José Forjaz é céptico em relação à consciência ambientalista dos moçambicanos. Para si, na prática, ela não existe. Também reprova a ideia prevalecente – até no seio das (nossas) administrações políticas – segundo a qual a modernidade de uma cidade tem a ver com a edificação de prédios muito altos. O reputado arquitecto tem ideias claras sobre uma urbe moderna: “É aquela em que se garante a manutenção da dignidade humana”. Entre um misto de atropelos ambientais, que nesta urbe se cometem, em relação aos espaços verdes, Forjaz lamenta o que chama “especulação do solo urbano cujo objectivo primário, único e último é render muito dinheiro em pouco tempo”. A par disso – e os efeitos do chamado aquecimento global já se manifestam – esta personalidade moçambicana vê a criação contínua e desenfreada de uma dívida onerosa para as gerações futuras. Com a intenção de explorar os seus conhecimentos sobre os tópicos aqui arrolados, há dias, visitámoslhe na sua casa, onde mais ouvimos do que falámos. Em resultado disso, mas sobretudo da grande relevância do escutado, foi-nos difícil recortar a conversa. Portanto, estimado leitor, apresentámos-lhe o texto na íntegra, na esperança de que – amante do saber que é – o absorverá por completo. Boa leitura…
@Verdade: Tendo em conta a situação das praia da Costa do Sol e da Katembe, em Maputo, pode-se falar de algum crime ambiental?
José Forjaz: O crime ambiental é um conceito lato e, portanto, difícil de definir. É evidente que há uma sucessão de infracções ambientais praticadas, que continuam a ocorrer na cidade, muitas vezes, até, contra planos aprovados pelo Governo. Por exemplo, já nos anos 1960, quando aquela região pertencia à Administração de Marracuene, permitiu-se a destruição do mangal com a construção do bairro do Triunfo. Na altura, a Administração de Lourenço Marques tinha-se recusado a autorizar a realização de construções nesse espaço. Entretanto, por desvios administrativos, as pessoas foram edificar o Triunfo no terreno que pertencia às autoridades de Marracuene.
Este foi o primeiro erro, porque se violou o princípio da proteção das terras baixas e dos mangais. Tratou-se de uma falha que se foi agravando de tal maneira que se gerou uma posição tacitamente aceite por todas as pessoas, e sobretudo pelas autoridades responsáveis, como natural. O Plano de Estrutura do Maputo definiu algumas restrições em relação à exploração desse território, mas, da forma como o caso está a ser tratado, compreende-se que está a ser autorizada a destruição progressiva e intensiva do mangal.
Portanto, este é um dos vários crimes ambientais que se podem apontar. Muitas vezes, estes crimes não são praticados por instintos criminosos, mas por causa de uma ignorância básica em relação às condições do equilíbrio ecológico de uma região e de uma cidade. É evidente que uma cidade que tivesse uma população mais esclarecida (e para isso era necessário que todo o povo moçambicano tivesse outro nível cultural que ainda não atingimos) haveria uma reacção popular mais forte. E, talvez, poder-se-ia lutar contra este tipo de desvios urbanísticos que se estão a praticar.
Em relação a outros crimes ambientais, é difícil ser-se objectivo. De todos os modos, algumas indicações podem ser dadas. Eu preferia até não ir muito por essa direcção, a fim de olhar para situações muito simples como, por exemplo, a destruição progressiva das zonas verdes de Maputo que continua a acontecer de várias maneiras. Podemos começar por aquele jardim na Avenida 24 de Julho que está a ser diminuído com a implantação de um edifício. Está-se, na verdade, a retirar mais uma área verde, indispensável, à urbe. Vemos várias intenções na destruição do Parque dos Continuadores com a autorização da construção de mais um edifício em que irá funcionar uma instituição bancária.
Enfim, tudo isto ocorre devido à ignorância das nossas autoridades administrativas e políticas que julgam que todos estes pequenos favores que fazem aos seus correligionários políticos não têm impactos ambientais. A verdade é que têm impactos ambientais muito graves. As gerações futuras vão pagar um preço muito alto pelo que está a acontecer na actualidade. Há outros crimes, talvez não de natureza ambiental, mas que prefiguram a dimensão mais dura na medida em que afectam a vida humana, a componente importante do ambiente, em estado permanente de abandono, sempre justificado mas nunca justificável.
Refiro-me à urgência de um tratamento sério das necessidades da população marginal em relação ao centro do Maputo. É um crime ambiental – quanto a mim, grave – porque as pessoas continuam sem infra-estruturas, apesar de se tentar começar tarde e a más horas, a desenvolver algumas acções de reabilitação e reordenamento dos bairros espontâneos ou informais. O facto é que não se está a fazer praticamente nada. A cidade continua a crescer impossivelmente sem condições aceitáveis de transporte e as que estão a ser imaginadas são megalómanas e, provavelmente, impossíveis de se manter dado os preços que se vão praticar.
