Por: João Cabrita
Um fenómeno interessante que se repete, ou melhor, que surge naturalmente no seio de minorias que ascendem ao poder pelo cano das armas: acreditam por convicção que o poder lhes pertence, que é delas, seu, para sempre. Minorias que depois se reproduzem e atingem o estágio de dinastia.
Dinastia que aposta e joga forte na eternização do poder.
Quem não se recorda do muito nosso,”ou eles, ou nós”?
Do poder estabelecido em 1975 nasceu uma elite. Necessariamente proporcional à riqueza nacional e à tradicional pequenez (não territorial, obviamente, mas individual– espiritual) e que é, portanto, diferente da chinesa, da angolana ou sul-africana. Diz-se que na era Machel tudo era diferente – os “primeiros nos sacrifícios, os últimos nos benefícios”.
Mas ele começou por representar uma autoproclamada elite, a “dos melhores filhos do povo”, que usufruía de privilégios que não estavam ao alcance da maioria; privilégios que entravam em choque com a imagem que a elite detentora do poder projectava de si própria: as “clínicas dos responsáveis”, “lojas dos responsáveis”, “lojas para membros do Comité Central e de outros “responsáveis”, os supermercados (FNAC) ocultos transaccionando só em moeda convertível para a elite e para os “cooperantes” da elite, as famílias da elite que não acordavam de madrugada para ir para a bicha à porta da padaria, famílias que não dispunham de cartão de racionamento (NSA – Novo Sistema de Abastecimento) e para quem nada estava racionado.
Mas esta elite que nos entra em casa em 1975 não é depredadora, não é corrupta e nem vive com a mão estacionada à porta dos cofres do Estado. A elite moçambicana não começa assim.
A elite detentora do poder começou por acreditar piamente, por índole supostamente revolucionária, que ela era o Estado.
É deste de onde ela vai extrair os meios para executar o seu programa político e de “reconstrução nacional” (um cliché apenas, importado, para ornamentar o “processo revolucionário” pois nem sequer pontes ou prédios necessitavam de ser reerguidos depois da guerra de libertação nacional).
Não é um Estado elitista, mas antes um Estado da elite. É o Estado que lhe dá casa, carro, gasolina, e a educação dos filhos. São também os partidos “irmãos”, os países “amigos” e as comunidades aliadas que dão e oferecem bens de consumo ao partido da elite. Daniel Ortega envia mobílias de verga nicaraguenses, a comunidade Reggio Emilia sapatos italianos às carradas para calçar toda a camaradagem, os camaradas do PCUS caviar e outras especiarias.
A solidariedade internacionalista.
À elite nada falta. Não têm a noção exacta do que é o dinheiro.
O dinheiro nada lhe diz. É um símbolo do capitalismo, da exploração do homem pelo homem, não tem significado imediato ou futuro pois é o Estado que vai tomar conta da poupança para a reforma e a velhice.
É este o esquema no topo e que filtra-se pelas periferias do topo: os membros do Comité
Central, os ministros, os directores nacionais, os comandantes das FDS (Forças de Defesa e Segurança), as dirigentes das ODM (Organizações Democráticas de Massas), mas que depois vai-se diluindo nos escalões imediatos até à base. E é aqui que os “casos pontuais” de corrupção, de depredação, da fateixa larápia vão ocorrendo; mais por necessidade do que por ambição ou cegueira pelo luxo.
Cai o chefe e as bases levantam- se e anunciam que também querem ser como o topo, ter as mesmas regalias que o topo. Interpretam os “não originários” à volta do chefe como a causa da vida desgraçada em que vivem, por serem “filhos dos colonos” que ontem oprimiam e exploravam. Não conseguem discernir que o chefe se rodeou de “não originários” para proteger as costas (a sociedade “anti-racista” é essencialmente um outro cliché, uma gingação, mas os papalvos vão depois chorar Samora num saudosismo luso-colonial neo-sebastianista).
O candidato a substituto do chefe aceita as exigências pois quer o poder, deseja o poder e este está à mercê dos “deserdados da terra” e há que agarrá-lo antes que alguém se apodere dele. Recupera-se a “linha reaccionária”, sem reabilitação dos reaccionários.
Mas esta mudança ocorre no meio de grandes crises económicas em que o partido e o Estado têm de se separar. O Estado já não pode alimentar a elite dirigente e a máquina partidária.
Ou pelo menos nos moldes antigos. Surgem assim outras vias. O quadro dirigente vaga a casa que “conquistou” ao colono, retorna aos subúrbios e aluga-a ao neo-colono. A dólares imperiais. O imperialismo, camaradas!
O alto quadro dirigente tenta o business mas não sabe fazer business e vai à falência – prematura e anunciada. Mas há ainda uma outra via, mais prática e menos complicada, a da “participação” em joint ventures.
Em esquema win-win: eu dou a licença, tu a “participação”.
O “toma lá, dá cá” cantineiro style. Os sinais exteriores de riqueza, opulência aumentam exagerada e desproporcionalmente. Escandalosamente.
Não em função da rentabilidade do business, mas consoante o aumento de participações.
O novo chefe máximo tem de explicar a repentina acumulação.
A explicação a que recorre reflecte a tal falta de noção do que é o dinheiro, de como ele se ganha e se multiplica:
- Sou criador de patos, camaradas.
(*) Texto inspirado no artigo do Le Monde, 21 Jan 14: “OffshoreLeaks : révélations
sur l’argent caché des «princes rouges» chinois”.
Canal de Moçambique – 29.01.2014