Por Luciano Amaral
Pelo breve espaço que os nossos jornais dedicaram este ano à impropriamente chamada "descolonização exemplar" portuguesa, ninguém imaginaria que há 30 anos atrás lhe dedicassem as suas parangonas inteiras. Era o tempo em que se celebrava o fim dos "quinhentos anos de exploração colonial" e a "libertação dos povos irmãos das colónias". No entanto, qualquer um dos termos que compõem a expressão "descolonização exemplar" é falso. Aquilo que então aconteceu nào foi uma descolonização, e muito menos foi exemplar. Como já notou Adriano Moreira, não foi uma descolonização porque correspondeu apenas à libertação de encargos do Estado português para com as suas antigas colónias ou províncias ultramarinas. Por lá, a descolonização continuou e continua por fazer. E não foi exemplar, porque, desde os métodos políticos através dos quais se concretizou até aos interlocutores designados e às suas consequências, pouca coisa do que ocorreu entre 1974 e 1975 na Guiné, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe, em Angola, em Moçambique, em Macau e em Timor merece a qualificação.
Diga-se em abono da verdade que, nestes aspectos todos, pouco diverge a descolonização portuguesa da maior parte daquelas que foram realizadas pelos outros países europeus desde o fim da II Guerra Mundial. Como mais uma vez notou Adriano Moreira, o que então aconteceu à escala internacional não foi o fim dos impérios, mas apenas o fim dos impérios ultramarinos europeus. O império russo, por exemplo, continuou a sobreviver sob a ficção de uma união de repúblicas soberanas, o império da etnia Han, na China, sob o estatuto de uma república comunista, o raj britânico na índia sob a forma de uma união de estados, ao mesmo tempo que os curdos continuam a ser dominados imperialmente por pelo menos quatro estados diferentes, e a maior parte dos Estados africanos constituem situações de domínio imperial de uma (ou poucas) etnia(s) sobre as restantes. Apesar de tudo, a queda do império português possui algumas originalidades. A primeira, o seu carácter tardio face aos outros impérios europeus; a segunda, o desespero único, como nunca se viu alhures, pela libertação do fardo; a última, a sua ligação indissociável à radicalização da revolução então vivida no próprio território "metropolitano".
De Caetano ao 25 de Abril
Com o passar dos anos, os autores da nossa descolonização, apercebendo-se da catástrofe subsequente, foram aprendendo a sacudir a água do capote. Progressivamente, a "descolonização exemplar" (ou, em momentos de maior modéstia, aquele "incontestável sucesso", de acordo com Mário Soares em 1976) deixou de ter paternidade. No entanto, à época, quase ninguém a recusou. Hoje em dia, já esquecemos que o 25 de Abril não foi feito (ou apenas o foi subsidiariamente) para instaurar a democracia em Portugal. Foi-o, sobretudo, para terminar a chamada "guerra colonial". Nesta perspectiva, o 25 de Abril também não foi feito para libertar as nossas províncias ultramarinas da tutela portuguesa, mas, pelo contrário, para libertar Portugal dessa exacta tutela.
Não havia, nas "colónias", qualquer situação que tornasse a independência inevitável. Os "movimentos de libertação" nunca corresponderam a nenhum sentimento profundo da sua população. O tema da independência não era, para si, motivo de discussão ou anseio. Apenas uma pequena elite letrada se preocupava com ele, sobretudo até por razões de afirmação social própria. Esta elite confrontava-se com a sua menoridade política, não obstante possuir, tantas vezes, capacidades sociais, técnicas e económicas idênticas às de muitos "colonos". A luta pela independência não foi, portanto, uma luta para a libertação das "colónias", mas antes para a afirmação de um determinado grupo político, social e económico. O apoio que este grupo obtinha junto da população era diminuto. Em Moçambique e Angola, no final da guerra colonial, existiam mais africanos a combater no lado do exército português do que no dos "movimentos de libertação". Cerca de metade dos efectivos do exército naqueles territórios era constituído por negros autóctones.
