Os 12% que o Partido Comunista obteve nas primeiras eleições afastaram o modelo terceiro mundista dos militares
João Salgueiro foi secretário de Estado de Marcello Caetano até pouco antes da Revolução. Acredita que a rendição do antigo chefe de Estado foi negociada e defende que está na altura de os portugueses se manifestarem pelo investimento produtivo e pelo fim da burocracia.
Onde é que estava no dia 25 de Abril?
Estava em Lisboa. Era uma semana normal mas houve um amigo que me ligou às seis da manhã e que me disse "agora é para valer". Mas toda a gente sabia em Lisboa que ia haver uma mudança, não se sabia era quando.
Como é que toda a gente sabia?
Havia muita gente a conspirar, e tinham muitos amigos e muitos parentes, e mesmo uma grande parte do regime queria que houvesse uma mudança. O professor Marcello Caetano assegurou progressos nas políticas económicas e sociais mas, após quatro anos de governo, o país continuava bloqueado politicamente. A economia teve crescimentos económicos acima dos 7% até 1973. Os números do Banco Mundial apresentados na reunião anual de 74 evidenciavam o nosso crescimento como o mais significativo da Europa ocidental. Na área social houve também mudanças, como a reforma do ensino, a segurança social para os rurais, o alargamento da contratação colectiva.
A que atribuiu esse bloqueamento?
Havia claras contradições internas no regime. E até no próprio movimento do 25 de Abril. Com intenção ou sem intenção, o golpe de 16 de Março contribuiu para que se seguisse uma linha mais revolucionária. Uma grande parte dos apoiantes do Spínola não tiveram intervenção nas primeiras horas porque tinham participado no golpe das Caldas e estavam detidos. Estou convencido que uma grande parte do país pensava que quem liderava o golpe era o general Spínola. Só encontro essa explicação para o presidente do Conselho se ter rendido no Quartel do Carmo.
Acha que a rendição do Marcello foi negociada antes do 25 de Abril?
Não me admiraria. Tinha saído do governo dois anos antes por achar que a minha participação já não fazia sentido. Quando no governo, as orientações que tínhamos em caso de terramoto ou qualquer emergência interna eram procurar a messe da Força Aérea em Monsanto, porque tinha comunicações independentes e uma pista para helicópteros. Se não fosse possível, devia procurar-se São Julião da Barra. Ir para o centro da cidade era uma armadilha. Para mim, Marcello Caetano ou já sabia da mudança ou decidiu que estava na altura de sair. Estavam com ele três ministros decisivos: a Segurança, as Relações Externas e a Informação.
O objectivo foi não haver derramamento de sangue?
Provavelmente sim, mas certamente não foi inteira surpresa. Falava-se abertamente dessa eventualidade. Estou convencido que o professor Marcello Caetano sobrevalorizava o poder das direitas em Portugal porque tinha assistido de perto aos golpes falhados de 58 e de 61, e não avaliou o desgaste de 13 anos de guerra.
Considera que o Marcello era uma pessoa indecisa?
Penso que não, embora no final do governo mostrasse maior reserva quanto à solução possível. Tinha um projecto claro quando entrou, que era promover a autonomia dos territórios maiores, pelo menos Angola e Moçambique e provavelmente a Guiné, dando-lhes a hipótese de virem a optar pela independência ou continuarem ligados a Portugal, à semelhança da solução adoptada pelo general de Gaulle com as ex-colónias francesas. Tinha um projecto de evolução consistente desde os anos 60. Marcello defendeu também a necessidade de uma nova lei de imprensa e tomou posição pela independência da universidade quando da crise académica de 61.
O que é que não funcionou?
O que não funcionou foi ter começado a perceber que a realidade era muito diferente e mais complicada do que tinha imaginado. Senti que ficou afectado depois de ir a Angola e Moçambique, por causa das grandes manifestações de que foi objecto. Andou no meio da multidão e foi aclamado por milhares de pessoas, sem segurança reforçada. Quando vemos as fotografias do general Delgado no Porto e vemos as fotografias de Marcello Caetano em Luanda, Nova Lisboa, na Beira e em Lourenço Marques, é a mesma imagem: um mar de gente, europeus e africanos. Veio de lá com a sensação que as pessoas não tinham uma ideia tão clara de que queriam ser independentes e que éramos nós que as íamos empurrar para a independência, que se calhar seria prematura porque não tinham condições para um autogoverno.
Também concorda que as ex-colónias não tinham condições para autogovernos?