Outro crime ambiental de que, infelizmente, não se fala bastante – cuja prevenção é determinante para a saúde das populações – é o que está a acontecer às águas da baía: o progressivo inquinamento, pelo não tratamento dos esgotos e a não restrição à má qualidade dos afluentes industriais descarregados na baía, cria uma situação sanitariamente perigosa, sobretudo, quando as praias são muito usadas, como acontece no Verão. A inquinação gera um perigo iminente e profundo para centenas de milhares de pessoas.
Não se está a falar disso, não se previnem os banhistas, pese embora, já nos anos antes da proclamação da independência nacional, metade da frente marítima de Maputo fosse proibida aos utentes, porque se sabia do agravamento do inquinamento que – neste momento, em meu entender – abrange toda a praia da Costa do Sol. Nenhum programa de prevenção, para as populações, está a ser desenvolvido pelas nossas autoridades sanitárias. Trata-se de um problema que tem a ver com os altos níveis de ignorância por parte das nossas autoridades administrativas. Não quero acreditar que estão a agir de má-fé. Existe uma impotência política para prevenir as pessoas. Em resultado disso, há escolhas erradas sobre aquilo que é prioritário fazer na cidade.
@Verdade: Há um conceito, até das nossas autoridades administrativas, segundo o qual os grandes edifícios que se erguem em Maputo revelam a tendência de modernização da cidade. Até que ponto essa modernização é, ambientalmente, sustentável?
José Forjaz: Essa ideia de que ser moderno é ter edifícios altos é primária e falsa. As cidades mais modernas do mundo continuam com edifícios, em geral, com menos de quatro andares. Na verdade, o que está a acontecer não é nenhuma modernização urbana. É uma especulação desenfreada do solo urbano, para benefício de entidades privadas e administrativas, cujo objectivo primário, único e último, é render muito dinheiro em pouco tempo. Pretende-se fazer o menos possível para ganhar o mais possível em pouco tempo. Isso só pode ser controlado se houver autoridades competentes e actuantes nesse sentido.
Para mim, a modernização urbana seria a possibilidade de se dar mais esgotos, passeios bem tratados, energia eléctrica às pessoas, incluindo todas as condições infra-estruturais suficientes para se manter a dignidade humana. A modernidade seria não permitir, por exemplo, que edifícios com 14, 18 ou 20 andares não tenham elevadores a funcionar. Enquanto a lei preconiza que qualquer edifício de mais de três andares deve ter um elevador a funcionar, a maioria dos elevadores dos edifícios altos da cidade está num estado de manutenção lamentável e perigoso.
Se a situação não estiver de acordo com a lei, deve haver uma intervenção por parte das autoridades. O problema é que os próprios ministérios funcionam em edifícios com 14 a 20 andares, há mais de 20 anos sem elevadores e ninguém fiscaliza isso. A situação é preocupante e revela o nosso atraso em relação à modernidade. De qualquer modo, tudo é uma questão de opção. Ou se opta por uma liberalização completa e uma protecção absoluta ao especulador, ou se opta por uma progressiva moralização da actividade de exploração fundiária da cidade e, por fim, deve optar-se também por menos banquetes e mais limpezas dos esgotos e das sarjetas da urbe.
É entre estas as possibilidades que se deve escolher o que fazer em Maputo. De facto, eu já ouvi as autoridades administrativas a afirmarem que uma cidade moderna é a que tem prédios altos. Há pouco tempo fizemos o projecto de um edifício importante na cidade e as autoridades administrativas ficaram tristes com o facto de esse prédio ter menos de 20 andares, contrariamente ao que esperavam. Confunde-se a modernização urbana com a existência de prédios muito altos. É uma estupidez profunda pensar-se que uma cidade moderna é a que tem edifícios enormes.
Infelizmente, a maioria dos nossos citadinos pensa que são válidos e louváveis os exemplos de supostas cidades modernas tão insustentáveis como Dubai. Se forem estes os exemplos que temos como válidos, então, estamos mal, porque Dubai é uma selvageria absoluta. E embora, agora esteja coberta com as balelas da existência de edifícios ecologicamente sustentáveis – outra aldrabice patente – aquela urbe é contra a modernidade. Como é que um deserto, que é um espaço naturalmente condicionado e artificialmente habitado pode ser ecologicamente sustentável? Penso que 99,9 porcento dos nossos concidadãos não têm a noção clara do que é um território ecologicamente sustentável. Neste número incluo as autoridades administrativas, em geral.