Embora tenha sido a seguir ao 25 de Abril que o espírito de recusa do fardo colonial se materializou com mais clareza, ele já estava presente no Estado Novo. A ascensão de Caetano a Presidente do Conselho corresponde, precisamente, à vitória dentro do pessoal político do regime daquela secção que, no seu interior, pretendia proceder a essa "libertação". Desde os anos 40 que o nome de Caetano andava ligado às propostas reformistas para África e às soluções "federalistas", e ninguém duvidava de que o federalismo era o caminho lento para a independência. Chegado ao poder, porém, Caetano percebeu que tudo era muito mais difícil. Por um lado, tinha contra si as chefias militares tradicionais e a secção ultramarinista do regime. Por outro, repugnava-o a "solução congolesa", onde "os belgas haviam facilmente abandonado a sua colónia", permitindo aos "nativos" desrespeitar os "patrões e as autoridades da véspera, trucidando brancos, violentando mulheres, destruindo bens". Angola, de resto, tinha já conhecido no início da guerra, no 15 de Março de 1961, uma situação parecida, quando guerrilheiros da UPA massacraram no Norte de Angola entre 200 e 500 fazendeiros brancos e entre 6 mil e 20 mil trabalhadores negros. Nenhum dos famosos "massacres" portugueses tinha vitimado tantos negros como este ataque perpetrado por negros. Por isso, Caetano optou então por uma solução menos radical: a autonomia progressiva, que correspondia no fundo a uma regionalização, mantendo a integridade una do Estado português, "do Minho a Timor". Se algum dia essas regiões chegassem à independência, "e por que não?" - perguntava-se -, o importante era "fundar verdadeiras sociedades multirraciais onde brancos, pretos e amarelos tivessem o seu lugar em igualdade". Caetano admitia que era uma "realização" que "carecia de algum tempo. Tempo, dêem-me tempo, era o que eu pedia aos impacientes, era o que eu solicitava aos estadistas estrangeiros".
Eis, precisamente, um bem que para ele se tornou cada vez mais escasso. Não porque existisse uma situação de derrota militar iminente, mas simplesmente porque a guerra havia trazido uma pequena revolução nas Forças Armadas e, com ela, uma pequena revolução política. Estas duas revoluções consistiram, por um lado, no estrelato político que certos chefes políticos das guerras africanas, como Spínola, Costa Gomes ou Kaúlza de Arriaga assumiram e, por outro, no enorme protagonismo e insatisfação corporativa de oficiais de baixa patente, particularmente os capitães.
No domínio militar, apenas na Guiné existia uma situação efectivamente crítica, e mesmo assim longe da derrota militar. Em Moçambique, o exército português tinha conseguido conter a actividade insurreccional a norte, e em Angola, como alguém já disse, a situação militar em 1974 nem sequer merecia propriamente a designação de "guerra". O problema militar português não tinha, portanto, que ver com a capacidade operacional no terreno, sendo antes interno à própria estrutura das Forças Armadas. Nas Forças Armadas tinha nascido uma geração de soldados que havia feito as guerras de Africa praticamente sozinha e via as suas carreiras militares bloqueadas. Eram os famosos capitães, que em 1974 iam muitas vezes já na sua quarta comissão de serviço em África com perspectivas remotas de progressão na carreira. Estes "capitães", que viriam depois a fazer o 25 de Abril, não tinham, na sua maioria, qualquer ideia política consequente. Queriam apenas que fosse reparada a sua situação profissional. Claro que, a pouco e pouco, isto se foi confundindo com o desejo de não ter que continuar a guerra. Tanto mais que alguns oficiais superiores começaram a dar sinais, também eles, no mesmo sentido, o que foi particularmente verdade no caso de Spínola.
