Mario Raffaelli, mediador-chefe do Acordo Geral de Roma em grande entrevista
Mario Raffaelli, o mediador-chefe do Acordo Geral de Roma, disse, em Grande Entrevista, que é importante que se dê o devido respeito ao líder da Renamo
Por que é que as negociações do Acordo de Roma duraram dois anos e meio?
Havia falta de confiança entre as partes. Temos que tomar em consideração que as duas delegações nunca se tinham encontrado. Não era como aquelas ocasiões em que as partes tinham o pleno conhecimento de cada uma delas. A segunda razão, a mais importante, é que era preciso tentar resolver todos os problemas. Naquela altura, talvez não houvesse compreensão dessa necessidade, mas, fazendo uma comparação entre o processo de paz em Moçambique e o processo de paz em Angola, o processo em Angola foi mais rápido, mas fracassou. No caso de Moçambique levou muito, mas o tempo foi muito bom para criar condições de implementação do processo de paz.
Como é que foi este encontro com Dhlakama? Já o conhecia?
Foi um primeiro encontro. Nunca o havia encontrado antes, e foi um encontro muito bom. Penso que Keep Lagard conseguiu preparar o encontro de forma diplomática, penso que um dos avanços nesse encontro foi Dhlakama ter aceite Roma como o local das negociações e como mediador. Depois, levantou-se o problema do Zimbabwe. A ideia era encontrar-se alguém com uma preparação mais militar que política, por causa da estratégia do cessar-fogo parcial, e ficou claro que o cessar-fogo geral só seria alcançado depois das conversações de Roma.
Dhlakama chegou a revelar quem é que apoiava o seu movimento durante os 16 anos?
Bem, é impossível dizer. Mas naquela altura o Quénia era um país amigo da Renamo. Na minha opinião, o Quénia apoiava a Renamo a erguer-se como uma força nacional.
Conhecedor que é do Acordo Geral de Paz assinado em 1992, acabando com 16 anos de guerra civil, qual é a avaliação que faz da sua implementação desde então até aos dias de hoje?
A implementação do Acordo de Paz foi muito boa. Eu costumo dizer que os dois anos de implementação dos acordos de paz, chefiados pelo meu amigo Aldo Ajello, são tão importantes como os anos de negociações, e o mecanismo da implementação dos Acordos Gerais de Paz era a flexibilidade, visto que o Acordo propriamente dito tinha essa prerrogativa de mudar o calendário operacional de acordo com a realidade no terreno. Por exemplo, ficou acordado que as eleições seriam realizadas depois de Maio. Estava claro que não era possível. Por isso, decidimos criar o mecanismo de flexibilidade. Na minha opinião, o Acordo de Paz foi implementado de forma correcta em 95%, por isso, Moçambique teve 20 anos de paz.
“O erro foi ter deixado a Renamo armada”
A Renamo exige hoje um exército e uma polícia nacional republicanas, com metade dos efectivos a virem do partido Frelimo e outra metade da própria Renamo. Olhando para o contexto político-social actual, onde há novos partidos políticos a reivindicarem espaço através de processos eleitorais, esta reivindicação da Renamo faz ou não sentido?
Penso que não. A Renamo teria razão se levantasse problemas da Lei Eleitoral. Porque penso que foi uma boa discussão e que foi atingido um acordo justo, aprovado na Assembleia da República. Não compreendo as reais intenções da Renamo. A Renamo conseguiu mudar aspectos da Lei Eleitoral, mas não entendo por que muda constantemente de posição. Agora, a Renamo não está a exigir apenas garantias para o processo eleitoral. isso é complicado. Penso ainda que Renamo poderia discutir outras questões no parlamento, incluindo os outros partidos que vão surgindo. Fiquei feliz em ver o partido MDM na Praça dos Heróis Moçambicanos, isso demonstra que a Independência é inclusiva e para todos, e não só para a Frelimo. A Renamo deve exigir garantias para que o processo eleitoral ocorra de uma forma justa, transparente, e não exigir 50% do exército e da polícia. Isso é tarefa do parlamento, se a polícia necessita de uma modificação. A questão pertinente é o cessar-fogo neste momento, que não é impossível. é importante aceitar que o exército esteja posicionado onde está agora, com vista a manter a tranquilidade. A Renamo poderia colocar à mesa a presença de mediadores internacionais. O governo têm sido flexível em vários aspectos. Essas seriam a matéria de debate da Renamo e não ao uso da força. Penso também que o governo deve reconhecer o papel do líder da Renamo na democracia e no garante da paz em Moçambique. Penso que deveria arranjar formas de reconhecer Afonso Dhlakama, apesar dos resultados políticos.