@Verdade: Até que ponto Maputo está em condições de receber novos edifícios, tendo em conta que alguns são erguidos em locais onde outros foram removidos?
José Forjaz: Isso não tem uma resposta absoluta e completa, porque há edifícios que atingiram a sua idade de vetustez e têm de ser demolidos. Há outros que poderiam ser construídos dentro da escala anterior. O que acontece é que o prédio que está ultrapassado na sua idade não é rentável para ninguém. Por isso, a sua substituição é natural – acontece em qualquer lugar. Infelizmente, no mundo, por razões de vária ordem – sociológica, económica e técnica – os edifícios, actualmente, duram pouco. A vida útil de um edifício estima-se entre 30 e 50 anos.
Ou seja, há prédios que nem duram a vida de uma pessoa, contrariamente ao que acontecia antigamente em que os edifícios eram feitos de pedra e de tijolo, o que lhes conferia uma grande longevidade. Por exemplo, na Europa, em África e na Ásia há edifícios com entre 300 e dois mil anos que cumprem, perfeitamente, o propósito da sua criação. O Panteão, em Roma, foi construído no ano 100 da nossa era e ainda existe. É uma igreja que funciona impecavelmente. O betão que se fabrica actualmente, contrariamente ao que as pessoas pensam, é um material que dura muito menos tempo do que a pedra e o tijolo. Portanto, os edifícios têm que ser repostos. Nos sítios já demarcados para o efeito, não vejo nenhum problema em que se construam prédios. Pelo contrário, quanto mais denso ficar o centro da urbe melhor.
O importante é resolvermos os problemas que se levantam com a densificação. Os edifícios mais antigos podem e, em muitos casos, devem ser substituídos. O problema é como esse processo é feito. Mas também o que está a acontecer é que nós estamos a permitir que se construam prédios substanciais em termos de quantidade de pessoas que se vão alojar neles e não estamos a desenvolver as infra-estruturas para acompanhar essa transformação. Esse é um problema que vai rebentar daqui a pouco tempo, quando repararmos que já não temos água, esgotos, e muito menos energia eléctrica.
@Verdade: Quais é que são os prováveis impactos dessa situação?
José Forjaz: As coisas vão funcionar cada vez pior do que estão. Como acontece em Luanda, cada edifício precisará de ter uma central eléctrica própria; teremos de ir buscar água com carros de tanques para alimentá-los; os esgotos passarão a funcionar numa pequena rede que, em resultado disso, deverá ser ampliada; e, portanto, há coisas que vão ter que se paralisar, sem pensar nas complicações de saúde mental das pessoas. A ansiedade será grande.
@Verdade: A baía de Maputo, sobretudo a avenida Marginal, tornou-se um ponto que atrai o surgimento de novas infra-estruturas como, por exemplo, os supermercados. O problema é que esta urbanização implicou a consequente remoção de espécies vegetais muitas das quais não estão a ser repostas ou que não sobreviveriam em geografias diferentes daquela. Quer comentar?
José Forjaz: Referiu-se a uma coisa que, antes de ser criminosa, é ridícula. Como é que se permite construir um supermercado na frente marítima? Há alguma coisa que melhora o funcionamento de um estabelecimento comercial por estar localizado numa frente marítima? Que valor se acrescenta à cidade a vender-se farinha em frente ao mar? Há uma estupidez maior do que colocar um centro comercial na frente marítima? As coisas começam por aí. Vivemos uma situação tão permissiva em que facilmente se permite um crime desta natureza, de tal sorte que as pessoas pensam que está tudo bem.
Sobre a questão da retirada das espécies já nos referimos quando falámos do mangal que é insubstituível, porque as condições da sua existência implicam a entrada e a saída das águas do mar. As espécies vegetais que podem ser repostas nas zonas do mar são um problema menor, mas seria muito melhor se fossem nativas. De qualquer modo, tudo isso é difícil discutir em poucas palavras porque são conceitos que além de científicos são estéticos e de outra ordem. Repare que a maior parte das nossas espécies de fruta é importada de outros ecossistemas: a papaia, a manga e o caju, por exemplo, não são espécies nativas de Moçambique.
Portanto, põe-se em discussão se realmente essa pureza de que não se pode trazer nada para cá, porque, se se procedesse assim, não teríamos, por exemplo, o milho, o arroz e uma série de produtos indispensáveis à nossa dieta. Eu não estou a defender que se tragam espécies de outros países para plantar na nossa frente marítima. O que estou a dizer é que é preciso ter cuidado com certas visões limitativas em relação a este fenómeno.
@Verdade: Há um fenómeno interessante concernente a esta relação homem-terra-mar em que, vezes sem conta, avaliando o movimento das águas, ficamos com a impressão de que o mar se aproximou mais da terra, e, em sentido contrário, percebe-se que a terra, através das construções edificadas na costa é que se aproximou do mar. O que é que está a acontecer ao certo aqui?