Enquanto comandante-chefe na Guiné, "Caco Balde" (o nome por que Spínola era conhecido entre os guineenses: Caco, pelo monóculo, Balde por ser um nome muito comum no território) tinha preparado o terreno militar para obter, como então se dizia, uma "solução política" para aquela frente, ou seja, uma situação de pré-independência. Caetano frustrou sempre os planos do general, levando este a ultrapassá-lo, curiosamente através da recuperação do seu antigo plano federalista, coisa que ficou lavrada em Portugal e o Futuro. No seu projecto de ultrapassagem de Caetano, Spínola olhou para os capitães como a massa de manobra ideal para a conspiração - de resto, não foi o único a fazê-lo: também Kaúlza teve a mesma ideia, embora na perspectiva "integracionista". Só que o Movimento dos Capitães, nos meses imediatamente anteriores ao 25 de Abril, sofreu também uma mutação. Com a adesão de militares que eram conhecidos como "mais politizados", de que o epítome era o então major Melo Antunes, o movimento começou a adquirir tintes marxistas. O Programa do MFA saído da pena da Comissão Coordenadora do movimento ia muito mais longe em matéria de descolonização do que Portugal e o Futuro, ultrapassando o federalismo e propondo explicitamente a independência. É com esta divisão crucial que se chega ao 25 de Abril, e é dela que nasce grande parte dos problemas e conflitos posteriores, bem como a radicalização do PREC.
25 de Abril, PREC e independências
O conflito entre estas duas linhas começou logo na noite de 25 para 26 de Abril, por altura da proclamação inaugural da Junta de Salvação Nacional ao país, na qual o problema colonial vai ser posto nos termos mais moderados de Spínola e não nos do MFA. Estes termos são aqueles que viriam a aparecer no programa do I Governo Provisório. O máximo que por lá se mencionava era a palavra "autodeterminação", sem explicitar se conduziria ou não à "independência". Mas a raiz do conflito persistiu. Os capitães mais radicais sabiam que sem Spínola o 25 de Abril nunca teria sido o sucesso militar que foi, e que o general continuava a ser a garantia de contenção da restante hierarquia militar depois do golpe. Tiveram, portanto, de o suportar por um pouco mais de tempo, até que surgisse uma oportunidade para dele se descartarem. Por sua vez, Spínola encontrava-se numa situação particularmente ingrata: sem o conjunto do MFA, não passava de um mero chefe de facção.
Jamais os capitães estiveram na disposição de deixar apenas a Spínola o protagonismo na diplomacia da descolonização, no que, de resto, foram muito ajudados por alguns políticos da antiga oposição, como Mário Soares. Nesta fase que imediatamente se segue ao 25 de Abril, Spínola defendia que o governo português que viesse a tratar com os nacionalistas africanos devesse ser democraticamente mandatado. Defendia ainda que as populações dos territórios ultramarinos se expressassem em referendo acerca do seu destino, e que isso requeria também uma democratização, paralela à metropolitana, nesses territórios. É de crer que o MFA, pressuroso por se libertar do fardo militar, começasse a ver Spínola como uma espécie de reencarnação de Caetano. De facto, tal como o plano de Caetano, o de Spínola requeria algum tempo e paciência negocial. Duas coisas que, à época, simplesmente não existiram.
O MFA encontrava-se então ramificado em todas as províncias ultramarinas. Na Guiné, por exemplo, logo no dia 26 de Abril, o MFA local fez um golpe, no qual assumiu o poder político. Imediatamente começaram as recusas, da parte dos soldados portugueses, em combater, bem como as confraternizações com o PAIGC. Ainda a situação era de guerra e já o MFA da Guiné (no qual sobressaíam o capitão Duran Clemente e o alferes miliciano José Barros Moura, famoso militante comunista e socialista) se comportava como se ela tivesse acabado e o PAIGC fosse já o governo local. No princípio de Maio, chegou ao território o novo governador, Carlos Fabião, até então tido como um "homem da confiança" de Spínola. Demonstrando o erro contido nesta ideia, um dos primeiros actos de Fabião foi prometer de imediato a independência ao PAIGC e apenas ao PAIGC. Ainda Spínola andava na metrópole com as suas tergiversações sobre referendos, governos democráticos e a "autodeterminação" e já Fabião e o MFA da Guiné o ultrapassavam no terreno. Quando instado, certa vez, a explicar por que havia tomado aquela atitude, Fabião respondeu que "os pretos podem não ser cultos, mas não são panos! E já tinham percebido que o 'senhor' de Lisboa acabara... Agora, o 'senhor' chamava-se PAIGC". Curiosamente, nessa mesma ocasião, Fabião explicaria que quis, ao chegar, falar com "alguém importante" do PAIGC, não tendo, por muito que tentasse, conseguido encontrar alguém. Estranho "senhor" este que, afinal, não existia. Começaria aqui um padrão que se repetiria nos outros territórios: a prática invenção de interlocutores para a entrega do poder. Claro que o PAIGC existia e tinha criado a situação militar mais difícil da guerra colonial. Mas não estaria certamente à espera que uma década de luta acabasse na mais solícita das rendições dá parte do adversário. Na Guiné, como em todos os territórios, o MFA preferiu negociar e entregar o poder aos movimentos de libertação locais, em vez de impor o peso militar do exército para criar condições de escolha para a população local. Mais, o exército português (e o Estado português) foi sempre conivente com a progressiva supressão de facto do multipartidarismo e a ascensão, em monopólio, dos movimentos que haviam previamente sido escolhidos enquanto interlocutores únicos.
O ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório era Mário Soares. Na Guiné, Soares seguiu de forma muito próxima as instruções de Spínola. Mas a situação interna ao território impediu qualquer diplomacia eficaz. Por causa da Guiné, Spínola iria perder o controlo da situação política nacional. Enfrentando a coligação do PAIGC e do MFA local. Spínola tentou, em desespero, quebrar o MFA central e obter maior controlo sobre a situação política nacional, através daquilo que ficou impropriamente conhecido como o "golpe Palma Carlos". Mas este falhou, daí resultando a queda do I Governo Provisório e a instauração do II Governo Provisório, onde a força do MFA era muito mais visível.
Com o II Governo entrou-se em roda livre em matéria de descolonização. Já antes tinha existido alguma diplomacia criativa, nomeadamente da parte de Soares, Otelo e Almeida Santos no caso de Moçambique. Tinha sido o tempo do "abraço de Lusaka" entre Machel e Soares, e o tempo em que Otelo (ainda visto, erradamente, como homem da confiança de Spínola, sob quem tinha servido na Guiné) dizia perante Machel (segundo relato de Soares): "Ó Dr. Soares, podemos avançar muito mais, porque no terreno já está a dar-se por toda a parte a confraternização das nossas tropas." O que, sendo uma confissão diplomática suicidaria, não deixava de ser verdade. Também em Moçambique existia uma ramificação do MFA (de que fazia parte, por exemplo, Mário Tomé), que tratou de provocar a indisciplina entre as tropas. Era a época em que, sem qualquer ordem superior, companhias inteiras se rendiam aos guerrilheiros da FRELIMO. No terreno, a situação era de extrema complexidade. Multiplicavam-se os partidos e movimentos políticos com programas completamente diferentes da FRELIMO. Alguns, onde se misturavam colonos brancos e dissidentes da FRELIMO, defendiam a permanência da associação entre Portugal e Moçambique. Outros, propunham uma independência de "tipo rodesiano", onde existiriam restrições ao direito de voto da maioria negra. Depois, havia a actividade diplomática do Eng. Jorge Jardim, que, graças aos seus contactos no Malawi e na Zâmbia, oscilou entre a solução de associação, a rodesiana e até a da FRELIMO, desde que o movimento assegurasse a sobrevivência dos seus negócios locais. Acabou por ser a FRELIMO a prevalecer e, mais uma vez, coube a Portugal a tarefa de ressuscitar um partido praticamente moribundo desde 1970, a seguir às operações de Kaúlza no norte do território.
