«Retornados: a palavra possível nasceu há 35 (agora 40) anos (I)*»
Por Helena Matos
Foi uma das maiores pontes aéreas mundiais para evacuação de refugiados. Mas eles não retornavam. Eles fugiam
"Estivadores africanos do porto de Lourenço Marques recusaram-se ontem a carregar barcos de carga destinados a Lisboa com bens pertencentes a colonos brancos que regressam a Portugal. Segundo anunciaram, respondem assim a um apelo lançado pela Frelimo no sentido dos residentes brancos permanecerem no território, ajudando ao seu desenvolvimento. Todavia, na capital moçambicana a tensão aumentou nos últimos dias, devido a uma série de deflagrações (...) que devem ser obra de extremistas das direitas."
Direitas. Extremistas. Colonos. Brancos - esta notícia do Telejornal da RTP do dia 21 de Junho de 1974 contém os tópicos básicos das notícias sobre aqueles que, um ano depois, passarão a ser designados como retornados. Mas em Junho de 1974 os retornados não só não existiam como eram precisamente aquilo que antecipada e firmemente se garantia aos portugueses que jamais sucederia. É certo que, em 1974, existiam em Portugal os refugiados de Goa e os refugiados do Zaire. Mas os primeiros surgiam como o resultado dos erros de Salazar e dos segundos não só mal se ouvira falar como também eram apresentados como a natural consequência do colonialismo.
Os portugueses de África confrontaram-se desde os primeiros momentos com um estereótipo que os reduzia à caricatura dos colonos brancos, extremistas de direita. Que para maior agravo fugiam por receios infundados e por não quererem dar o seu contributo aos novos países africanos: "filhos pródigos" de Moçambique - chama por este mesmo mês de Junho de 1974 o correspondente do Expresso naquele território àqueles que já então esgotavam os bilhetes da TAP para a viagem Lourenço Marques-Lisboa.
Mas este enquadramento ideológico, quer das vidas dos portugueses em África, quer de tudo o que lhes possa vir a suceder, leva a um fenómeno muito mais profundo que a caricatura: a indiferença pela omissão. Assim, esperar-se-ia que a situação vivida por estas pessoas em Lourenço Marques merecesse maior atenção por parte da comunicação social daquilo a que se chamava metrópole. Afinal, não era de modo algum habitual que cidadãos portugueses fossem impedidos de viajar sequer pelos seus governos, quanto mais por um movimento político armado, no caso a Frelimo, do qual o Alto Comando Militar de Moçambique (ACMM) continuava a dar conta de ataques - na terceira semana de Junho são imputados pelo ACMM à Frelimo ataques a três aldeias no distrito de Cabo Delgado que causaram uma morte e seis desaparecidos, para lá do assassínio de três chefes tribais no distrito de Vila Pery. Mas não foi isso que aconteceu. Mesmo a referência à carga que a Frelimo não quer deixar embarcar não gera qualquer curiosidade. O que pretendem embarcar estas pessoas: bens que querem colocar em segurança para o que der e vier ou a panóplia habitual de objectos nestas viagens sazonais de reencontro com os familiares e de apresentação dos filhos aos parentes que tinham nesse território a que chamavam Portugal europeu? Em Lisboa ninguém se interessou por esse assunto. Vão ser necessários muitos meses e muitos milhares de retornados para que a imprensa portuguesa lhes dedique espaço e para que o discurso do poder político-militar conceda que eles existem.
Seja na versão oficial ou no imaginário de cada um de nós, os retornados são um fenómeno de 1975. De facto, são de meados de 1975 as imagens dos caixotes junto ao Padrão dos Descobrimentos e das crianças sentadas no chão do aeroporto de Lisboa. É também em 1975 que começa oficialmente a ponte aérea que traria centenas de milhares de portugueses de África. E finalmente é em 1975 que, perante a evidência da catástrofe, se arranjou um termo politicamente inócuo, susceptível de nomear essa massa de gente que só sabia que não podia voltar para trás. Arranjar um nome para esse extraordinário movimento transcontinental de milhares e milhares de portugueses foi difícil, não porque as palavras faltassem, mas sim porque os factos sobravam.