Não se tinha feito muito para isso. Leva anos. O projecto Mandela exigiu mais de uma década. Não se preparou a descolonização em tempo útil. O projecto que havia na altura era manter a Constituição sem qualquer alteração, aliás como agora. Sabemos que tem de se mudar há pelo menos dez anos, quando começaram os alargamentos da União Europeia a leste e quando a China entrou no comércio mundial. Não percebemos bem que precisamos de mudar e não mudámos a tempo, ficámos agarrados ao passado. O professor Marcello deve ter pensado que ia criar um problema maior do que o que existia e que tinha de se ter mais cuidado. Quanto a mim, isso baralhou-o.
O que fez no 25 de Abril?
Nada de especial. Andei em Lisboa, a ver o entusiasmo e a tentar antever as opções do futuro. Acabei por vir para casa ao fim da tarde sem ideias muito claras. Senti que finalmente podíamos escolher o futuro. Mas uns dias depois tive a percepção de que havia um risco real de grandes contradições. Já a apresentação da Junta de Salvação Nacional não foi convincente. Demorou muito tempo e havia crispações. Dias depois houve uma interrupção na programação na RTP e apareceu Fialho Gouveia a ler um comunicado da Junta em que se dizia que o movimento se fez para devolver a soberania aos portugueses, mas que até haver alteração da ordem legal tinha de se manter a legalidade. A programação seguiu com reportagens de ocupações selvagens, provavelmente para mostrar que a Junta não tinha qualquer poder. Felizmente foi possível evitar a violência física generalizada. Mas houve dureza nas reformas e custos evitáveis. Provavelmente saíram de Portugal menos de 20 mil pessoas, mas o problema é que eram quadros e dirigentes de empresas que entraram em colapso. Algum do nosso problema económico começou aí.
Que tipo de intervenção teve na altura?
Em 1970, face aos crescentes bloqueamentos da mudança, tínhamos criado a SEDES como associação cívica para debater a situação económica e social e os caminhos de mudança. Em 74, a SEDES foi chamada a duas reuniões com a coordenadora do MFA, que queria recolher opiniões. Foi na fase em que se procurava constituir um governo de salvação nacional. Desde a constituição da SEDES que se tinha procurado manter uma participação muito diversificada (pessoas de diferentes formações e opções políticas) porque se entendia que o país devia debater de uma forma mais alargada o seu futuro. Também depois, como funcionário público, fui à Cova da Moura para ouvir o general Spínola expor as suas orientações, que me pareceram dificilmente sustentáveis. Mais tarde fui nomeado vice-governador do Banco de Portugal, já no governo de Vasco Gonçalves.
Como estava a banca nessa altura?
Já havia um banco em dificuldades, o BIC, o único que teve de ser intervencionado porque não tinha liquidez, embora em termos de rácio de capital estivesse bem. Jorge de Brito tinha investido demasiado em terrenos para desenvolvimento imobiliário. Os restantes mais de 15 bancos não defrontavam ainda situações agudas. Mas começou a haver problemas quando se acentuaram as dificuldades das empresas. Na altura entendeu-se nomear um comissário para cada banco e começou então a perceber-se que se desejava que tivessem um forte alinhamento com o PC. Eu ainda acreditava que fosse possível manter uma orientação pluralista e escolhemos representantes do Banco de Portugal em função da diversidade dos partidos representados no governo, uns ligados ao PS, outros ao PSD e outros ao PC. Mas percebemos que a única prioridade era a ligação ao PC.
Quanto tempo esteve no BdP?
Entrei em Junho de 74 e saí no dia a seguir ao 11 de Março de 75. No início a situação do país era muito sustentável mas com a perda de confiança começou a haver fugas de capitais.
Apesar da legislação?
Para sair dinheiro basta que não entre. Todos os dias têm de se fazer pagamentos... Por exemplo, proibiram-se os levantamentos nos bancos mas as pessoas pagavam com cheque e não depositavam nem mais um tostão. A pouco e pouco os depósitos foram baixando. Na saída para o estrangeiro acontecia a mesma coisa. As pessoas não podiam sair com dinheiro mas este também não entrava. Havia mais de um milhão e meio de emigrantes que enviavam remessas para Portugal. Os residentes passaram a combinar entregar o dinheiro às famílias cá dentro e eram reembolsados no exterior.
E radica aí o início da crise?
A mudança anunciada no 25 de Abril fazia sentido em qualquer país da Europa ocidental. Mas quando começou a haver ocupação de terras e de casas, a segurança em relação aos movimentos financeiros foi afectada. O BdP nos primeiros meses não teve problemas agudos mas depois começou a ter, face aos crescentes desequilíbrios da balança externa. A dívida ao exterior não representava ainda qualquer problema na altura.
Qual era nesse momento o grande problema do país?
