Por Helena Matos
O que abaixo se descreve não é o destino dos retornados. É antes uma breve introdução a uma das páginas mais negras do jornalismo português. Que não viu. Não ouviu. Não contou uma das maiores convulsões vividas até agora em território português e que afectou milhões de pessoas.
Quem, no dia 12 de Agosto de 1974, abrisse o Diário de Notícias na página oito ficaria a saber que o Aeroporto da Portela estava a registar uma invulgar afluência de passageiros. Desta vez não eram mais adeptos do turismo revolucionário ou cientistas e bailarinas dos então países de Leste que por cá começavam a desembarcar às dezenas nesse Verão. Estes passageiros provinham das então colónias. O título da notícia esclarecia tratar-se do "Regresso dos colonos de Angola e Moçambique", e quem a lesse até ao fim ficaria a saber que na véspera mil colonos brancos de Moçambique haviam chegado no paquete Infante D. Henrique. Esta notícia nada tem de invulgar, aliás, nas semanas e meses seguintes outras muito mais dramáticas se lhe seguirão. O que de mais doloroso aqui se lê são expressões como "Vi morrer o meu melhor amigo". Dentmx/ de pouco tempo começará a chegar gente cujo corpo tem marcas das sevícias sofridas: "Violação é uma das palavras mais utilizadas, com horror e repugnância, por mulheres que nos contam casos em que foram protagonistas forçadas, às vezeC perante maridos imobilizados, às vezes de mistura com filhas ainda adolescentes." (Expresso, 13 de Junho de 1975). GentsS que viu saquear, matar, torturar... O que existe de invulgar nesta notícia de 12 de Agosto de 1974 é o facto dela sei^ acompanhada por uma fotografia dos recém-chegados ao Aeroporto da Portela. Nos meses seguintes "os colonos", "os fazendeiros que fogem por medo", "os deslocados", como então os designava a imprensa, chegarão aos milhares e milhares contudo serão raríssimas as suas fotografias na imprensa portuguesa.
Não são apenas jornais como o Diário de Notícias ou O Século a condená-los a essa espécie de invisibilidade. Demorarqp tempo para que, por exemplo, o semanário Expresso conceda dar-lhes destaque editorial e fotográfico semelhante àquele que reservou à análise do processo de descolonização do Congo-Zaire ou à vida de Amílcar Cabral. Colonialistas ou "vítimas por ]j reflexo" eles tinham caído claramente do lado errado da História e ninguém estava particularmente interessado em vé-los o ouvi-los.
"Brancos em pânico"
Os primeiros começaram a chegar, no Verão de 1974, logo após os primeiros incidentes em Luanda, quando os títulos d, jornais ainda garantiam a Portugal uma espécie de sublime estatuto nos areópagos internacionais: todos os dias algum liderem qualquer lugar do globo terrestre garantia que Portugal renascera. E, como num acto reflexo, todos os dias os jornalistas garantiam que os discursos dos novos dirigentes portugueses impressionavam o mundo. Numa espécie de irónica analepse, os jornalistas recuperaram, no pós-25 de Abril, o tom épico e acrítico com que décadas atrás haviam descrito as viagens triunfais de Carmona e Craveiro Lopes. No meio desse clima exaltante não havia espaço para esta gente que se obstinava em fugir, em deambular com os seus poucos ou muitos haveres no meio da vastidão africana para por fim se sentar no nomeio dos passeios, dos aeroportos, dos cais de Portugal.
Numa primeira fase, vemos os responsáveis políticos procurando atenuar a dimensão do êxodo: "Pensamos que só um número muito restrito de brancos regressará de África, visto que é preocupação do Governo Português, e os acordos até agora celebrados demonstram-no cabalmente, assegurar o futuro dos brancos nesses territórios", afirma, a 21 de Setembro de 1974, Vasco Gonçalves. Oito dias depois, a 29, é a vez do alto-comissário para Moçambique, o então contra-almirante Vítor Crespo, declarar: "Estou, contudo, certo de que as coisas voltarão ao normal. Os brancos vivem agora num estado emocional temporário, mas as tropas portuguesas e da Frelimo estão a trabalhar em conjunto e prontas a evitar novas perturbações." Os títulos da imprensa corroboram este retrato oficial dos fugitivos. Invariavelmente eles são apresentados como "brancos em pânico", gente de "espírito desassossegado" e facilmente impressionável: "O que houve aqui foi um clima de medo que provocou decisões não racionais. Se essas pessoas [os milhares de moçambicanos que fugiram após os confrontos de Setembro de 1974] tivessem pensado maduramente quais seriam as vantagens em Moçambique, isto é, racionalmente, sem emoções, teriam continuado aqui", reitera Vítor Crespo ao Expresso. Durante os primeiros meses de 1975 jornais como O Século e o Diário de Notícias afiançam que "numerosos portugueses lamentarão terem partido e desejarão regressar" aos territórios que haviam abandonado.