Contudo, não só muitos deles não eram retornados, pela prosaica razão de que tinham nascido e vivido sempre em África, como surgem muitos meses antes de a palavra "retornado" ter conseguido chegar às primeiras páginas dos jornais portugueses. Desde Junho de 1974 que encontramos notícias sobre a fuga dos colonos, dos brancos, dos africanistas, dos europeus, dos ultramarinos, dos residentes e dos metropolitanos. Enfim, de pessoas brancas, pretas, mestiças, indianas... que residiam em Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde. Nenhum destes termos é verdadeiramente apropriado para descrever o que eles de facto eram, mas a desadequação dos sinónimos foi breve, pois dentro de poucos meses eles deixaram de ser definidos em função dessa África onde foram colonos, brancos, africanistas, europeus, ultramarinos, residentes ou metropolitanos para passarem a ser definidos em função da própria fuga. Então passarão a ser desalojados, regressados, repatriados, fugitivos, deslocados ou refugiados. Finalmente, em meados de 1975, tornar-se-ão retornados.
Oficialmente, os retornados nasceram há 35 anos, em Março de 1975, através do Decreto n.º 169/75 que criou o IARN. Ao contrário do que ficou para o futuro, as siglas não queriam dizer Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais, mas sim Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, pois quanto mais os factos davam conta da catástrofe, mais cuidado punha Lisboa na gestão das palavras. O texto introdutório do decreto explica a criação do IARN como uma medida de "prudente realismo" perante a possibilidade de advir do "processo de descolonização em curso (....) o eventual afluxo a Portugal de indivíduos ou famílias que hoje residem ou trabalham em alguns territórios ultramarinos". Mas não só a estes portugueses se refere este decreto. Aliás, os seus considerandos mais sérios e assertivos (nada que se assemelhe a um "eventual afluxo", mas sim a um retorno em "grande massa") são reservados não aos retornados de África, mas sim aos portugueses emigrados na Europa: "Considerando que, no caso de se verificar uma grave crise de emprego nos países principais destinatários da emigração portuguesa, é de admitir a hipótese do retorno de uma grande massa de emigrantes ao país". Ou seja, escassas semanas antes de começar uma das maiores pontes aéreas mundiais para evacuação de refugiados, numa fase em que por barco e carreiras aéreas regulares já tinham afluído a Portugal milhares de residentes nos territórios africanos e quando os próprios funcionários públicos portugueses e membros das forças segurança abandonavam em massa os seus lugares em África, o poder político-militar de Lisboa finalmente reconhecia não ainda a sua existência mas a possibilidade de virem a existir.
Aquilo que o Decreto n.º 169/75 refere como "even- tual afluxo" foi o maior êxodo de portugueses registado num tão curto período. Não se sabe ao certo quantos foram os retornados, pois muitos "retornaram" directamente de África para Brasil, Canadá, Venezuela ou deixaram-se ficar pela África do Sul. E não fosse o povo ter chamado bairro dos retornados a alguns conjuntos de habitação social, geralmente prefabricada, para onde alguns deles foram residir, não se encontraria outra referência no espaço público à sua existência. Até hoje ninguém os homenageou. Deles o poder político e militar falou sempre o menos possível. A comunicação social, tão ávida de histórias, demorou anos a interessar-se por aquilo que eles tinham para contar. E os poucos que entre eles passaram a papel as memórias desse tempo só em casos excepcionais conseguiram romper o universo restrito das edições de autor.