Entretanto, com o II Governo Provisório, o MFA passou a ter um papel directo nas negociações, através de Melo Antunes. Incapaz de controlar a situação diplomática, com a Guiné praticamente entregue ao PAIGC e Moçambique à FRELIMO, Spínola ensaiará um último acto de desespero, com a Lei 7/74, de 27 de Julho de 1974. Foi com ela que, finalmente, o campeão do federalismo reconheceu a possibilidade de independência dos territórios ultramarinos, tentando assim ganhar espaço para controlar o processo angolano. Convém perceber a que é que corresponde esta derrota de Spínola. Ela significou que, em todos os casos (o que se voltaria a verificar em Angola), jamais o direito de autodeterminação foi exercido, tendo o poder simplesmente sido entregue pelo Estado português a movimentos políticos que reclamavam para si mesmos, sem consulta prévia às populações, o direito de as representar tanto nos seus presumíveis anseios de independência como na mera prática governativa.
No Verão de 74, com Spínola vencido, apressam-se e concluem-se as negociações com o PAIGC e a FRELIMO, cedendo Portugal em todas as reivindicações daqueles movimentos. Se na Guiné a situação foi acalmando à medida que as negociações chegavam ao seu termo (não obstante certos episódios dramáticos, como o fuzilamento sumário pelo PAIGC de todos os guineenses que haviam servido no exército português), em Moçambique não. Existia ali o mesmo problema (embora, apesar de tudo, em menor grau) de Angola: a presença de uma significativa minoria branca, muitas vezes autóctone. Os conflitos multiplicaram-se entre ela e a FRELIMO, deles tendo resultado várias centenas de mortos e milhares de feridos. Na sequência destes conflitos, a minoria branca vai abandonando o território, partindo a maior parte em Setembro de 1974, quando a FRELIMO procede a uma sistemática "caça ao branco".
São as pretensões rivais de Spínola e do MFA quanto a controlar o processo angolano que vão continuar a radicalizar a situação em Portugal. Spínola persiste em centralizar o poder, no que vai sendo contrariado pelo MFA e pelo conjunto da esquerda, do PS para lá. É nesta altura que vão ganhando curso mais acelerado as ideias de instauração do socialismo no país. Mas, na raiz de tudo, estava a situação colonial, progressivamente reduzida à questão de Angola. Também no interior do II Governo Provisório se registou o fenómeno da diplomacia paralela. Spínola foi entabulando, pelo seu lado, sucessivos contactos com Mobutu, no sentido de estabelecer uma plataforma que permitisse a permanência da colónia branca, ao mesmo tempo que marginalizaria a facção de Agostinho Neto no MPLA, em favor da de Daniel Chipenda e dos outros dois "movimentos de libertação", a FNLA e a UNITA. Já o MFA procurou, sobretudo, favorecer apenas o MPLA e, dentro deste, a facção Neto. Esta estratégia, porém, confrontava-se com um problema: a prática irrelevância política e militar do movimento e o seu estado de profunda desunião. Grande parte dos esforços do MFA irá ser feita, precisamente, no sentido de ressuscitar o MPLA e Neto.
Entretanto, no terreno, as pretensões de Spínola em controlar o processo vão sendo crescentemente frustradas pela extensão local do MFA (onde pontificava o então major Pedro Pezarat Correia). Tal como na Guiné e em Moçambique, o MFA introduziu um elemento de sistemática indisciplina entre as tropas, que foram deixando de cumprir o seu serviço. Entretanto, em Julho, na sequência do falhanço do "golpe Palma Carlos", chega a Luanda, como alto-comissário, o contra-almirante Rosa Coutinho, uma autêntica e literal lança em África para o MFA. Tudo isto se passa à medida que a situação sociopolítica se deteriora, com a multiplicação de conflitos raciais. Enquanto este processo decorre, nascem inúmeros movimentos políticos, nomeadamente alguns visando defender os interesses dos brancos e a manutenção do multirracialismo no território.
Finalmente, a 30 de Setembro de 1974, os conflitos no interior do governo português resolvem-se em favor do MFA, com a demissão do general Spínola. Onde os problemas se avolumam agora é no próprio território, com o conflito crescente entre os três movimentos e as várias facções do MPLA, para além da intratável questão da comunidade branca. Um entendimento entre os movimentos virá, porém, a ser alcançado, o que possibilitará a assinatura dos Acordos de Alvor, em Janeiro de 1975. Durante alguns meses, a situação pareceu calma mas, a partir de Maio desse ano, Luanda transformou-se no palco de uma guerra civil, que posteriormente tenderia disseminar-se pelo território e a prolongar-se pelas três décadas subsequentes. Segue-se, por esta altura, e perante intimidações locais, o êxodo dos brancos do território.