A reorganização da economia de uma forma sustentável, que permitisse às pessoas terem uma vida melhor. Quando se fala nos 3 D, até para desenvolver é preciso uma estratégia. Alguma parte dos responsáveis, e depois o Presidente Eanes, tentaram isso. Estive em dois grupos de economistas e engenheiros para discutir o projecto económico para Portugal. Também o programa de Sesimbra, liderado pelo ministro Melo Antunes, procurava definir uma estratégia realista. A única nacionalização prevista era a do Crédito Predial Português, para criar um banco do Estado especializado no crédito à habitação. Mas poucas semanas depois todos os bancos portugueses foram nacionalizados.
Como é que reagiram os partidos mais pluralistas?
Nunca tiveram qualquer influência. Até às primeiras eleições viveu-se um voluntarismo político em que o PC e uma grande parte do MFA tomaram conta da situação. O MFA tinha uma visão terceiro mundista, orientação que assumiu quando disse que Portugal não era um país verdadeiramente europeu e que a inspiração tinha de vir também da América Latina e dos movimentos de libertação africanos. Pensavam que o Estado tinha de ter um papel mais relevante. Quando houve o avanço das nacionalizações não parecia muito absurdo a uma série de pessoas que não tinham a noção de como funcionam os sistemas económicos em democracias abertas. Mas as contradições eram evidentes. De facto, estivemos durante quase dois anos a tentar organizar a economia portuguesa com base em dois modelos opostos: um, o do planeamento soviético, e outro, o da Europa ocidental, onde havia economia de mercado e diferentes sistemas de solidariedade social.
Em linha do que Marcello tinha feito...
O projecto de Marcello Caetano era viável se não fosse a guerra colonial. Ele não quis ou não conseguiu anular os bloqueamentos da relação colonial e encontrar soluções para além da defesa militar. Perdeu muito tempo com a revisão constitucional, com alguns ajustamentos positivos, mas que não respondiam aos desafios fundamentais. Deu mais poder aos governos de Angola e Moçambique, mas o problema maior era criar um caminho que admitisse a viabilidade da independência.
Angola e Moçambique não queriam ser independentes?
Acredito que sim. Mas de facto não puderam escolher. Antes defrontavam as limitações constitucionais e políticas e depois não lhes foi dada essa oportunidade. Penso que teriam escolhido uma independência diferente porque ficaram na mão de governos marxistas, que provavelmente seriam minoritários se tivesse havido eleições. Poderia ter acontecido como na África do Sul, com governos que nunca puseram em causa a economia de mercado e as liberdades individuais. Em Portugal, após 74, estávamos divididos entre a aproximação à Comunidade Europeia e a inspiração soviética. Julgo que o MFA acreditava que, em eleições, o modelo soviético iria ganhar. E as primeiras eleições para a Assembleia Constituinte foram um golpe nessas expectativas. O Partido Comunista teve apenas cerca de 12% dos votos e a partir daí só concorreu em coligação.
O PC já se tinha preparado antes da Revolução para assumir o poder?
Provavelmente não acreditavam que fosse possível daquela maneira. Foi uma boa surpresa e eles aproveitaram muito bem a oportunidade. Se não fosse o golpe militar, provavelmente nunca teriam tido a influência que tiveram. Mas acabámos por ficar com uma Constituição em que a área política acaba por ser bastante liberal - os direitos, liberdades e garantias são assegurados e a influência do Estado está subordinada ao direito - uma parte económica muito inspirada no modelo soviético. O objectivo final de uma sociedade liberal não é impor um modelo de felicidade mas permitir a escolha entre várias opções e facilitar as mudanças. A vantagem real das eleições não é garantir bons governos, é podermos dar voz de saída aos maus governos sem uma guerra civil. Também não se pode garantir eternamente o papel das empresas do Estado, como se estabelecia na Constituição. Logo em 76 começou a ter de se alterar a Constituição. Por exemplo, não havia despedimentos sem justa causa. Mas nesse mesmo ano introduziram-se os contratos a termo certo, que são tudo quanto há de mais precário, e aceitaram-se os despedimentos colectivos para salvar empresas. A descolonização também não foi feita para garantir o direito à autodeterminação dos povos, como estava anunciado. Quando se aceita o princípio de que nem mais um militar para as ex-colónias numa situação de guerra está tudo dito. Em Angola, Rosa Coutinho encorajou a saída dos portugueses. O povo angolano não pôde, como aconteceu na África do Sul, escolher um novo relacionamento com a população branca. Acabou por só haver autodeterminação em Timor, assegurada com o apoio das Nações Unidas.
Porque é que as Nações Unidas não intervieram em Angola e Moçambique?
Não lhes demos essa hipótese, o imediatismo prevaleceu. Houve logo ponte aérea para tirar de África centenas de milhares de portugueses. Agora o mais estranho é não termos aprendido com a Revolução. Toda a gente sabe que o problema central da economia portuguesa é assegurar crescimento suficiente do produto, que praticamente estagnou nos últimos anos. Houve dumping de obras públicas, que naturalmente não criou um emprego duradouro. Fecharam-se entretanto muitos sectores industriais e a agricultura só agora começou a ser valorizada. Tivemos dois casos de sucesso nas empresas públicas, os cimentos e a celulose. O resto foi subsidiado ao longo de anos.