Há 35 anos inventámos a palavra retornado. Mas eles não retornavam. Eles fugiam. Retornados foi a palavra possível para que outros - os militares, os políticos e Portugal - pudessem salvaguardar a sua face perante a História. Contudo, a eles o nome colou-se-lhes. Ficaram retornados para sempre. Como se estivessem sempre a voltar.
in «Público», 04.03.2010 - (1ª parte)
Retornados: a palavra possível nasceu há 35 anos (parte II)
"Os recentes acontecimentos de Moçambique e outros que se lhe possam seguir, devemo-los considerar como esporádicos, meramente emocionais, ação duma minoria que aproveita a falta de informação ou a informação desvirtuada em que o anterior regime deixava as populações das colónias." - Datada de 15 de Outubro de 1974, esta Informação de Serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros/Comissão Nacional da Descolonização contém as linhas mestras da atitude do Estado português sobre o que nesse mesmo período acontecia nos territórios sob sua administração em África e na Ásia. Ou seja, oficialmente não acontece nada que não esteja previsto e controlado. Tudo o que não coubesse nesta moldura era apresentado como o resultado duma minoria emocionalmente descontrolada e de forma consciente ou involuntária afeta ao regime anterior.
É também este paradigma que vamos encontrar nas pequenas notícias que até ao início de 1975 vão dando conta do "êxodo dos brancos"; da "fuga injustificada" e do "alarmismo temporário" dos colonos. Não interessa que os primeiros retornados não tenham sido maioritariamente brancos, pois se por retornado se entender aquele que abrutamente muda o seu local de residência para o sítio onde nasceu constataremos que os primeiros retornados não são brancos mas sim os negros dos musseques de Luanda que em Julho e Agosto de 1974 deixam a capital angolana rumando a Malanje e demais terras de origem; os mais de mil cabo-verdianos que nesse mesmo período são levados numa ponte aérea de Angola para o seu arquipélago; os nunca quantificados trabalhadores cabo-verdianos que no Verão de 1974 são embarcados em Lisboa com direcção a Cabo Verde, e ainda os comerciantes de origem libanesa que nesse mesmo Verão deixam a Guiné-Bissau. É certo que pelo mesmo tempo milhares de brancos começavam então a enviar os seus bens por via marítima e a tratar dos papéis para que os seus automóveis pudessem circular nas pequenas estradas daquilo a que chamavam metrópole, mas até Setembro de 1974 esse "retorno" em direcção a Lisboa ainda não é por eles encarado como definitivo.
Do ponto de vista informativo os retornados são vítimas de vários preconceitos, mas aqueles que não "retornaram" para Portugal mas sim dentro de África e que para cúmulo não eram brancos nem sequer são mencionáveis. No desacerto que os retornados eram, os negros e mestiços eram um desacerto ainda maior.
Retratados pelos governantes e jornalistas de então como "homens desejosos de viver num mundo que acabou", grupo "que quer manter privilégios", pessoas que entraram em pânico sem qualquer razão e "gente que não porfia", aos portugueses de África não só não foi permitida a expressão da sua vontade como, muito mais grave, foi-lhes proibida, sobretudo em Moçambique, a simples manifestação de opiniões contrárias ao que Lisboa decidia ou dizia que decidia.
A legislação aprovada pelo Alto-Comissário português em Moçambique, Vítor Crespo, só é equiparável à dos países totalitários: a 28 de Outubro de 1974, Vítor Crespo assinava o Decreto-Lei n.º 8/74 que estabelecia que "Todo aquele que dolosamente propalar notícias falsas ou tendenciosas que possam alterar a ordem ou a tranquilidade pública, paralisar as atividades económicas e profissionais, causar a intervenção desnecessária das autoridades públicas, ou por qualquer modo causar injustificado alarme público será punido com pena de dois a oito anos de prisão maior."