Como tal facto não passasse apenas de um desejo, os dirigentes portugueses começaram a denegrir ostensivamente os fugitivos: "Sempre há os elementos menos evoluídos que têm medo de perder as suas regalias" (Rosa Coutinho, 25 de Setembro de 1974, ao DN); "continua a haver pessoas racistas que não abdicam dos seus privilégios. Essas pessoas, naturalmente, não têm vocação para viver em Moçambique. [...] Moçambique é uma grande nação onde cabem todas as pessoas que queiram trabalhar" (Vítor Crespo, 5 de Fevereiro de 1975, a O Século. Nesta mesma entrevista, Vítor Crespo dizia terem já abandonado Moçambique 40 mil pessoas). Sintomática é a evolução das declarações de Almeida Santos, que tutelava a importante pasta da Coordenação Interterritorial, entre Novembro de 1974 e Maio de 1975.
Em Novembro e na sequência dos confrontos ocorridos em Moçambique, Almeida Santos criticara a população moçambicana por ter entrado em pânico. Como contraste, apresenta o comportamento dos habitantes de Luanda onde "já morreram talvez mais do dobro das pessoas que morreram em Lourenço Marques e, não obstante, ainda não houve nenhum fenómeno de pânico nem nenhum fenómeno de descrença da sua população branca em relação à sua permanência no território de Angola". Confiante, Almeida Santos garante a esses portugueses que "a alternativa que seria virem para aqui ou irem para outro país não será mais sedutora do que ajudarem a construir um país novo e cheio de potencialidades". O ministro da Coordenação Interterritorial não hesita até em dar exemplos dos excelentes negócios com açúcar e carvão que na sua opinião se podiam fazer em Moçambique nesse momento. Infelizmente, Almeida Santos não explicou como é que seria possível andar a negociar em carvão e açúcar no meio do caos e da violênca que progressivamente se instalava em Moçambique, isto sem sequer referir a viabilidade desses negócios após as nacionalizações que a Frelimo viria a impor.
Meses depois, em Março de 1975, Almeida Santos já não tem razões para citar a população de Luanda como um bom exemplo perante o pânico. Desde Novembro de 1974 que a saída de Angola se apresentava imparável. Contudo, e apesar da gravidade e da violência dos acontecimentos, Almeida Santos restringe tudo a uma questão de conforto: "Pela primeira vez, uma ordem de recolher obrigatório foi prontamente acatada [...] Quer dizer, as pessoas começam a compenetrar-se de que se têm de privar de algumas vantagens e de algum conforto sempre que a situação se torna tensa."
Confrontos entre os movimentos e dentro destes entre as diversas facções, grupos que se dedicavam a actos de vandalismo, gente anónima vítima de inumeráveis sevícias... e sobretudo uma crescente dúvida sobre quem exercia de facto o poder naqueles territórios, ficavam circunscritas a um deve e haver entre desvantagens e conforto.
Em Maio, e como a cada dia a situação se agravava, Almeida Santos deixa de lado a matéria do conforto mas lamenta que a população de Angola não porfie: "Resistiram aos primeiros incidentes. Ainda julgaram episódicos os segundos. Deixaram-se abalar pelos terceiros. Não serei eu que lhes recusa compreensão. Sem embargo seria desejável que porfiassem algo mais."
Esquecia o ministro da Coordenação Interterritorial que para porfiar há que ter confiança no futuro e nos líderes. Ora nas ainda colónias portuguesas os habitantes viam partir os soldados, sabiam que os agentes das autoridades policiais e funcionários públicos estavm a pedir a transferência para Lisboa. Perante Estados que se desmoronavam eles optaram por porfiar na fuga. Face à evidência dos factos, Lisboa teve de aceitar a ajuda internacional que inicialmente rejeitara para não denegrir a imagem exterior de Portugal, e dar início à ponte aérea. Na cabeça daqueles que a procuravam protelar ecoavam as palavras que Gabriel Garcia Marquez dedicara a este assunto durante as reportagens que fizera em Portugal no início de 1975: "Uma má solução em Angola obrigará ao regresso a Portugal de 600 mil colonos ressentidos, que irão reforçar as fileiras da reacção e criar conflitos económicos."