Se os casos da Guiné, Moçambique e Angola já ilustram bem o espírito "entreguista" (na linguagem anterior ao 25 de Abril) do MFA e de parte das novas autoridades portuguesas, seria no caso das independências daqueles territórios onde não existia conflito militar nem movimentos independentistas significativos (Cabo Verde e São Tomé) ou nem sequei- existiam, pura e simplesmente, movimentos independentistas (Macau e Timor) que ele seria ainda mais claro. Se, em Cabo Verde, ainda era possível invocar a pressão colocada pelo PAIGC, em S. Tomé a actividade insurreccional era completamente inexistente. O único movimento independentista, o MLST, não passava de um grupúsculo sem significado político ou militar. Isto não impediu o MFA de o eleger como único interlocutor legítimo e oferecer-lhe o território a seguir à independência.
Notável é o caso de Macau, onde seriam as próprias autoridades chinesas a recusar ao território o estatuto de colónia, não obstante os esforços em sentido contrário do MFA (central e local) e de algumas individualidades locais, que, para isso, viriam a criar (apenas depois do 25 de Abril) um movimento para a sua independência. Acabaria, assim, por ser a China a forçar Portugal a não abandonar imediatamente Macau, insistindo na sua classificação como "território chinês sob administração portuguesa", estatuto que abria um período alargado de transição, que facilitaria uma separação menos traumática.
Também em Timor não existia, antes do 25 de Abril, qualquer reivindicação independentista. Logo a seguir ao golpe, com as promessas de democratização oferecidas pelas autoridades metropolitanas, vão surgindo diversos partidos políticos. O mais importante desses partidos (a UDT) propunha uma federação com Portugal, o menos importante (a APODETI), uma associação com a Indonésia. No meio, estava a ASDT, que propunha um período alargado de transição para a independência. Tal como em todas as outras províncias ultramarinas, quem teve mais pressa em despachar a situação foram as autoridades portuguesas, sempre com a colaboração do ramo local do MFA. A vontade de abandono da parte de Portugal condenou a agenda política da UDT e levou à radicalização da ADST, que se transformou em FRETILIN, passando a partir de então a pedir a independência imediata. Repetindo o padrão dos outros episódios, acabaria por ser este o movimento favorecido pelo MFA local. Tudo isto no meio de avisos da parte da Indonésia de que não toleraria o separatismo timorense, muito menos sob a égide de um movimento marxista. Algo que não impediu as autoridades portuguesas locais de abandonarem as suas responsabilidades, mesmo quando o território estava, pelo menos nominalmente, ainda sob administração portuguesa, no exacto momento em que se desencadeava uma guerra civil, a qual acabaria por abrir a porta à invasão indonésia. A FRETILIN viria a proclamar a independência em Novembro de 1975. Mas, logo em Dezembro, entrariam as tropas de Jacarta.