Dias depois, a 2 de Novembro, novo Decreto-Lei, o n.º 11/74, endurece ainda mais a repressão: não só os chamados crimes contra a descolonização têm as penas de prisão aumentadas como "os indivíduos suspeitos da prática de crime contra a descolonização ficarão sob a custódia das autoridades militares até à decisão com trânsito em julgado dos respetivos processos". No mesmo dia, 2 de Novembro, outro decreto, o n.º 12/74, depois de considerar que certas garantias individuais "só podem realizar-se inteiramente num clima de completa estabilidade social" determina que os detidos suspeitos da prática de crime contra a descolonização não beneficiarão de habeas corpus. Na prática podia prender-se quem se quisesse, porque na definição de crime contra a descolonização cabia tudo, desde a expressão de ideias numa esplanada até produzir menos vegetais numa fazenda. Podiam também colocar-se os detidos em parte incerta pelo tempo que se quisesse e entregá-los a quem se considerasse que exercia a autoridade militar, estatuto que em 1974/1975, em Moçambique, era perigosamente difuso. Aliás os portugueses de Moçambique, pelo menos aqueles que desempenhavam cargos na administração pública, correram ainda o sério risco de terem um estatuto próximo do de trabalhador forçado em país estrangeiro pois o Alto-Comissário português naquele território tentou impedir a transposição do decreto que previa o Quadro de Adidos, figura legal que permitia aos funcionários públicos nas ainda colónias pedirem a transferência para Portugal. Como explica num telegrama que envia para Lisboa, Vítor Crespo teme que a promulgação do decreto dos Adidos "implique saída mais ou menos imediata todos os funcionários", o que segundo ele violaria os acordos de Lusaka.
Impedir os funcionários públicos de deixar Moçambique torna-se a alternativa que chega a estar em cima da mesa: 4 de Novembro de 1974, a Comissão Nacional da Descolonização discute, em Lisboa, a proposta de se "estabelecer a obrigatoriedade de serviço pelo espaço de tempo de dois anos" aos funcionários públicos de Moçambique. Valeu a estes últimos uma intervenção de Almeida Santos explicando aos presentes que era impossível obrigá-los a ficar.
Assim, quando a sua fuga se torna um facto incontornável e apesar de tudo se passa a admitir que alguns têm razões para fugir, os retornados passam a ser vistos como um problema político, como se percebe por este texto incluído no Boletim Informativo das Forças Armadas quando em Maio de 1975 aborda finalmente esta questão: "Não menos graves serão para Portugal as consequências dum afluxo significativo a partir de Angola: aumento da taxa de desemprego para um valor crítico, com o consequente aumento da instabilidade social; enfraquecimento dos laços culturais, políticos e económicos a estabelecer com Angola, de imediato e primordial interesse para a revolução portuguesa; redução das possibilidades de ligação ao terceiro mundo; inserção na sociedade portuguesa de população traumatizada e talvez couraçada contra a revolução, que identifica como causa dos seus males; e, finalmente, o aproveitamento que a reacção interna e internacional não deixará de fazer, na tentativa de desacreditar a descolonização e, por ela, todo o processo revolucionário português e o MFA."
Na mesma linha de precaução contra esta gente "couraçada contra a revolução" que se recusa a ficar em África para fortalecer os laços culturais com o terceiro mundo temos tomadas de posição contra a sua integração por parte das estruturas sindicais: o Sindicato dos Delegados do Procurador da República manifesta-se contra o decreto que permitia "o ingresso indiscriminado dos magistrados judiciais e do Ministério Público das colónias na magistratura portuguesa". O caso dos professores é ainda mais grave: chega a ser convocada uma greve para protestar contra a decisão do Ministério da Educação de integrar os professores provenientes das colónias. Como o politicamente correcto não existia na época, ficaram também registadas as decisões de comissões de moradores e juntas de freguesia contra a inclusão dos "regressados de Angola" nos bairros sociais.
Mas mais uma vez as palavras pouco podiam contra os factos: os retornados existiam. E tal como apareceram muito antes de se admitir que existiam também vão terminar muito depois: até 1977 eles vão continuar a chegar. A todos os concelhos de Portugal chegaram retornados. Muitos transportaram para Portugal o espírito de auto-emprego que praticavam em África e abriram negócios nos mais adormecidos locais deste país. À falta de reconhecimento oficial, os cafés Nova Lisboa, as oficinas Cabinda, as mercearias Bilene, as pensões Mussulo... são o testemunho das suas histórias e que por causa da História não nos deu jeito ouvir.
Helena Matos, Ensaísta
in «Público», 11.03.2010 - (2ª parte)