Opiniões particulares e verdade oficial
Se é certo que declarações como as de Vítor Crespo ou Almeida Santos seriam hoje susceptíveis de gerar viva indignação, fossem elas aplicadas a portugueses ou a qualquer outro povo, não era de modo algum essa a reacção nos anos 70. A não ser no Expresso, e mesmo assim apenas em algumas matérias, nos jornais portugueses de então não existia opinião como a entendemos hoje. Na maior parte dos casos nem sequer se publicava cartas ao director. As notícias eram invariavelmente estruturadas a partir de declaraçõe de ministros, secretários de Estado, militares. Professores universitários e intelectuais preenchiam o que sobrava nas dúvidas e sobretudo nas teses dos jornalistas. Por mais estranho que tal, hoje, possa parecer não se encontram na imprensa de então relatos na primeira pessoa entre os refugiados. Deste jornalismo feito sobre o seu próprio umbigo é particularmente sintomática a extensa reportagem publicada pelo Expresso, em Outubro de 1975. intitulada "A minha prisão pela FNLA (Chipenda) em Nova Lisboa, durante 6 dias". Por outras palavras, a detenção durante alguns dias dum jornalista daquele semanário teve um destaque nunca então conseguido por algum das centenas de milhares de cidadãos anónimos que desembarcavam em Lisboa, mesmo que as suas histórias fossem tão assombrosas quanto a daqueles que haviam feito a travessia da Costa dos Esqueletos e acabaram perdidos algures no deserto da Namíbia. Ou dos pescadores que resolveram fugir de traineira. Nem sequer as crianças que chegavam sem família, e não raramente sem alguém que as esperasse, conseguiram ser mais do que brevíssimas referências no fim das notícias. E contudo os jornais portugueses mandaram para Angola, Moçambique, Guiné... os seus repórteres. Uma vez aí chegados estes ouviam os militares, os líderes do que designavam como movimentos de libertação. De vez em quando, o líder que num dia era o herói do anticolonialismo tornava-se num proscrito reaccionário. Reportagem no sentido que se dá ao termo praticamente não se entrevê.
Não deixa de ser significativo que na ordem de expulsão do jornalista John Bruce Edlin de Moçambique, em Julho de 1974, as autoridades tenham baseado a sua decisão no facto deste jornalista "fundamentar a maior parte das suas notícias em boatos e em opiniões particulares, deturpando, assim, a verdadeira imagem da vida interna em Moçambique". O mesmo tipo de argumentação será usado para suspender vários programas de rádio em Angola. Para a História ficará não só a expulsão, em Março de 1975, de vários jornalistas do território de Angola "por agressão psicológica", como o apoio dado por vários colegas a essa mesma expulsão.
Aliás, se de algo estavam convictos os "retornados" ou "deslocados do Ultramar" quando chegavam a Lisboa era da parcialidade da imprensa. Não raramente impedem jornalistas de O Século, Diário de Notícias ou RTP de assistirem aos seus encontros, acusando-os de os retratarem como reaccionários ou, na melhor das hipóteses como homens "que reivindicam um desejo de viver num mundo que já acabou" (O Século, 31 de Janeiro de 1975).
Para a nossa memória ficou o sucesso da integração dos retornados na sociedade portuguesa e os apoios que receberam do Estado português. Preferimos esquecer que alguns sindicatos tomaram posição contra a sua integração na função pública dado o seu "reaccionarismo". Para muitos deles foi até mais fácil ser alojado em hotéis do que ver aceites os seus pedidos de habitação social. Mais uma vez o seu "reaccionarismo" assustava as comissões de moradores dos bairros sociais.
Revelador do estado de espírito existente em Portugal em 1975 é a indiferença com que é recebida a conformação, em Junho de 1975, do destino que fora dado na Guiné aos comandos negros do exército português: "[...] o PAIGC fuzilou, imediatamente, e enterrou dezenas e dezenas de contra-revolucionários que se opunham à Revolução. Mataram-nos e enterraram-nos. E não houve uma única linha a tratar deste problema", declarou Otelo. Note-se que o destino destes homens desarmados e entregues por Portugal ao PAIGC fora objecto de perguntas de jornalistas estrangeiros na Guiné. No final de 1974 o jornal O Século asseverava que eles se tinham transformado em lavradores. Em Junho de 1975 o tempo político passava depressa demais para que os portugueses prestassem cinco minutos da sua emoção a reflectir sobre o destino desses homens. Na verdade também não causara grande inquietação a notícia que lhes revelara que em Dezembro de 1974 o exército português internara no Tarrafal 60 militantes dos partidos que se opunham ao controlo de Cabo Verde por parte do PAIGC.O próprio campo de São Nicolau, em Angola, cujo fecho fora celebrado como uma vitória do 25 de Abril, rapidamente foi reaberto para receber sucessivas levas de gente envolvida nos conflitos angolanos.
Em 1975 a sociedade portuguesa libertou-se do Império. Fuzilamentos, crucificações, canibalismo, violações... nada que aconteça em África a comove. Mas aquilo que não pode tolerar é o que está anunciado na primeira parte dessas declarações de Otelo: "Chego a pensar que [...] teria sido melhor se, em Abril de 1974 encostássemos à parede ou mandássemos para o Campo Pequeno, umas centenas ou uns milhares de contra-revolucionários; eliminado-os à nascença. Tenho a impressão de que, neste momento, a contra-revolução já não existia, pelo menos por medo."
Exasperado com o ruído gerado à volta da prisão de "um Arnaldo de Matos", Otelo declarava a sua admiração não só pela forma como o PAIGC se livrara dos contra-revolucionários mas sobretudo por não ter havido "uma única linha a tratar deste problema."
É certo que muita linha se escreveu sobre a prisão de "um Arnaldo de Matos". Mas no que aos retornados respeita, Otelo bem podia ter acrescentado que as linhas dedicadas "a tratar deste problema" pouco se tinham desviado da versão oficial.
Revista ATLÂNTICO – 27.10.2005
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