José Forjaz: Não posso dar uma resposta simples e directa a esta pergunta, por várias razões. Primeiro, porque não sou um especialista da dinâmica marinha. Segundo, porque os casos são diferentes uns dos outros. O que está a acontecer na baía de Maputo, como no lado da Katembe, é resultado de fenómenos de dinâmica marinha que ainda não são perfeitamente conhecidos. Não se tem a noção exacta do que está a acontecer.
São fenómenos imprevisíveis, mesmo para os mais altos níveis de conhecimento científico, porque são globais. Não são inerentes exclusivamente à costa moçambicana. Há muitos locais no mundo onde a praia está a ser ‘comida’ e outros onde ela está a ser aumentada. Quando pequeno, eu gostava de ir tomar banho na praia da Figueira da Foz, em Portugal, que era uma prainha de 50 metros. Agora possui 500. Mas há outra praia, no sul de Lisboa, que está a desaparecer. Portanto, estamos diante de fenómenos muito complexos que não podem ser atribuídos a uma má gestão urbana das zonas ribeirinhas.
Entretanto, vezes há em que intervenções humanas agravam a situação, enquanto outras melhoram-na durante algum tempo, porque contra o mar não há forças humanas possíveis de salvaguardar um status quo permanente. No meio de tudo isto, há um problema pontual para o qual nós temos de criar defesas psicológicas: O facto de a nossa população estar a ser recentemente urbanizada tem a ver com o desconhecimento de como se vive na cidade. A sua geração começa a saber, mas a minha e a dos seus avós é uma geração que, de uma forma geral, vivia nas zonas rurais, onde mantinha correcta e naturalmente um equilíbrio com o meio ambiente.
Na aldeia não há lixo, primeiro, porque as pessoas não produzem tanto e sabem ver-se livre dele. Ainda hoje, qualquer aldeia rural moçambicana é um modelo de organização. Mas quando as pessoas vêm para a cidade – e deixa de haver o controlo social em relação à coesão e a integração das forças locais – sempre se incumbe a responsabilidade ao outro e à administração. Por exemplo, nos estádios onde estiveram a ver o seu país a jogar, os espectadores japoneses que foram ao Brasil, no âmbito da Copa do Mundo de 2014, antes de saírem tinham um saquinho, com a bandeira do Japão, onde meteram todo o lixo que produziram.
Os alemães fizeram o mesmo. Em resultado disso, o local onde estavam sentados, quando saíram, estava impecável. Em contra-senso, os brasileiros, porque tinham perdido, foram partir a cidade. Aqui há um aspecto fundamental que tem a ver com a cultura urbana e humana que os brasileiros ainda não atingiram. Nós os moçambicanos também ainda não a atingimos, porque se formos à praia deitamos garrafas em qualquer lugar, como tem estado a acontecer, e no dia seguinte a praia é impraticável.
Ora, você acha que alguém dos 100 porcento de pessoas que vão à praia se preocupa em fazer alguma limpeza? Há uma questão de cultura urbana que ainda não foi atingida. Ela vai ser alcançada, devagarinho, mas nós temos de ser claros acerca disso. Não devemos esconder e, em jeito de paternalismo, dizer que somos pobres. Aos japoneses ninguém ofereceu os sacos de lixo. Portanto, é uma questão de atitude. Eu vejo, na cidade, quando estou a conduzir, pessoas a deitar latas de cerveja pelas janelas do carro, sem qualquer espécie de pensamento de que esse comportamento, além de ilegal, é contra a saúde pública.
@Verdade: Não estaremos diante de um caso que precisa de uma espécie de educação cívica mais actuante?
José Forjaz: A educação começa em casa e na escola. O problema é que quando é o professor quem faz isto, como muitas vezes acontece, o aluno não aprende. A outra dificuldade tem a ver com o facto de se não explicar, às pessoas, as razões de se ter de mudar de atitude. Não é simplesmente pela necessidade de se ter um espaço mais limpinho. É que ficar limpo corresponde aos mais altos níveis de saúde e reduz os investimentos públicos nesse aspecto.
@Verdade: O que se pode fazer?
José Forjaz: Pode-se educar as pessoas. Agora, não se educa muito pois aquilo que se transmite às gerações é quanto mais rico se for e mais de pressa, mais valor se tem ou mais respeitada é a pessoa. E, realmente, a única coisa que temos estado a transmitir, com uma insistência perigosa, é: ‘enriquece, meu filho’. E é claro que o choque surge porque, no lugar de enriquecer, a maioria das pessoas está a empobrecer cada vez mais.
@VERDADE - 19.09.2014