo, numa situação de guerra total, não seria de surpreender-se se numa certa manhã acordasssemos com a notícia da prisão dos deputados do partido de Afonso Dhlakama na Assembleia da República.
A solução armada do diferendo com a Renamo, além de servir para evitar os custos da negociação, tem a vantagem de prometer dois resultados alternativos: ou a eliminação definitiva da «mãe do muchém» (Dhlakama) e do «muchém
» (a Renamo) – o que poderia reforçar o autoritarismo do regime –, ou impedir a realização das eleições e, nesse caso, evitar o duelo com a MDM, que constitui um perigo real. A segunda alternativa, como é evidente, permite a continuidade, sine data, da presidência de Armando Guebuza e alarga o tempo necessário para eliminar os adversários políticos considerados perigosos.
Para quem ainda duvidasse do caracter total da ofensiva do presidente moçambicano, poderá olhar para a composição dos pré-candidatos à sua sucessão. Julgando a partir das reações que continuam a ser manifestadas, desde a realização da reunião da Comissão Política (CP) que «elegeu» os três pré-candidatos, parece que nenhum deles goza da simpatia, nem da maioria dos membros do partido, nem dos simpatizantes do partido, nem do público em geral. Na hipótese que o regime de Guebuza venha a preferir o adiamento das eleições gerais, na tentativa de contornar a ameaça representada pela ascensão do MDM, então esta escolha é a melhor porque só um destes três estaria disposto a aceitar uma nomeação a uma candidatura que, depois, não deve ter o seu efeito. Só um destes três estaria disposto a ser o que Matias Guente chama de patos «patriotas», ou seja, sacrificar os interesses nacionais para servir os interesses pessoais de Guebuza.
Mas na hipótese em que as agendadas eleições, efetivamente se realizem, então, a escolha deve ser considerada um suicídio político. Esta é a opção que, como bem disse o Padre Filipe Couto, poderia provocar o levantamento de um grupo da Frelimo contra a Frelimo oficial e por baixo a ajudar a Renamo, ou frelimistas que apoiam o MDM.
A Força do Presidente Guebuza
Enquanto numa verdadeira democracia o Governo de turno sente-se na obrigação de satisfazer as espectativas dos eleitores para conquistar a sua simpatia e obter a reeleição, num sistema autocrático a preocupação do autocrata não é cumprir a promessa que fez ao eleitorado, mas sim satisfazer os interesses do «seleceitorado». O seleceitorado é – segundo Paul Collier – o grupo circunscrito de pessoas que constitui a base do poder autocrático. São os ditos «lambe-botas».
A rede do seleceitorado tem o poder real de perpetuar ou de destituir o autocrata. O autocrata vem destituído quando de dentro do circuito emerge um novo líder carismático e incontestável, capaz de manter o status quo dos membros influentes do seleceitorado.
Contrariamente, o autocrata será perpetuado sempre que continuar a recompensar generosamente o seleceitorado com avultados benefícios económicos e posições políticas, que estes poderão, por sua vez, redistribuir a membros de seus próprios circuitos.
O presidente Guebuza, sobretudo no seu segundo mandato, fundou o seu poder político – quer enquanto presidente do seu partido, quer enquanto chefe de Estado – no seleceitorado, que actua como um partido dentro do partido e um «governo» dentro do Governo. O maior prejuízo que este modo de fazer politica causa ao país é a ascensão aos cargos públicos, de todos os níveis, de pessoas desonestas. Não é por acaso que alguns séniores do partido Frelimo, como o Padre Couto, lamentam-se dizendo que agora «o partido trabalha através do cartão e no cartão infiltrou-se gente que não está interessada no povo». Esses que não estão interessados no povo, não se importariam também de votar como eles para o CC ou a CP, desde que tal comportamento possa trazer-lhes benefícios.
A outra força de Guebuza e da Frelimo vem do silêncio cúmplice dos sectores mais importantes da comunidade internacional. A longa governação do partido Frelimo e a sua deliberada partidarização do Estado fizeram com que muitos acordos de cooperação e de investimento tivessem como garante, não o Estado moçambicano enquanto tal, mas o Estado enquanto guiado pela Frelimo e, em certos casos, a garantir os acordos é a pessoa em si do presidente. A comunidade internacional que podia fazer uma certa pressão política sobre a Frelimo para melhorar a sua governação é a mesma que precisa do Guebuza e da Frelimo para tutelar os seus interesses. De facto, a porta-voz da Alta Representante da União Europeia, Catherine Ashton, que só hoje aparece a apelar ao não uso da violência para fins políticos, durante as eleições autárquicas de 2013, assistiu passivamente e silenciosamente ao uso massivo de violência para impedir a sagrada realização da vontade dos eleitores, como manda a doutrina democrática. A única explicação do seu silêncio é que os investimentos dos países que ela representa estão garantidos pela Frelimo e não pelo Estado moçambicano.
A chave da interpretação da imagem do presidente moçambicano que vem ilustrada nesta análise é confirmada pela loucura da marcha pró-Guebuza, realizada no Sábado, dia 18. Até a noite do dia 17 estive convencido que, no seu bom senso, o Senhor presidente iria mandar cancelar aquele ridículo espetáculo que só iria piorar a sua imagem já manchada. Para minha surpresa, a marcha realizou-se e, como era de esperar, foi um fiasco. Sem querer, Guebuza confirmou as acusações que sobre ele pesam: um chefe de Estado que atribui a ele próprio a paternidade de todo o bem realizado no Estado que dirige, mostra claramente que a sua intensão é governar servos e não cidadãos; um presidente do partido que transforma o programa do partido em programa pessoal mostra que a sua intensão é ter empregados e não camaradas.
A marcha pró-Guebuza foi politicamente um passo em falso porque fez do presidente prisioneiro do “seleceitorado”.
Moralmente, o presidente ficou devedor dos artífices da marcha. Embora o evento tenha danificado ainda mais a imagem do presidente na opinião pública, os organizadores ficaram credores do chefe de Estado porque mostraram coragem e solidarizaram-se com ele no momento em que era vítima de críticas vindas de todas as partes. A marcha foi inoportuna também porque radicalizou as divisões internas: quem por bom senso não esteve presente na «marcha da vergonha» passou automaticamente a ser considerado opositor do presidente.
A marcha foi, todavia, uma oportunidade para a população de Maputo e seus arredores confirmar, com a sua não aderência, que tinha jurado que «nenhum tirano nos irá escravizar». Não é por acaso que Hermenegildo Infante recorreu ao sector público e aos Distritos dos arredores de Maputo para recrutar os aderentes à marcha. Infelizmente, através da partidarização do sector público, o partido Frelimo continua a condicionar a liberdade política dos funcionários, fazendo uso sistemático do instrumento de coerção, chantagem e intimidação.
Canal de Moçambique– 22.01.2014