A Renamo continua Armada, vinte e dois anos depois da Assinatura dos Acordos Gerais de paz. Não será um falha do Acordo Geral de Paz?
Como disse antes, houve falta de um acordo geral de paz relativamente às pessoas armadas, como é o caso de Dhlakama. Mas foi um facto aceite por ambas as partes. O facto é que agora tem muitas pessoas armadas e isso não é um problema do Acordo Geral de Paz, mas sim um problema actual.
Joseph Hanlon, um dos conhecidos analistas e politólogo com profundo conhecimento sobre Moçambique, sugere que o governo pague 100 milhões de dólares à Renamo. Acha que isto é uma extensão da situação de Roma?
Não concordo com este posicionamento. Como disse antes, é necessário reconhecer o papel da Renamo e de Dhlakama, particularmente. A questão principal é a transparência, eficácia das eleições e a forma como são contemplados os vários sectores da sociedade moçambicana. Trata-se de um problema geral e não de um questão monetária. A questão é a integração na vida civil dos combatentes da Renamo. Penso que a questão não é divisão do exército em 50%, mas, sim, deve tomar-se em conta que há pessoas que passam necessidades dia-a-dia no país. Deve identificar-se soluções para ajudar essas camadas. É possível criar um fundo para integração dos antigos combatentes da Renamo. Isso é um problema social. Deve-se resolver o problema de uma maneira inteligente e flexível. Repito, penso que Dhlakama deveria ter um papel relevante na vida política do país. Deve reconhecer-se que Dhlakama teve um papel preponderante para a consolidação da paz no país. Agora, como deve ser feito, não seria a pessoa ideal para sugerir. Dhlakama não deve ser marginalizado. Por outro lado, o líder da Renamo deve ajudar as pessoas nas negociações.
Em entrevista à STV, o presidente Chissano disse que o seu pior erro foi não ter desmilitarizado a Renamo. Qual é sua leitura destas declarações?
O presidente Chissano disse o que eu disse antes. O único erro da implementação do processo de Paz foi ter deixado a Renamo com armas. Isso foi culpa de ambas as partes. Não porque o presidente Dhlakama quisesse manter homens armados.
A Renamo tem dito que há protocolos contidos no acordo que não foram cumpridos. Olhando para esta reclamação, tem ou não razão?
Acho que há apenas um problema. É o problema da presença das armas do lado da Renamo. Como sabe, a Renamo alega que o governo viola o acordo ao partidarizar as forças, mas isso não é completamente real. A Renamo e Governo acordaram que a Renamo teria uma força para defesa pessoal do seu líder, por outro lado, o processo de integração dos homens da Renamo nas fileiras da FADM e da PRM não foi completamente observado, tudo porque grande parte dos elementos, tanto do Governo como da Renamo, não queria ficar com armas. A discussão sobre a paridade nas fileiras teve lugar, também, no período das negociações, mas o número que foi acordado nunca foi alcançado, por que grande parte das pessoas que esteve envolvida nesse processo decidiu reintegrar-se de forma civil, apesar de outra ter decido enveredar pela polícia, mas esta foi uma opção pessoal.
Estamos a comemorar 39 anos de Independência. A Itália teria contribuído de forma directa ou indirecta no processo de libertação de Moçambique?
