O financiamento político, quando o Estado apoia os partidos políticos para exercerem as suas activida des, é uma prática normal em demo cracia. Os partidos são entidades semi-públicas e, por isso, recebem apoio. Este financiamento político (diferente do financiamento eleitoral) tem duas vertentes: os partidos com assento parlamentar, para além das quotizações, doações e legados, recebem dotações do Orçamento do Estado; os partidos sem assento parlamentar não têm essas dotações, mas beneficiam de isenções fiscais na importação de “bens de equipamento necessários ao seu funcionamen to”, uma prerrogativa que também é extensa aos representados na AR.
O processo tem regras e espera-se que elas sejam cumpridas. A prática mostra, no entanto, que não. Pior, o partido Frelimo, que através do Governo devia promover boas práticas, está mergulhado até ao pescoço na mesma natureza de ilegalidades fiscais que foram recentemente denunciadas pelo Centro de Integridade Pública (CIP) envolvendo pequenos partidos da oposição, incluindo o nóvel MDM (Movimento Democrático de Moçambique).
A relevação foi como uma bomba, mas a detonação parecia controlada para não atingir todos os envolvidos. A relação da Frelimo com as mesmas práticas foi posteriormente denunciada pelo CIP, que trouxe à baila casos de importação de mercadorias, centradas na cidade nortenha de Nacala, pretensamente para o partido, mas que são depois entregues com provadamente a comerciantes que têm suportado as despesas do seugigante aparelho.
Mas, afinal, as coisas não acontecem apenas naquela cidade distante dos centros de decisão, em Maputo. Na capital, o mar de ilegalidades em que está envolvida a Frelimo é enorme, como apurou uma investi gação do SAVANA. É apenas mais uma amostra que pode não dar uma imagem completa da dimensão das ilegalidades e das perdas fiscais do Estado, mas que comprova a instru mentalização recorrente de uma Lei em prejuízo do Estado.
Em Janeiro de 2014, a Frelimo importou dez contentores trazendo 1691 arcas-frigoríficas, cujo peso bruto era de 6212 Kg. Tinham como números de selo os seguinte V383766, V425495, V4116764, V416611, V425465, V425479, V434668, V383778, V434656 e V425540. Foram embarcados em Hong Kong no dia 11 de Dezembro de 2013. O SAVANA não conseguiu apurar a marca dos congeladores nem qual foi a empresa comercial que beneficiou da generosidade da Frelimo, mas as nossas fontes alegaram insistentemente que as arcas eram da marca Super-General e que o beneficiário foi o grupo MBS.
Uma fonte do MBS rejeitou esta alegação, dizendo que o grupo não é um vendedor exclusivo da marca em Moçambique. Recorde-se que Bachir é um velho financiador do partido uma vez, em leilão da Frelimo para angariação de fundos chegou a comprar um dos cachimbos do actual presidente, Armando Guebuza, para depois devolver ao dono). Mas em virtude de ter sido visado pela Casa Branca como um dos barões de droga em Moçambique, empresas e cidadãos americanos foram impedidos de manter relações comerciais com o empresário oriundo de Nampula O banimento americano ao MBS não se estendeu à comercialização de produtos manufacturados sob licen ças de companhias da terra do Tio Sam e, por isso, a MBS continua a vender aparelhos de ar-condicionado Super-General. Fonte do MBS disse que são adquiridos no mercado interno.
Seja como for, por esta importação de Janeiro, a Frelimo devia ter pago 2.393.397 de Mts em impostos e taxas. Ou seja, 1.161.704,62 Mts de direitos aduaneiros acrescido de 1.184.938,71 Mts de IVA. Mas o partido pagou apenas à Kudumba taxas relativas ao serviço de inspecção não intrusiva 2.500 (dois mil e quinhentos Meticais) e à MCNET uma taxa de serviços de rede no valor 44.003,96 Mts. Com esta importação, o Estado ficou lesado em 2.346.893.33 Mts.