Os novos países
Não vale a pena insistir demasiado naquilo que foi o futuro destes países tão mal nascidos. Em todos eles, ao domínio colonial português sucederam regimes tirânicos marxistas. A repressão política atingiu, por vezes, níveis que fariam empalidecer a PIDE: em Moçambique, por exemplo, multiplicaram-se os "campos de reeducação", tendo aí sido encarceradas dezenas de milhar de pessoas, desde chefes tribais ou religiosos locais até dissidentes da FRELIMO, passando por oposicionistas diversos. Num desses "campos", chegaram a estar concentrados cerca de 10 mil Testemunhas de Jeová. Ficou famosa a execução dos dissidentes Lázaro Nkavandame, Uria Simango e Joana Simião em 1983, que foi ocultada durante seis anos, até 1989. A FRELIMO de Machel pretendeu construir uma utopia socialista, tendo por base o "homem novo" moçambicano. Eis o que justificou todas estas violências, para além da nacionalização integral da indústria, do sector da saúde (acabando com os consultórios privados), das grandes plantações e do património imobiliário (proibindo ao mesmo tempo o mercado de arrendamento). Machel procurou ainda aplicar um programa de "socialização do campo" (tendo como modelo a ujaama da Tanzânia de Nyerere), que consistiu na criação de um conjunto de "aldeias comunais" agrupando uma população extraída do seu habitat tradicional. Muitas vezes, estas deslocações foram voluntárias, mas outras vezes foram rigorosamente forçadas, tendo-se então repetido as piores cenas coloniais da queima de palhotas. Outro problema que a independência muito agravou foi a fome. Existem poucos números para o documentar, mas sabe-se que a fuga das elites brancas e mestiças (particularmente indianas), a nacionalização da economia e, sobretudo, a "socialização do campo", trouxe uma completa desorganização económica, que levou à quebra do conjunto da produção (agrícola e industrial) em cerca de 40% num só ano, em 1975. Daqui resultariam centenas de milhar de mortos, uma situação que se agravaria com o desencadear da guerra civil, a partir de 1980, onde se estima tenham morrido um milhão de pessoas, a par do aparecimento de cerca de três milhões de refugiados. Seria preciso regressar ao tempo do tráfico de escravos para encontrar números tão expressivos.
A história não seria menos trágica em Angola, onde uma guerra civil particularmente sangrenta introduziria até elementos de violência específica. Pela assinatura dos Acordos de Alvor, os três "movimentos de libertação" reconhecidos pelas autoridades portuguesas comprometeram-se a instaurar uma democracia no país. Jamais tal coisa aconteceria, com a situação a degradar-se em lutas ferozes entre os três movimentos ao longo do ano de 1975. A brutalidade entre estes grupos deixaria boquiaberto o mais racista dos administradores coloniais. Seja como for, em Novembro de 1975, o país acabaria retalhado em três grandes zonas sob controlo de cada um dos grupos. Na zona oficial, isto é, a do MPLA, correspondendo à capital, Luanda, e a parte do litoral, também se instalou um regime de tipo marxista. Deu-se a nacionalização da indústria, do comércio e da agricultura, com inserção das actividades num plano central de tipo soviético. A perseguição a opositores políticos (não apenas dos outros movimentos) foi feroz. A maior parte da economia entrou em colapso com a nacionalização, a guerra e a fuga de cerca de meio milhão de portugueses. A fome começou a fazer-se sentir, tendo-se agravado progressivamente, estimando-se que cerca de 600 mil pessoas tenham morrido dessa forma até aos dias de hoje. Se a elas juntarmos cerca de um milhão de mortos causados directamente pelo conflito, temos uma impressionante factura humana. A elite oficial sempre ficou, evidentemente, preservada destas tragédias, sobretudo graças ao acesso privilegiado às rendas da exploração do petróleo. A elite do MPLA configura, muito precisamente, a típica "cleptocracia" africana.
Os casos de Angola e Moçambique são talvez os mais chocantes, sobretudo porque ambos os territórios, apesar das iniquidades coloniais, eram verdadeiros exemplos de prosperidade e funcionalidade dos serviços públicos nos anos 00 e 70: não existiam em África, à época, melhores indicadores económicos (em termos de crescimento) nem de desenvolvimento (em termos de educação e saúde, por exemplo) do que ali, se exceptuarmos a África do Sul. Mas todos os outros países saídos desta descolonização adoptaram princípios semelhantes, assim prolongando a violência política herdada dos tempos do Estado Novo (tendo-a mesmo agravado na maior parte dos casos) e afundaram as novas nações no caos económico e social. Guiné, São Tomé e Cabo Verde não foram excepções, tendo adoptado o monopartidarismo comunista e o comunismo económico. Se todos estes países viriam mais tarde, nos anos 80 e 90, a proceder a reformas políticas e económicas, com a introdução de princípios pluripartidários e de abertura da economia à iniciativa privada, em geral elas não constituíram senão uma nova oportunidade para a perpetuação da velha elite vinda dos tempos das lutas pela independência.