E não era assim antes do 25 de Abril?
Havia uma estratégia de desenvolvimento económico assumida. Estamos ainda a viver de algumas decisões tomadas em 1971, como a uniformização dos sistemas de ensino básico. E de grandes projectos como a Brisa, o novo aeroporto de Lisboa, que já estava lançado e os proprietários estavam a ser expropriados, o Alqueva e Sines, em construção avançada. São ainda os grandes projectos de hoje. E o confronto com esse tempo permite-nos retirar outra lição: a melhor maneira de criar o futuro não é defender o passado, como aconteceu com a relação colonial.
As empresas públicas devem ser todas privatizadas? Por exemplo a Carris?
Acho que devemos ter um sistema de transportes públicos em Lisboa mais eficiente. O número de utilizadores tem vindo a baixar. Não temos um projecto para a mobilidade na zona de Lisboa. Quando nos agarramos às soluções do passado, não conseguimos encontrar respostas. Por exemplo, olhamos muito mais para a taxa de desemprego que para a criação de emprego. Mas nas mudanças estruturais é muito mais importante olhar para o que está a nascer do que para o que está a desaparecer, e desaparecerá em qualquer caso. A melhor forma de assegurar o futuro é construir novas formas de criar valor.
Isso tem a ver com os partidos?
E tem a ver com a opinião pública. Porque é que os partidos fazem as promessas eleitorais que fazem?
Para mim, o poder político continua a não querer uma opinião pública informada e reivindicativa...
Noutros países, o abuso de promessas não cumpridas não seria possível, porque os partidos, se não equacionassem os verdadeiros problemas, perdiam as eleições. Desde a entrada da troika, houve movimentos que apenas combateram as consequências mas não as verdadeiras causas. É necessário assegurar melhores empregos e melhorias das condições de vida mas para isso é preciso organizar o país de forma a haver capacidade de produção mais eficaz. Neste momento acho que há lugar para os partidos falarem mais seriamente às pessoas. É legítimo querer níveis de vida mais europeus mas temos de assumir mais exigência quanto à capacidade produtiva e confiar menos no endividamento. E, apesar de as famílias portuguesas estarem mais conscientes, continua a haver a ideia de que alguém vai resolver o problema. Ou são os pais, ou os avós, ou o Estado ou a União Europeia. Veja que não há ninguém a manifestar-se contra a burocracia e as demoras na aprovação de projectos que podem criar emprego. Nem contra as demoras da justiça ou o facilitismo em alguns estabelecimentos de ensino. Mas era com isso que as pessoas à partida se deviam indignar. O investimento produtivo é o caminho que nos vai permitir criar emprego, reduzir a carga fiscal em termos relativos e suportar um sistema social no futuro, porque se não houver crescimento económico não vamos conseguir.
Este governo está a falar seriamente às pessoas?
O governo falou seriamente quando disse que era preciso mudar o estilo de vida das pessoas. Mas não é um problema de mais sacrifícios, é um problema de melhor desempenho. Muitos sacrifícios não atraem mais investimento, o que atrai mais investimento é a resolução dos constrangimentos. À partida, devia-se ter posto o país a discutir o estado em que se encontrava quando foi assinado o acordo com a troika. Explicar que não se podia recorrer à acumulação ou ocultação da dívida. E ver como países pequenos na Europa e na Ásia têm conseguido conquistar posições no mercado global. Os portugueses, quando assumem os desafios de uma forma decisiva, têm desempenho reconhecidamente positivo, como acontece com os nossos emigrantes e em empresas de referência em Portugal, como a Auto Europa ou a Siemens, o calçado, os têxteis ou o turismo. E isso pode ser um objectivo unificador. Veja a DECO, uma associação com 400 mil membros, que tem contribuído decisivamente para assegurar os direitos dos consumidores. As associações cívicas podem fazer a diferença na defesa dos direitos dos eleitores e na defesa de caminhos para assegurar a eliminação dos entraves ao investimento. Uma associação como a PASC - Plataforma Activa da Sociedade Civil - que agrega 40 associações cívicas, pode contribuir para focar a atenção dos portugueses em mudanças que façam a diferença face aos desafios que temos de vencer e condicionam o nosso futuro. E forçar as reformas de que falamos desde 1978 sem as realizar. Um exemplo. Mais importante que a reforma das freguesias, seria erradicar o excesso da burocracia nacional e municipal, que os portugueses não assumiram ainda como uma prioridade.
JORNAL i – 26.04.2014