A taxa de inspecção não intrusiva paga era completamente irrisória mas são “trocos” que também acabam engordando os cofres do Partido, numa forma “legalizada” de arrecadação de rendas. A atribuição pelo Governo, em 2007, do negócio dos scanners à Kudumba foi forçada e influenciada por interesses empresariais ligados à elite política: a Kudumba não era elegível ao concurso pelo simples facto de ser também importadora; a Kudumba não apresentou a proposta financeira mais competitiva; a Kudumba vendeu gato por lebre ao propor um equipamento diverso do que posteriormente instalou. E o facto de a SPI (a holding do Partido Frelimo) ser uma das accionistas de referência da Kudumba pesou demasiado nos resultados finais de um concurso para uma função de soberania (Sobre os scanners, o sector privado que opera em Moçambique acaba, finalmente, de se insurgir. Ver texto nesta edição) Fontes do SAVANA referem que a Frelimo tem incorrido nestas práticas desde que a Lei que as encobre foi estabelecida (Lei 7/91, Lei dos Partidos Políticos), um articulado que não especifica o conteúdo de “bens de equipamento”, embora refira que os artigos não “envolvem actividades de natureza empresarial. A investigação sobre a matéria é, no entanto, complicada, mas tem havido cada vez mais predisposição para partilha desta informação, causando um grande nervosismo no seio das lideranças dos partidos.
Filipe Paúnde
Em Outubro de 2013, esse nervosismo foi notório quando um semanário de Maputo, o Expresso-Moz, agora “intervencionado” pelo Partido Frelimo, publicou dados sobre uma alegada participação do anterior Secretário Geral do Partido, Filipe Paunde, em “importações fraudulentas de viaturas”. O jornal referia se à importação de viaturas de luxo, sob isenção, as quais depois eram vendidas por agentes comerciais ao preço do mercado. Paúnde reagiu com veemência contra tais alegações e ameaçou processar o jornal e o seu anterior editor Anselmo Sengo, mas, de acordo com os dados em posse do SAVANA, algumas importações de vulto foram realizadas quando ele ainda estava na liderança do partido.
Outra importação da Frelimo, sem pre usando o enquadramento da Lei dos Partidos Políticos, teve lugar em Março deste ano. Foram 2640 apare lhos de AC de 72.000 BTUs, também da marca Super-General. A potência de ACs de 72.000 BTUs é usada em grandes instalações, e a sua impor tação pode ser explicada pelo boom imobiliário em Maputo, embora isso não justifique a prática. Conforme o aviso de pagamento desta importação, datado de 19 do Março, a Frelimo pagou apenas 500,00 Mts. Se não tivesse havido isenção, o Estado arrecadaria 2.713.602,49 Mts. Em Maputo, os produtos importados pela Frelimo com isenção são desalfandegados a partir das 22 horas e transportados para dois armazéns, um na Machava e outro na estrada velha da Matola.
A nossa investigação apurou um padrão de práticas que sugere que alguns dos clientes do partido podem ser companhias com cadastro ao nível do descaminho aduaneiro. Em Maio de 2012, em Nacala, as alfândegas anunciaram que a sua Divisão de Inteligência apreendera três contentores com 3439 caixas de pilhas da marca “777” pertencentes à empresa “Shiv Comercial”. A apreensão em causa, de acordo com um relatório das Alfândegas de Moçambique, deveu-se à subfacturação, pois aquela empresa havia declarado apenas 287.307,00 Mts contra os 2.8 milhões de Mts apurados nas investigações.
Pilhas 777 e outras baterias foi exactamente o conteúdo de 20 contentores importados neste mês de Junho de 2014 pelo partido, cuja autoriza ção de saída recebeu o número de embalagem 11800. Entre direitos aduaneiros e IVA, o partido sedeado na antiga Rua da Pereira do Lago, hoje Frente de libertação de Moçambique, deveria ter pago ao Estado 2.336.393,75 Mts. Com efeito, o que coube ao Estado nesta operação de importação de pilhas foram apenas em 71.090,18 Mts. Os números dos contentores desta operação, em ordem de desalfandegamento, foram os seguintes: PCIU 1238122, PCIU 2113691, PCIU 2512747, PCIU 1606029, PCIU 1206911, PCIU 3188210, PCIU 2523335, PCIU 2771579, PCIU 1720113, PCIU 1033694, PCIU 1156765, PCIU 2969076, PCIU 1548703, PCIU 2968280, PCIU 2004725, PCIU 1390161, BMOU 2559772, TGHU 0680585, PCIU 3090163 e SEGU 17111208.