A razão da tragédia aqui retratada tem que ver com a mentira essencial envolvendo todo o processo. Aquela que nos diz ter naqueles países acontecido uma descolonização. Aquilo que aconteceu foi, na realidade, duas coisas. Uma, a recusa das responsabilidades da parte de Portugal relativamente àqueles territórios, sem qualquer preocupação de lhes legar condições de viabilidade enquanto comunidades políticas independentes; a outra, a ascensão de uma pequena elite letrada e colonial,
que se aplicou a herdar e acentuar as condições de hegemonia. Isto é visível, desde logo, na adopção das fronteiras coloniais e na aplicação do conceito de "nação" aos territórios. Antes do domínio imperial português não existia qualquer "nação angolana", "moçambicana" ou "guineense". As novas elites, precisamente, adoptaram-nas como se fossem uma realidade. Deste modo, as novas nações transformaram-se elas próprias em pequenos impérios locais. Em Angola, à data da independência, existia qualquer coisa como noventa e quatro tribos diferentes, distribuídas por nove grupos etnolinguísticos. Em Moçambique, oitenta e seis tribos, distribuídas por dez grupos etnolinguísticos. Na Guiné, existiam vinte e oito grupos etnolinguísticos. Por muito que estas tribos e grupos fossem em parte resultado de um esforço de classificação artificial da parte de Portugal, as diferenças culturais que existiam entre alguns deles eram enormes, sobretudo se a elas juntarmos as diferenças religiosas. Tudo isto significou que o controlo político (e económico) naquelas nações caiu nas mãos de apenas um ou dois desses grupos étnicos, conduzindo os outros à subjugação. Muitas vezes não reparamos, mas aquilo que é um dos motivos de orgulho de Portugal, o facto de esses países terem adoptado o português como língua oficial não é senão mais um sinal dessa perpetuação colonial. O português sempre foi a língua de uma pequena elite alfabetizada, e a sua adopção enquanto língua nacional destas novas nações correspondeu a um veículo de dominação política.
Os heróis da descolonização portuguesa, hoje talvez prontos a reconhecer que os países a que deram origem em 1975 não seguiram o caminho da liberdade e da prosperidade, tendem a desculpar-se com a ideia de que não sabiam que as coisas se passariam assim. Eles ter-se-iam limitado a abrir as portas para que os angolanos ou os moçambicanos tomassem conta do seu próprio destino. Eis uma ideia profundamente errada. Só quem não quisesse é que seria incapaz de antecipar. Em 1974-1975, já o desastre das descolonizações francesa e britânica era perfeitamente visível, com países como a Tanzânia, o Zaire, o Ghana (e tantos outros) transformados em mostruários de tirania e miséria. Nem sequer se pode dizer que a esquerda europeia não tivesse disso consciência. Alguns dos principais avisos sobre aquilo que então estava a acontecer em África vieram de heróis da causa africana ou referências intelectuais de esquerda, como Frantz Fanon (sobretudo em Os Condenados da Terra) ou o agrónomo René Dumont (em L'Áfrique Noire est Mal Partie). Era possível, portanto, prever o que se sucederia e, à luz das outras experiências, tentar evitá-lo. Em nenhuma circunstância se procurou fazer isso. Como única missão, os nossos descolonizadores atribuíram-se a tarefa de descarregar o "fardo do homem branco". Poder-se-á até discutir se existiriam condições nacionais e internacionais para um processo diferente. Provavelmente não existiam, ou eram muito difíceis de reunir. Mas isso não pode servir de cobertura para o que não passou de uma simples deserção. Como em tudo, mais vale assumir a responsabilidade e a culpa do que persistir em viver numa bolha ficcional autojustificativa. Perante a informação que existia já em 1975, poder-se-ia ter procedido de forma diferente. Não era fácil? Não era. Mas também ninguém disse que a nossa missão na terra se deveria limitar a fazer apenas o que é fácil.
Extraído da Revista ATLÂNTICO