O relacionamento entre estes dois países inicia em 1970. Na altura, realizavam-se reuniões anuais com altas figuras políticas da Itália para estudar ajudas aos movimentos de libertação da África lusófona. Participavam destes encontros Marcelino dos Santos, de Moçambique; Agostinho Neto, de Angola; e Amílcar Cabral, da Guiné-Bissau. Na mesma altura, foi também organizado um encontro entre os três líderes e o Papa.
“É altura do Ministério da Cultura indicar artistas para representar a música na diáspora”
Em entrevista com Ivan Mazuze
Ivan Mazuze é um cidadão do mundo. Depois de lançar dois álbuns, “Maganda” e “Ndzuti”, o saxofonista radicado na Noruega fala do seu percurso como músico e professor de música.
O seu 2º CD, “Ndzuti” é um sucesso. O que isto representa para si?
“Ndzuti” não reflecte o plano que tinha quanto à composição do CD. Quando cheguei à Noruega, em 2010, tinha músicas para o 2º álbum. No entanto, nessa altura tive a colaboração de vários artistas, que me deram uma direcção diferente. Mudei de abordagem e troquei tudo, criando composições com base em experiências que tive com diferentes artistas. Fiz estudos, procurando trazer sons acústicos com elementos de música africana. É desse contexto que surge “Ndzuti”, significado de sombra em português.
Depois de “Maganda”, seu 1º CD, sentiu a pressão de lançar o 2º?
Pressão não, mas um plano. Isto tem que ver com a criatividade, porque quanto mais activa a pessoa for, mais criativa ela se torna.
Desde “Maganda” andei activo, e isso foi automático. Só para se ter uma ideia, as músicas do “Ndzuti” não reflectem as do “Maganda”.
Que conhecimentos passa para os seus estudantes?
Não há melhor coisa que dar aulas, tal como alguém também nos ensinou. É uma forma de partilhar conhecimento com os mais novos e planear um futuro para as novas gerações. Eu sou instructor de música e dou aulas com especialização para musicologia africana, mas não partilho só conhecimento sobre a nossa cultura.
Como se sentiu a primeira vez que esteve na sala para ensinar?
Nem todos os artistas têm a capacidade para dar aulas. Para isso, é preciso ter preparação e talento. Dei aulas em Moçambique, Cape Town e, depois, na Noruega.
O que pensa da combinação de instrumentos tradicionais e convencionais?
É altura de termos uma grande banda só de instrumentos tradicionais. Gana é o único país em África, que apresenta uma orquestra de combinação de instrumentos tradicionais. É altura de criar uma orquestra destas porque aí damos uma certa dinâmica e contribuição em termos de música.
Qual tem sido o seu contributo no desenvolvimento da música e da cultura moçambicana?
Há dois anos eu fui indicado como embaixador da música da Noruega na diáspora. É uma boa oportunidade para promover a música moçambicana. Com esta função tenho a oportunidade de me apresentar como moçambicano. Apesar de estar ligado a instituições culturais norueguesas, isso não me impede de me posicionar como moçambicano. É altura do Ministério da Cultura indicar artistas para representar a música na diáspora. Se temos uma economia que está a desenvolver, devíamos puxar a cultura, porque os recursos minerais acabam, mas a cultura não.
É possível estabelecer uma indústria criativa em Moçambique?
Em Moçambique vivemos como se estivéssemos no tempo em que não existia uma indústria musical. Não temos direitos de autores; as músicas tocam na tv, rádio e os artistas não são remunerados. É errado! Estamos em 2014 e politicamente não foi possível estabelecer-se uma indústria musical. Falar de uma indústria não é só em termos de eventos, porque eventos não criam uma indústria musical, mas as leis, que defendem os direitos do autor. É isto que cria uma indústria musical. Não faz sentido que esta não seja prioridade.
É um cidadão do mundo. Como é a dinâmica da sua vida?
Quando a pessoa viaja para diferentes lugares, está exposta à várias culturas, temperaturas, modos de vida, e surge sempre a pergunta: como chegarmos num meio e identificarmo-nos como moçambicanos?
Na Noruega, esta questão tornou-se muito ampla para mim, porque é uma região completamente diferente, em que a nossa identidade cultural tem que sobressair.
O PAÍS – 27.06.2014