A revelação do Expresso-Moz em Outubro sugeria que as importações ligadas à Frelimo tiveram apenas lugar no consulado de Paúnde. Mas esta é uma sugestão errada, como confirma esta importação de Junho de 2014. A importação de congeladores e de ACs em grandes quantidades a coberto da legislação pressupõe que o Partido Frelimo pretende usar esse equipamento nas suas actividades, mas o facto é que os mesmos acabaram entrando no mercado, através de comerciantes de origem asiática que prestam favores ao partido.
Esse é um dos efeitos perversos destas práticas. Mas, como elas acontecem há vários anos, ressalta também uma certa complacência por parte da Autoridade Tributária, dirigida por uma figura reputada, honesta e íntegra, Rosário Fernandes, que se tem esforçado em aumentar a receita do Estado usando slogans como popularização do imposto e alargamento da base tributária. A ATM tem “serviços de inteligência” que, de tempos em tempos, anunciam apreensões de importações fraudulentas. No entanto, raras vezes tem sido feita referência às práticas suscita das pelos partidos. Uma dessas poucas vezes foi a 27 de Julho de 2012, quando foi anunciada a apreensão de seis viaturas de luxo. Pensava-se que a repressão vinha para ficar, mas ela desapareceu na proporção inversa ao do aumento do tom do discurso da popularização do imposto.
Nalguns meandros familiares com o comércio internacional questiona-se essa complacência da ATM tendo em conta que as operações dos partidos não são ilegais à partida. Ou seja, as operações são feitas seguindo a Lei. Os partidos solicitam as isenções e o Director Nacional das A fândegas, Guilherme Mambo, autoriza. A ilegalidade acontece a jusante, depois da recepção da mercadoria, levantado-se a seguinte questão: há ou não interesse da ATM em investigar essas práticas de forma sistemática? Qualquer que seja a resposta, há um episódio recente, revelador da forma como a denúncia destas práticas incomoda os quadros da ATM. No passado dia 25 de Maio, um seminário sobre Fluxo Ilícito de Capitais teve a honra de acolher o DG das Alfândegas, Guilherme Mambo. Como o tema era a fuga ao fisco, da plateia surgiram questões sobre as práticas dos partidos; levantaram-se questões sobre as dificuldades no acesso à informação relevante por parte de activistas da sociedade civil. Com os nervos à flor da pele, Mambo garantiu que não libertaria qualquer informação porque ele sentira que havia uma intenção de se atingir o Partido Frelimo. Mas essa protecção está a ruir, também porque dentro da Autoridade Tributária há um movimento de contestação à actual direcção, encabeçada justamente por Mambo, que substituiu Domingos Tivane, hoje proprietário de uma enorme infra-estrutura universitária e invejáveis investimentos na área imobiliária.
As relevações do CIP em Março tiveram um efeito tremendo sobre as nossas instituições de justiça, levando o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) a instaurar uma “investigação” para apurar se as importações dos partidos políticos que acabam no mercado configuram crimes de “corrupção, falsificação de documentos e descaminho aduaneiro”. Segundo uma fonte do GCCC, o processo está em instrução preparatória. A fonte disse que o GCCC enviou memorandos à ATM e a Câmara de Despachantes para estas entidades tomarem medidas disciplinares em caso de se comprovar o envolvimento de seus funcionários. São dez os partidos sob investigação. A nossa fonte não quis relevar os seus nomes, alegando presunção de inocência, mas dados na posse do SAVANA indicam que todos os principais partidos estão envolvidos nos esquemas, e há matéria bastante sobre o Partido Frelimo.
In Savana – 27.06.2014